EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL
VERBUM DOMINI
DO SANTO PADRE BENTO XVI
AO EPISCOPADO, AO CLERO ÀS PESSOAS CONSAGRADAS E
AOS FIÉIS LEIGOS
SOBRE A PALAVRA DE DEUS NA VIDA E NA MISSÃO DA
IGREJA
LIBRERIA EDITRICE VATICANA
INTRODUÇÃO
1.
A PALAVRA DO SENHOR permanece eternamente.
E esta é a palavra do Evangelho que vos foi
anunciada » (1 Pd 1, 25; cf. Is
40, 8). Com esta citação da Primeira Carta de São Pedro, que
retoma as palavras do profeta Isaías, vemo-nos colocados diante do mistério de
Deus que Se comunica a Si mesmo por meio do dom da sua Palavra. Esta Palavra,
que permanece eternamente, entrou no tempo. Deus pronunciou a sua Palavra
eterna de modo humano; o seu Verbo « fez-Se carne » (Jo
1, 14). Esta é a boa nova. Este é o anúncio que atravessa os séculos,
tendo chegado até aos nossos dias. A XII Assembléia Geral Ordinária do Sínodo
dos Bispos, que se efetuou no Vaticano de 5 a 26 de Outubro de 2008, teve como
tema A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. Foi
uma experiência profunda de encontro com Cristo, Verbo do Pai, que está
presente onde dois ou três se encontram reunidos em seu nome (cf. Mt
18, 20). Com esta Exortação apostólica pós-sinodal, acolho de bom
grado o pedido que me fi zeram os Padres de dar a conhecer a todo o Povo
de Deus a riqueza surgida naquela reunião vaticana e as indicações emanadas do trabalho
comum.1 Nesta linha, pretendo retomar tudo o que foi elaborado pelo Sínodo,
tendo em conta os documentos apresentados: os Lineamen- 1 Cf. Propositio
1. « 4 ta, o Instrumentum
laboris, os Relatórios ante e post
disceptationem e os textos das intervenções, tanto os que foram
lidos na sala como os apresentados in scriptis, os
Relatórios dos Círculos Menores e os seus debates, a Mensagem final ao
Povo de Deus e, sobretudo algumas propostas específi cas (Propositiones), que
os Padres consideraram de particular relevância. Desejo assim indicar algumas
linhas fundamentais para uma redescoberta, na vida da Igreja, da Palavra
divina, fonte de constante renovação, com a esperança de que a mesma se torne cada
vez mais o coração de toda a atividade eclesial.
Para que a nossa alegria seja perfeita
2.
Quero, antes de mais nada, recordar a beleza e o
fascínio do renovado encontro com o SenhorJesus que se experimentou nos dias da
assembléia sinodal. Por isso, fazendo-me eco dos Padres, dirijo-me a todos os fiéis
com as palavras de São João na sua primeira carta: « Nós vos anunciamos a vida
eterna, que estava no Pai e que nos foi manifestada – o que vimos e ouvimos,
isso vos anunciamos, para que também vós tenhais comunhão conosco. Quanto à
nossa comunhão, ela é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo » (1
Jo 1, 2-3). O Apóstolo fala-nos de ouvir, ver, tocar
e contemplar (cf. 1 Jo 1, 1) o Verbo da Vida, já
que a Vida mesma se manifestou em Cristo. E nós, chamados à comunhão com Deus e
entre nós, devemos ser anunciadores deste dom. Nesta perspectiva querigmática,
a assembléia sinodal foi um testemunho para a Igreja e para o mundo de como é
belo o encontro com a Palavra de Deus na comunhão eclesial. Portanto, exorto
todos os fi éis a redescobrirem o encontro pessoal e comunitário com Cristo,
Verbo da Vida que Se tornou visível, a fazerem-se seus anunciadores para que o
dom da vida divina, a comunhão, se dilate cada vez mais pelo mundo inteiro. Com
efeito, participar na vida de Deus, Trindade de Amor, é a
alegria completa (cf. 1 Jo 1, 4). E é dom e dever
imprescindível da Igreja comunicar a alegria que deriva do encontro com a
Pessoa de Cristo, Palavra de Deus presente no meio de nós. Num mundo que freqüentemente
sente Deus como supérfluo ou alheio, confessamos como Pedro que só Ele
tem « palavras de vida eterna » (Jo 6, 68). Não existe
prioridade maior do que esta: reabrir ao homem atual o acesso a Deus, a Deus
que fala e nos comunica o seu amor para que tenhamos vida em abundância (cf. Jo
10, 10).
Da
« Dei Verbum » ao Sínodo sobre a Palavra de Deus
3.
Com a XII Assembléia Geral Ordinária do Sínodo
dos Bispos sobre a Palavra de Deus, estamos conscientes de nos termos debruçado
de certo modo sobre o próprio coração da
vida cristã, dando continuidade à assembleia sinodal anterior sobre a Eucaristia
como fonte e ápice da vida e da missão da Igreja. De
fato, a Igreja funda-se sobre a Palavra de Deus, nasce e vive dela. Ao longo de
todos os séculos da sua história, o Povo de Deus encontrou sempre nela a sua
força, e também hoje a comunidade eclesial cresce na escuta, na celebração e no
estudo da Palavra de Deus. Há que reconhecer que, nas últimas décadas, a vida
eclesial aumentou a sua sensibilidade relativamente a este tema, com particular
referência à Revelação cristã, à Tradição viva e à Sagrada Escritura. Pode-se afirmar
que, a partir do pontificado do Papa Leão XIII, houve um crescendo de
intervenções visando suscitar maior consciência da importância da Palavra de
Deus e dos estudos bíblicos na vida da Igreja, que teve o seu ponto culminante
no Concílio Vaticano II, de modo especial com a promulgação da Constituição
dogmática sobre a Revelação divina Dei Verbum. Esta
representa um marco miliário no caminho da Igreja. « Os Padres Sinodais (…)
reconhecem, com ânimo agradecido, os grandes benefícios que este documento
trouxe à vida da Igreja a nível exegético, teológico, espiritual, pastoral e ecumênico
». De modo particular cresceu, nestes anos, a consciência do « horizonte trinitário
e histórico-salvífico da Revelação » em que se deve reconhecer
Jesus Cristo como « o mediador e a plenitude de toda a Revelação ». A Igreja
confessa, incessantemente, a cada geração que Ele, « com toda a sua presença e
manifestação da sua pessoa, com palavras e obras, sinais e milagres, e,
sobretudo com a sua morte e gloriosa ressurreição e, enfim, com
o envio do Espírito de verdade, completa totalmente e confirma
com o testemunho divino a Revelação ». É de conhecimento geral o grande impulso
dado pela Constituição dogmática Dei Verbum à redescoberta
da Palavra de Deus na vida da Igreja, à reflexão teológica sobre a Revelação divina e ao estudo
da Sagrada Escritura. E numerosas foram também as intervenções do Magistério
eclesial sobre estas matérias nos últimos quarenta anos.
A
Igreja, ciente da continuidade do seu próprio caminho sob a guia do Espírito
Santo, com a celebração deste Sínodo sentiu-se chamada a aprofundar ainda mais
o tema da Palavra divina, seja para verificar a realização das indicações conciliares seja
para enfrentar os novos desafios que o tempo presente coloca a quem acredita
em Cristo.
O
Sínodo dos Bispos sobre a Palavra de Deus
4.
Na XII Assembleia sinodal, Pastores vindos de
todo o mundo congregaram-se ao redor da Palavra de Deus, colocando
simbolicamente no centro da Assembleia o texto da Bíblia, para redescobrirem
algo que nos arriscamos de dar por adquirido no dia-a-dia: o
fato de que Deus fale e responda às nossas perguntas.
Juntos escutamos e celebramos a Palavra do Senhor. Narramos uns aos outros
aquilo que o Senhor está a realizar no Povo de Deus, partilhando esperanças e
preocupações. Tudo isto nos tornou conscientes de que só podemos aprofundar a
nossa relação com a Palavra de Deus dentro do « nós » da Igreja, na escuta e no
acolhimento recíproco. Daqui nasce a gratidão pelos testemunhos sobre a vida
eclesial nas diversas partes do mundo, surgidos nas várias intervenções feitas
na sala. Ao mesmo tempo foi comovedor também ouvir os Delegados Fraternos, que
aceitaram o convite para participar no 9 Cf. BENTO XVI, Discurso
à Cúria Romana (22 de Dezembro de 2008): AAS
101 (2009), 49. Encontro sinodal. Penso de modo particular na meditação
que nos ofereceu Sua Santidade Bartolomeu I, Patriarca Ecumênico de
Constantinopla, pela qual os Padres sinodais exprimiram profunda gratidão. Além
disso, pela primeira vez, o Sínodo dos Bispos quis convidar também um Rabino, que
nos deu um testemunho precioso sobre as Sagradas Escrituras judaicas; estas são
precisamente uma parte das nossas Sagradas Escrituras. Pudemos assim constatar,
com alegria e gratidão, que « na Igreja há um Pentecostes também hoje, ou seja,
que ela fala em muitas línguas; e isto não só no sentido externo de estarem
nela representadas todas as grandes línguas do mundo mas também, e mais
profundamente, no sentido de que nela estão presentes os variados modos da experiência
de Deus e do mundo, a riqueza das culturas, e só assim se manifesta a vastidão
da existência humana e, a partir dela, a vastidão da Palavra de Deus ». Além disso, pudemos constatar também um
Pentecostes ainda a caminho; vários povos aguardam ainda que seja anunciada a
Palavra de Deus na sua própria língua e cultura. Como não recordar também que,
durante todo o Sínodo, nos acompanhou o testemunho do Apóstolo Paulo? De fato,
foi providencial que a XII Assembleia Geral Ordinária se tenha realizado precisamente
dentro do ano dedicado à figura do grande Apóstolo das Nações, por ocasião
do bimilenário do seu nascimento. A sua existência caracterizou-se completamente
pelo zelo em difundir a Palavra de Deus. Como não sentir vibrar no nosso
coração as palavras com que se referia à sua missão de anunciador da Palavra
divina: « Faço tudo por causa do Evangelho » (1 Cor 9, 23);
« pois eu – escreve na Carta aos Romanos – não me
envergonho do Evangelho, o qual é poder de Deus para salvação de todo o crente
» (1, 16)?! Quando refletimos sobre a Palavra de Deus na vida e na
missão da Igreja, não podemos deixar de pensar em São Paulo e na sua vida
entregue à difusão do anúncio da salvação de Cristo a todos os povos.
5.
O Prólogo do Evangelho de João por guia
Desejo, através desta Exortação apostólica, que
as conclusões do Sínodo influam eficazmente sobre a vida da Igreja: sobre a relação
pessoal com as Sagradas Escrituras, sobre a sua interpretação na liturgia e na
catequese bem como na investigação científica, para que a Bíblia não permaneça uma Palavra
do passado, mas uma Palavra viva e atual. Com este objetivo, pretendo
apresentar e aprofundar os resultados do Sínodo, tomando por referência
constante o Prólogo do Evangelho de João (Jo
1, 1-18), que nos dá a conhecer o fundamento da nossa vida: o Verbo,
que desde o princípio está junto de Deus, fez-Se carne e veio habitar entre nós
(cf. Jo 1, 14). Trata-se de um texto admirável, que dá
uma síntese de toda a fé cristã. A partir da sua experiência pessoal do
encontro e seguimento de Cristo, João, que a tradição identifica com
« o discípulo que Jesus amava » (Jo 13, 23; 20, 2; 21, 7.20),
« chegou a esta certeza íntima: Jesus é a Sabedoria de Deus encarnada, é a sua
Palavra eterna feita homem mortal ».13 Aquele que « viu e acreditou » (Jo
20, 8) nos ajude também a apoiar a cabeça sobre o peito de Cristo
(cf. Jo 13, 25), donde brotou sangue e água (cf. Jo
19, 34), símbolos dos Sacramentos da Igreja. Seguindo o exemplo do
Apóstolo João e dos outros autores inspirados, deixemo-nos guiar pelo Espírito
Santo para podermos amar cada vez mais a Palavra de Deus.
I PARTE – VERBUM DEI
«
No princípio já existia o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus
(…) e o Verbo fez-Se carne » (Jo 1, 1.14)
O DEUS
QUE FALA – Deus em diálogo
6.
A novidade da revelação bíblica consiste no fato
de Deus Se dar a conhecer no diálogo, que deseja ter conosco. A Constituição dogmática Dei
Verbum tinha exposto esta realidade, reconhecendo que « Deus invisível na
riqueza do seu amor fala aos homens como a amigos e convive com eles, para os
convidar e admitir à comunhão com Ele ». Mas ainda não teríamos compreendido suficientemente
a mensagem do Prólogo de São João, se nos detivéssemos na constatação de que Deus
Se comunica amorosamente a nós. Na realidade, o Verbo de Deus, por meio do Qual
« tudo começou a existir » (Jo 1, 3) e que Se « fez
carne » (Jo 1, 14), é o mesmo que já existia « no princípio
» (Jo 1, 1). Se aqui podemos descobrir uma alusão ao
início do livro do Gênesis (cf. Gn 1, 1), na realidade vemo-nos
colocados diante de um princípio
de caráter absoluto e que nos narra a vida íntima de Deus. O Prólogo
joanino apresenta-nos o fato de que o Logos existe realmente desde
sempre, e desde sempre Ele mesmo é Deus. Por
conseguinte, nunca houve em Deus um tempo em que não existisse o Logos. O
Verbo preexiste à criação. Portanto, no coração da vida divina, há a comunhão,
há o dom absoluto. « Deus é amor » (1
Jo 4, 16) – dirá noutro lugar o mesmo Apóstolo, indicando assim « a imagem
cristã de Deus e também a conseqüente imagem
do homem e do seu caminho ».16 Deus dá-Se-nos-á conhecer como mistério de amor
infinito, no qual, desde toda a eternidade, o Pai exprime a sua Palavra
no Espírito Santo. Por isso o Verbo, que desde o princípio está junto de Deus e
é Deus, revela-nos o próprio Deus no diálogo de amor entre as Pessoas divinas e
convida-nos a participar nele. Portanto, feitos à imagem e semelhança de Deus
amor, só nos podemos compreender a nós mesmos no acolhimento do Verbo e na
docilidade à obra do Espírito Santo. É à luz da revelação feita pelo Verbo
divino que se esclarece definitivamente o enigma da condição humana.
Analogia
da Palavra de Deus
7.
A partir destas considerações que brotam da
meditação sobre o mistério cristão expresso no Prólogo de João, é necessário
agora pôr em evidência aquilo que foi afirmado pelos Padres sinodais a propósito das
diversas modalidades com que usamos a expressão « Palavra de Deus ». Falou-se,
justamente, de uma sinfonia da Palavra, de uma Palavra única que se exprime de
diversos modos: « um cântico a diversas vozes ». A este propósito, os Padres
sinodais falaram de um uso analógico da linguagem humana na referência à Palavra
de Deus. Com efeito, se esta expressão, por um lado, diz respeito à comunicação
que Deus faz de Si mesmo, por outro assume significados
diversos que devem ser atentamente considerados e relacionados entre si, tanto
do ponto de vista da reflexão teológica como do uso pastoral. Como nos
mostra claramente o Prólogo de João, o Logos indica originariamente o
Verbo eterno, ou seja, o Filho unigênito, gerado pelo Pai antes de todos os
séculos e consubstancial a Ele: o Verbo estava junto de Deus, o Verbo era
Deus. Mas este mesmo Verbo – afirma São João – « fez-Se carne » (Jo
1, 14); por isso Jesus Cristo, nascido da Virgem Maria, é realmente o
Verbo de Deus que Se fez consubstancial a nós. Assim a expressão « Palavra de
Deus » acaba por indicar aqui a pessoa de Jesus Cristo, Filho eterno do Pai
feito homem. Além disso, se no centro da revelação divina está o acontecimento
de Cristo, é preciso reconhecer que a própria criação, o liber
naturae, constitui também essencialmente parte desta sinfonia a diversas
vozes na qual Se exprime o único Verbo. Do mesmo modo confessamos que Deus
comunicou a sua Palavra na história da salvação, fez ouvir a sua voz; com a
força do seu Espírito, falou pelos profetas ».18 Por conseguinte, a Palavra divina
exprime-se ao longo de toda a história da salvação e tem a sua plenitude no
mistério da encarnação, morte e ressurreição do Filho de Deus. E Palavra de
Deus é ainda aquela pregada pelos Apóstolos, em obediência ao mandato de Jesus Ressuscitado:
« Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa Nova a toda a criatura » (Mc
16, 15). Assim a Palavra de Deus é transmitida na Tradição viva da
Igreja. Enfim, é Palavra de Deus, atestada e divinamente inspirada, a Sagrada
Escritura, Antigo e Novo Testamento. Tudo isto nos faz compreender por que
motivo, na Igreja, veneramos extremamente as Sagradas Escrituras, apesar da fé
cristã não ser uma « religião do Livro »: o cristianismo é a « religião da
Palavra de Deus », não de « uma palavra escrita e muda, mas do Verbo encarnado e
vivo ».19 Por conseguinte a Sagrada Escritura deve ser proclamada, escutada,
lida, acolhida e vivida como Palavra de Deus, no sulco da Tradição Apostólica
de que é inseparável. Como afirmaram os Padres sinodais, encontramo-nos
realmente perante um uso analógico da expressão « Palavra de Deus », e disto
mesmo devemos estar conscientes. Por isso, é necessário que os fiéis
sejam melhor formados para identificar os seus diversos significados
e compreender o seu sentido unitário. E
do ponto de vista teológico é preciso também aprofundar a articulação dos
vários significados desta expressão, para que resplandeça melhor a unidade do plano
divino e, neste, a centralidade da pessoa de Cristo.
Dimensão
cósmica da Palavra
8.
Conscientes do significado
fundamental da Palavra de Deus referida ao Verbo eterno de Deus feito carne,
único salvador e mediador entre Deus e o homem, e escutando esta Palavra, somos
levados pela revelação bíblica a reconhecer que ela é o fundamento de toda a
realidade. O Prólogo de São João afirma, referindo-se ao Logos
divino, que « tudo começou a existir por meio d’Ele, e, sem Ele, nada
foi criado » (Jo 1, 3); de igual modo na Carta
aos Colossenses afirma-se, aludindo a Cristo « primogênito de toda
a criação » (1, 15), que « tudo foi criado por Ele e para Ele » (1, 16). E o autor
da Carta aos Hebreus recorda que « pela fé conhecemos que o mundo foi
formado pela palavra de Deus, de tal modo que o que se vê não provém das coisas
sensíveis » (11, 3). Este anúncio é, para nós, uma palavra libertadora. De fato,
as afirmações da Sagrada Escritura indicam que tudo o que existe não é
fruto de um acaso irracional, mas é querido por Deus, está dentro do seu
desígnio, em cujo centro se encontra a oferta de participar na vida divina em Cristo.
A criação nasce do Logos e traz indelével o sinal
da Razão criadora que regula e guia. Esta
feliz certeza é cantada nos Salmos: « Pela palavra do
Senhor foram feitos os céus, pelo sopro da sua boca todos os seus exércitos » (Sl
33, 6); e ainda: « Ele falou e as coisas existiram. Ele mandou e as
coisas subsistiram » (Sl 33, 9). A realidade
inteira exprime este mistério: « Os céus proclamam a glória de Deus, o firmamento
anuncia as obras das suas mãos » (Sl 19, 2). É a própria
Sagrada Escritura que nos convida a conhecer o Criador, observando a criação
(cf. Sb 13, 5; Rm 1, 19-20). A tradição do
pensamento cristão soube aprofundar este elemento-chave da sinfonia da Palavra,
quando por exemplo São Boaventura – que, juntamente com a grande tradição dos
Padres Gregos, vê todas as possibilidades da criação no Logos
23 – afirma que « cada criatura é palavra de Deus,
porque proclama Deus ».24 A Constituição dogmática Dei
Verbum sintetizara este fato dizendo que « Deus, criando e conservando todas
as coisas pelo Verbo (cf. Jo 1, 3), oferece aos homens
um testemunho perene de Si mesmo na criação ».
A
criação do homem
9.
Deste modo, a realidade nasce da Palavra, como creatura
Verbi, e tudo é chamado a servir a Palavra. A criação é lugar onde se
desenvolve toda a história do amor entre Deus e a sua criatura; por conseguinte,
o movente de tudo é a salvação do homem. Contemplando o universo na perspectiva
da história da salvação, somos levados a descobrir a posição única e singular
que ocupa o homem na criação: « Deus criou o homem à sua imagem, criou-o à
imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher » (Gn
1, 27). Isto permite-nos reconhecer plenamente os dons preciosos
recebidos do Criador: o valor do próprio corpo, o dom da razão, da liberdade e
da consciência. Nisto encontramos também tudo aquilo que a tradição filosófica
chama « lei natural ».26 Com efeito, « todo o ser humano que atinge a
consciência e a responsabilidade experimenta um chamamento interior para
realizar o bem » e, conseqüentemente,
evitar o mal. Sobre este princípio, como recorda São Tomás de Aquino, fundam-se
também todos os outros preceitos da lei natural. A escuta da Palavra de Deus leva-nos
em primeiro lugar a prezar a exigência de viver segundo esta lei « escrita no
coração » Depois, Jesus Cristo dá aos homens a Lei nova, a Lei do Evangelho,
que assume e realiza de modo sublime a lei natural, libertando-nos da lei do
pecado, por causa do qual, come diz São Paulo, « querer o bem está ao meu
alcance, mas realizá-lo não » (Rm 7, 18), e dá aos homens,
por meio da graça, a participação na vida divina e a capacidade de superar o
egoísmo.
O
realismo da Palavra
10.
Quem conhece a Palavra divina conhece plenamente
também o significado de cada criatura. De facto, se todas as
coisas « têm a sua subsistência » n’Aquele que existe « antes de todas as coisas
» (Cl 1, 17), então quem constrói a própria vida sobre
a sua Palavra edifica de modo verdadeiramente sólido e duradouro. A
Palavra de Deus impele-nos a mudar o nosso conceito de realismo: realista é
quem reconhece o fundamento de tudo no Verbo de Deus. Isto revela-se particularmente necessário no
nosso tempo, em que manifestam o seu caráter efêmero muitas coisas com as quais
se contava para construir a vida e sobre as quais se era tentado a colocar a
própria esperança. Mais cedo ou mais tarde, o ter, o prazer e o poder
manifestam-se incapazes de realizar as aspirações mais profundas do coração do
homem. De fato, para edificar a própria vida, ele tem necessidade de
alicerces sólidos, que permaneçam mesmo quando falham as certezas humanas. Na
realidade, já que « para sempre, Senhor, como os céus, subsiste a vossa palavra
» e a fidelidade do Senhor « atravessa as gerações » (Sl
119, 89-90), quem constrói sobre esta palavra, edifica a
casa da própria vida sobre a rocha (cf. Mt 7,
24). Que o nosso coração possa dizer a Deus cada dia: « Sois o meu abrigo, o
meu escudo, na vossa palavra pus a minha esperança » (Sl
119, 114), e possamos agir cada dia confiando no
Senhor Jesus como São Pedro: « Porque Tu o dizes, lançarei as redes » (L
c 5, 5).
Cristologia
da Palavra
11. A
partir deste olhar sobre a realidade como obra da Santíssima Trindade, através
do Verbo divino, podemos compreender as palavras do autor da Carta
aos Hebreus: « Tendo Deus falado outrora aos nossos pais,
muitas vezes e de muitas maneiras, pelos Profetas, agora falou-nos nestes
últimos tempos pelo Filho, a Quem constituiu herdeiro de tudo e por Quem
igualmente criou o mundo » (Hb 1, 1-2). É estupendo
observar como todo o Antigo Testamento se nos apresenta já como história na
qual Deus comunica a sua Palavra: de fato, « tendo estabelecido aliança com
Abraão (cf. Gn 24 15, 18), e com o povo
de Israel por meio de Moisés (cf. Ex 24, 8), revelou-Se ao
Povo escolhido como único Deus verdadeiro e vivo, em palavras e obras, de tal
modo que Israel pudesse conhecer por experiência os planos de Deus sobre os
homens, os compreendesse cada vez mais profunda e claramente, ouvindo o mesmo
Deus falar por boca dos profetas, e os difundisse mais amplamente entre os
homens (cf. Sl 21, 28-29; 95, 1-3; Is
2, 1-4; Jr 3, 17) ». Esta
condescendência de Deus realiza-se, de modo insuperável, na encarnação do
Verbo. A Palavra eterna que se exprime na criação e comunica na história da
salvação, tornou-se em Cristo um homem, « nascido de mulher » (Gl
4, 4). Aqui a Palavra não se exprime primariamente num discurso, em
conceitos ou regras; mas vemo-nos colocados diante da própria pessoa de Jesus.
A sua história, única e singular, é a palavra definitiva
que Deus diz à humanidade. Daqui se compreende por que motivo, « no início do
ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande idéia, mas o encontro com
um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta
forma, o rumo decisivo ».33 A renovação deste encontro e desta consciência gera
no coração dos fiéis a maravilha pela iniciativa divina, que o
homem, com as suas próprias capacidades racionais e imaginação, jamais teria
podido conceber. Trata-se de uma novidade inaudita e humanamente inconcebível: «
O Verbo fez-Se carne e habitou entre nós » (Jo 1,
14a). Estas expressões não indicam uma figura retórica, mas uma experiência vivida. Quem
a refere é São João, testemunha ocular: « Nós vimos a sua glória, glória que
Lhe vem do Pai, como Filho único cheio de graça e de verdade » (Jo
1, 14b). A fé apostólica testemunha que a Palavra eterna Se fez Um de
nós. A Palavra divina exprime-se verdadeiramente em palavras
humanas.
12. A
tradição patrística e medieval, contemplando esta « Cristologia da Palavra »,
utilizou uma sugestiva expressão: O Verbo abreviou-Se.34 «
Na sua tradução grega do Antigo Testamento, os Padres da Igreja encontravam uma
frase do profeta Isaías – que o próprio São Paulo cita – para mostrar como os
caminhos novos de Deus estivessem já preanunciados no Antigo Testamento. Eis a
frase: “O Senhor compendiou a sua Palavra, abreviou--a” (Is
10, 23; Rm 9, 28). (…) O próprio
Filho é a Palavra, é o Logos: a Palavra eterna fez-Se
pequena; tão pequena que cabe numa manjedoura. Fez--Se criança, para que a
Palavra possa ser compreendida por nós ».35 Desde então a Palavra já não é
apenas audível, não possui somente uma voz; agora a Palavra tem um rosto, que
por isso mesmo podemos ver: Jesus de Nazaré. Repassando a narração dos
Evangelhos, notamos como a própria humanidade de Jesus se manifesta em toda a
sua singularidade precisamente quando referida à Palavra de Deus. De fato, na
sua humanidade perfeita, Ele realiza a vontade do Pai a todo o momento; Jesus
ouve a sua voz e obedece-Lhe com todo o seu ser; conhece o Pai e observa a sua
palavra (cf. Jo 8, 55); comunica-nos as
coisas do Pai (cf. Jo 12, 50); « dei-lhes as
palavras que Tu Me deste » (Jo 17, 8). Assim Jesus
mostra que é o Logos divino que Se dá a nós,
mas é também o novo Adão, o homem verdadeiro, aquele que cumpre em cada momento
não a própria vontade mas a do Pai. Ele « crescia em sabedoria, em estatura e
em graça, diante de Deus e dos homens » (L c 2,
52). De maneira perfeita, escuta, realiza em Si mesmo e comunica-nos a Palavra
divina (cf. L c 5, 1). Por fi m, a
missão de Jesus cumpre-se no Mistério Pascal: aqui vemo-nos colocados diante da
« Palavra da cruz » (cf. 1 Cor 1, 18). O Verbo emudece, torna-se
silêncio de morte, porque Se « disse » até calar, nada retendo do que nos devia
comunicar. Sugestivamente os Padres da Igreja, ao contemplarem este mistério,
colocam nos lábios da Mãe de Deus esta expressão: « Está sem palavra a Palavra
do Pai, que fez toda a criatura que fala; sem vida estão os olhos apagados
d’Aquele a cuja palavra e aceno se move tudo o que tem vida ». Aqui verdadeiramente comunica-se-nos o amor « maior », aquele que dá a vida pelos
próprios amigos (cf. Jo 15, 13). Neste grande
mistério, Jesus manifesta-Se como a Palavra da Nova e Eterna Aliança: a
liberdade de Deus e a liberdade do homem encontraram--se definitivamente
na sua carne crucificada, num pacto indissolúvel, válido para
sempre. O próprio Jesus, na Última Ceia, ao instituir a Eucaristia falara de «
Nova e Eterna Aliança », estabelecida no seu sangue derramado (cf. Mt
26, 28; Mc 14, 24; L
c 22, 20), mostrando-Se como o verdadeiro Cordeiro imolado, no qual se
realiza a definitiva libertação da escravidão. No mistério refulgente da
ressurreição, este silêncio da Palavra manifesta-se com o seu significado
autêntico e definitivo. Cristo, Palavra de Deus encarnada, crucificada e
ressuscitada, é Senhor de todas as coisas; é o Vencedor, o Pantocrator, e
assim todas as coisas ficam recapituladas n’Ele para sempre (cf. Ef
1, 10). Por isso, Cristo é « a luz do mundo » (Jo
8, 12), aquela luz que « resplandece nas trevas » (Jo
1, 5) mas as trevas não a acolheram (cf. Jo
1, 5). Aqui se compreende plenamente o significado
do Salmo 119 quando a designa « farol para os meus
passos, e luz para os meus caminhos » (v. 105); esta luz decisiva na nossa estrada
é precisamente a Palavra que ressuscita. Desde o início, os cristãos tiveram
consciência de que, em Cristo, a Palavra de Deus está presente como Pessoa. A
Palavra de Deus é a luz verdadeira, de que o homem tem necessidade. Sim, na ressurreição,
o Filho de Deus surgiu como Luz do mundo. Agora, vivendo com Ele e para Ele, podemos
viver na luz.
13.
Chegados por assim dizer ao coração da « Cristologia da Palavra », é importante
sublinhar a unidade do desígnio divino no Verbo encarnado: é por isso que o
Novo Testamento nos apresenta o Mistério Pascal de acordo com as Sagradas Escrituras,
como a sua íntima realização. São Paulo, na Primeira Carta aos
Coríntios, afirma que Jesus Cristo morreu pelos nossos pecados, « segundo as
Escrituras » (15, 3) e que ressuscitou no terceiro dia « segundo as Escrituras
» (15, 4). Deste modo o Apóstolo põe o acontecimento da morte e ressurreição do
Senhor em relação com a história da Antiga Aliança de Deus com o seu povo. Mais
ainda, faz-nos compreender que esta história recebe de tal acontecimento a sua
lógica e o seu verdadeiro significado. No Mistério Pascal, realizam-se « as
palavras da Escritura, isto é, esta morte realizada “segundo
as Escrituras” é um acontecimento que contém em si mesmo um logos, uma
lógica: a morte de Cristo testemunha que a Palavra de Deus Se fez totalmente
“carne”, “história” humana ». Também a
ressurreição de Jesus acontece « ao terceiro dia, segundo as Escrituras »: dado
que a corrupção, segundo a interpretação judaica, começava depois do terceiro
dia, a palavra da Escritura cumpre-se em Jesus, que ressuscita antes de começar
a corrupção. Deste modo São Paulo, transmitindo fielmente
o ensinamento dos Apóstolos (cf. 1 Cor 15, 3), sublinha que a
vitória de Cristo sobre a morte se verifica através da força criadora da Palavra de Deus.
Esta força divina proporciona esperança e alegria: tal é, em definitivo,
o conteúdo libertador da revelação pascal. Na Páscoa, Deus revela-Se a Si mesmo
juntamente com a força do Amor trinitário que aniquila as forças destruidoras
do mal e da morte. Assim, recordando estes elementos essenciais da nossa fé,
podemos contemplar a unidade profunda entre criação e nova criação e de toda a
história da salvação em Cristo. Recorrendo a uma imagem, podemos comparar o
universo com uma partitura, um « livro » – diria Galileu Galilei – considerando-o
como « a obra de um Autor que Se exprime através da “sinfonia” da criação.
Dentro desta sinfonia, a determinado ponto aparece aquilo que, em linguagem
musical, se chama um “solo”, um tema confiado a um só instrumento ou a uma só voz; e é tão
importante que dele depende o significado da obra inteira. Este “solo” é Jesus (…). O
Filho do Homem compendia em Si mesmo a terra e o céu, a criação e o Criador, a
carne e o Espírito. É o centro do universo e da história, porque n’Ele se unem
sem se confundir o Autor e a sua obra ».
Dimensão
escatológica da Palavra de Deus
14.
Por meio de tudo isto, a Igreja exprime a consciência de se encontrar, em Jesus
Cristo, com a Palavra definitiva de Deus; Ele é « o Primeiro e o Último »
(Ap 1, 17). Deu à criação e à história o seu sentido
definitivo; por isso somos chamados a viver o tempo, a habitar na criação
de Deus dentro deste ritmo escatológico da Palavra. « Portanto, a economia
cristã, como nova e definitiva aliança, jamais passará, e não se há-de
esperar nenhuma outra revelação pública antes da gloriosa manifestação de nosso
Senhor Jesus Cristo (cf. 1 Tm 6, 14; Tt
2, 13) ».41 De fato, como recordaram os Padres durante o Sínodo, a «
especificidade do cristianismo manifesta-se no acontecimento que é Jesus
Cristo, ápice da Revelação, cumprimento das promessas de Deus e mediador do
encontro entre o homem e Deus. Ele, “que nos deu a conhecer Deus” (Jo
1, 18), é a Palavra única e definitiva confiada à humanidade ».42 São João da Cruz exprimiu
esta verdade de modo admirável: « Ao dar-nos, como nos deu, o seu Filho, que é
a sua Palavra – e não tem outra – Deus disse-nos tudo ao mesmo tempo e de uma
só vez nesta Palavra única e já nada mais tem para dizer (…). Porque o que
antes disse parcialmente pelos profetas, revelou-o totalmente, dando-nos o Todo
que é o seu Filho. E por isso, quem agora quisesse consultar a Deus ou
pedir-Lhe alguma visão ou revelação, não só cometeria um disparate, mas faria
agravo a Deus, por não pôr os olhos totalmente em Cristo e buscar fora d’Ele
outra realidade ou novidade ». Conseqüentemente, o Sínodo recomendou que « se
ajudassem os fiéis a bem distinguir a Palavra de Deus das revelações privadas »,44
cujo « papel não é (…) “completar” a Revelação definitiva
de Cristo, mas ajudar a vivê-la mais plenamente, numa determinada época
histórica ». O valor das revelações privadas é essencialmente diverso do da
única revelação pública: esta exige a nossa fé; de fato nela, por meio de
palavras humanas e da mediação da comunidade viva da Igreja, fala-nos o próprio
Deus. O critério da verdade de uma revelação privada é a sua orientação para o
próprio Cristo. Quando aquela nos afasta d’Ele, certamente não vem do Espírito
Santo, que nos guia no âmbito do Evangelho e não fora dele. A revelação privada
é uma ajuda para a fé, e manifesta-se como credível precisamente porque orienta
para a única revelação pública. Por isso, a aprovação eclesiástica de uma
revelação privada indica essencialmente que a respectiva mensagem não contém
nada que contradiga a fé e os bons costumes; é lícito torná-la pública, e os fiéis
são autorizados a prestar-lhe de forma prudente a sua adesão. Uma revelação
privada pode introduzir novas acentuações, fazer surgir novas formas de piedade
ou aprofundar antigas. Pode revestir-se de um certo caráter profético (cf. 1
Ts 5, 19-21) e ser uma válida ajuda para compreender e viver melhor o
Evangelho na hora atual; por isso não se deve desprezá-la. É uma ajuda, que é
oferecida, mas da qual não é obrigatório fazer uso. Em todo o caso, deve
tratar-se de um alimento para a fé, a esperança e a caridade, que são o caminho
permanente da salvação para todos.
A
Palavra de Deus e o Espírito Santo
15.
Depois de nos termos detido sobre a Palavra última e definitiva
de Deus ao mundo, é necessário recordar agora a missão do Espírito Santo relativamente
à Palavra divina. De fato, não é possível uma compreensão autêntica da
revelação cristã fora da ação do Paráclito. Isto deve-se ao fato de a
comunicação que Deus faz de Si mesmo implicar sempre a relação entre o Filho e
o Espírito Santo, a Quem Ireneu de Lião realmente chama « as duas mãos do Pai
».47 Aliás, é a Sagrada Escritura que nos indica a presença do Espírito Santo
na história da salvação e, particularmente, na vida de Jesus, o Qual é concebido
no seio da Virgem Maria por obra do Espírito Santo (cf. Mt
1, 18; L c 1, 35); ao iniciar a sua
missão pública nas margens do Jordão, vê-O descer sobre Si em forma de pomba
(cf. Mt 3, 16); neste mesmo Espírito, Jesus age, fala e
exulta (cf. L c 10, 21); é no Espírito
que Se oferece a Si mesmo (cf. Hb 9, 14). Quando está para
terminar a sua missão – segundo narra o evangelista São João –, o próprio Jesus
relaciona claramente o dom da sua vida com o envio do Espírito aos Seus (cf. Jo
16, 7). Depois Jesus ressuscitado, trazendo na sua carne os sinais da
paixão, derrama o Espírito (cf. Jo 20, 22), tornando os
discípulos participantes da sua própria missão (cf. Jo
20, 21). O Espírito Santo ensinará aos discípulos todas as coisas,
recordando-lhes tudo o que Cristo disse (cf. Jo 14,
26), porque será Ele, o Espírito de Verdade (cf. Jo
15, 26), a guiar os discípulos para a Verdade inteira (cf. Jo
16, 13). Por fi m, como se lê nos Atos
dos Apóstolos, o Espírito desce sobre os Doze reunidos em
oração com Maria no dia de Pentecostes (cf. 2, 1-4) e anima--os na missão de
anunciar a Boa Nova a todos os povos. Por conseguinte, a Palavra de Deus
exprime--se em palavras humanas graças à obra do Espírito Santo. A missão do
Filho e a do Espírito Santo são inseparáveis e constituem uma única economia da
salvação. O mesmo Espírito, que atua na encarnação do Verbo no seio da Virgem
Maria, guia Jesus ao longo de toda a sua missão e é prometido aos discípulos. O
mesmo Espírito que falou por meio dos profetas, sustenta e inspira a Igreja no
dever de anunciar a Palavra de Deus e na pregação dos Apóstolos; e, enfim, é
este Espírito que inspira os autores das Sagradas Escrituras.
16.
Conscientes deste horizonte pneumatológico, os Padres sinodais quiseram lembrar
a importância da ação do Espírito Santo na vida da Igreja e no coração dos fiéis
relativamente à Sagrada Escritura: sem a ação eficaz do
« Espírito da Verdade » (Jo 14, 16), não se podem
compreender as palavras do Senhor. Como recorda ainda Santo Ireneu: « Aqueles
que não participam do Espírito não recebem do peito da sua mãe [a Igreja] o
alimento da vida; nada recebem da fonte mais pura que brota do corpo de Cristo
». Tal como a Palavra de Deus vem até nós no corpo de Cristo, no corpo
eucarístico e no corpo das Escrituras por meio do Espírito Santo, assim também
só pode ser acolhida e compreendida verdadeiramente graças ao mesmo Espírito. Os
grandes escritores da tradição cristã são unânimes ao considerar o papel do
Espírito Santo na relação que os fiéis devem ter com as Escrituras. São João
Crisóstomo afirma que a Escritura « tem necessidade da revelação do Espírito, afim de
que, descobrindo o verdadeiro sentido das coisas que nela se encerram, disso
mesmo tiremos abundante proveito ». Também São Jerônimo está firmemente
convencido de que « não podemos chegar a compreender a Escritura sem a ajuda do
Espírito Santo que a inspirou ». Depois, São Gregório Magno sublinha, de modo
sugestivo, a obra do mesmo Espírito na formação e na interpretação da Bíblia: «
Ele mesmo criou as palavras dos Testamentos Sagrados, Ele mesmo as desvendou ».
Ricardo de São Vítor recorda que são necessários « olhos de pomba », iluminados
e instruídos pelo Espírito, para compreender o texto sagrado. Desejaria ainda
sublinhar como é significativo o testemunho a respeito da relação entre
o Espírito Santo e a Escritura que encontramos nos textos litúrgicos, onde a
Palavra de Deus é proclamada, escutada e explicada aos fiéis. É
o caso de antigas orações que, em forma de epiclese, invocam o Espírito antes
da proclamação das leituras: « Mandai o vosso Espírito Santo Paráclito às
nossas almas e fazei-nos compreender as Escrituras por Ele inspiradas; e
concedei-me interpretá-las de maneira digna, para que os fiéis
aqui reunidos delas tirem proveito ». De igual modo, encontramos orações que,
no fim da homilia, novamente invocam de Deus o dom do Espírito sobre os fiéis: «
Deus salvador (…), nós Vos pedimos por este povo: Mandai sobre ele o Espírito
Santo; o Senhor Jesus venha visitá-lo, fale à mente de todos e abra os corações
à fé e conduza para Vós as nossas almas, Deus das Misericórdias ». Por tudo
isto bem podemos compreender que não é possível alcançar o sentido da Palavra,
se não se acolhe a ação do Paráclito na Igreja e nos corações dos fiéis.
Tradição
e Escritura
17.
Reafirmando o vínculo profundo entre o Espírito Santo e a Palavra de Deus,
lançamos também as bases para compreender o sentido e o valor decisivo da
Tradição viva e das Sagradas Escrituras na Igreja. De fato, uma vez que Deus «
amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único » (Jo
3, 16), a Palavra divina, pronunciada no tempo, deu-Se e «
entregou-Se » à Igreja definitivamente para que o anúncio da salvação possa
ser eficazmente comunicado em todos os tempos e lugares. Como nos recorda a
Constituição dogmática Dei Verbum, o
próprio Jesus Cristo « mandou aos Apóstolos que pregassem a todos, como fonte
de toda a verdade salutar e de toda a disciplina de costumes, o Evangelho
prometido antes pelos profetas e por Ele cumprido e promulgado pessoalmente,
comunicando-lhes assim os dons divinos. Isto foi realizado com fidelidade
tanto pelos Apóstolos que, na sua pregação oral, exemplos e instituições,
transmitiram aquilo que tinham recebido dos lábios, trato e obras de Cristo, e
o que tinham aprendido por inspiração do Espírito Santo, como por aqueles
Apóstolos e varões apostólicos que, sob a inspiração do Espírito Santo,
escreveram a mensagem da salvação ». Além disso o Concílio Vaticano II recorda que
esta Tradição de origem apostólica é realidade viva e dinâmica: ela « progride
na Igreja sob a assistência do Espírito Santo »; não no sentido de mudar na sua
verdade, que é perene, mas « progride a percepção tanto das coisas como das
palavras transmitidas », com a contemplação e o estudo, com a inteligência dada
por uma experiência espiritual mais profunda, e por meio da « pregação daqueles
que, com a sucessão do episcopado, receberam o carisma da verdade ». A Tradição
viva é essencial para que a Igreja, no tempo, possa crescer na compreensão da
verdade revelada nas Escrituras; de fato, « mediante a mesma Tradição, conhece
a Igreja o cânon inteiro dos livros sagrados, e a própria Sagrada Escritura
entende-se nela mais profundamente e torna-se incessantemente operante ». Em última análise, é a Tradição viva da Igreja
que nos faz compreender adequadamente a Sagrada Escritura como Palavra de Deus.
Embora o Verbo de Deus preceda e exceda a Sagrada Escritura, todavia, enquanto inspirada
por Deus, esta contém a Palavra divina (cf. 2 Tm 3, 16)
« de modo totalmente singular”
18.
Disto conclui-se como é importante que o Povo de Deus seja educado e formado
claramente para se abeirar das Sagradas Escrituras na sua relação com a
Tradição viva da Igreja, reconhecendo nelas a própria Palavra de Deus. É muito importante,
do ponto de vista da vida espiritual, fazer crescer esta atitude nos fiéis. A
este respeito pode ajudar a recordação de uma analogia desenvolvida pelos
Padres da Igreja entre o Verbo de Deus que Se faz « carne » e a Palavra que se
faz « livro ».60 A Constituição dogmática Dei Verbum, ao
recolher esta tradição antiga segundo a qual « o corpo do Filho é a Escritura
que nos foi transmitida » – como afirma Santo Ambrósio –, declara: « As palavras de
Deus, com efeito, expressas por línguas humanas, tornaram-se intimamente semelhantes
à linguagem humana, como outrora o Verbo do eterno Pai Se assemelhou aos homens
tomando a carne da fraqueza humana ». Vista assim, a Sagrada Escritura, apesar
da multiplicidade das suas formas e conteúdos, aparece-nos como uma realidade
unitária. De fato, « através de todas as palavras da Sagrada Escritura, Deus não
diz mais que uma só palavra, o seu Verbo único, em quem totalmente Se diz (cf. Hb
1, 1-3) », como claramente afirmava já Santo Agostinho: « Lembrai-vos de que o
discurso de Deus que se desenvolve em todas as Escrituras é um só, e um só é o
Verbo que Se faz ouvir na boca de todos os escritores sagrados ». Em última
análise, através da obra do Espírito Santo e sob a guia do Magistério, a Igreja
transmite a todas as gerações aquilo que foi revelado em Cristo. A Igreja vive
na certeza de que o seu Senhor, tendo falado outrora, não cessa de comunicar hoje
a sua Palavra na Tradição viva da Igreja e na Sagrada Escritura. De fato, a
Palavra de Deus dá-se a nós na Sagrada Escritura, enquanto testemunho inspirado
da revelação, que, juntamente com a Tradição viva da Igreja, constitui a regra
suprema da fé.
Sagrada
Escritura, inspiração e verdade
19. Um
conceito-chave para receber o texto sagrado como Palavra de Deus em palavras humanas
é, sem dúvida, o de inspiração.
Também aqui se pode sugerir uma analogia: assim como o Verbo de Deus Se fez
carne por obra do Espírito Santo no seio da Virgem Maria, assim também a
Sagrada Escritura nasce do seio da Igreja por obra do mesmo Espírito. A Sagrada
Escritura é « Palavra de Deus enquanto foi escrita por inspiração do Espírito
de Deus ». Deste modo se reconhece toda
a importância do autor humano que escreveu os textos inspirados e, ao mesmo
tempo, do próprio Deus como verdadeiro autor. Daqui se vê com toda a clareza –
lembraram os Padres sinodais – como o tema da inspiração é decisivo para uma
adequada abordagem das Escrituras e para a sua correta hermenêutica, que deve,
por sua vez, ser feita no mesmo Espírito em
que foi escrita. Quando esmorece em nós a consciência da inspiração, corre-se o
risco de ler a Escritura como objeto de curiosidade histórica e não como obra
do Espírito Santo, na qual podemos ouvir a própria voz do Senhor e conhecer a sua
presença na história. Além disso, os Padres sinodais puseram em evidência como
ligado com o tema da inspiração esteja também o tema da verdade
das Escrituras. Por isso,
um aprofundamento da dinâmica da inspiração levará, sem dúvida, também a uma maior
compreensão da verdade contida nos livros sagrados. Como indica a doutrina
conciliar sobre o tema, os livros inspirados ensinam a verdade: « E assim, como
tudo quanto afirmam os autores inspirados ou hagiógrafos deve ser tido como afirmado
pelo Espírito Santo, por isso mesmo se deve acreditar que os livros da
Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus, para
nossa salvação, quis que fosse consignada nas sagradas Letras. Por isso, “toda
a Escritura é divinamente inspirada e útil para ensinar, para corrigir, para
instruir na justiça: para que o homem de Deus seja perfeito, experimentado em todas
as boas obras (2 Tm 3, 16-17 gr.)” ». Não há
dúvida que a reflexão teológica sempre considerou inspiração e
verdade como dois conceitos-chave para uma hermenêutica eclesial das Sagradas Escrituras.
No entanto, deve-se reconhecer a necessidade atual de um condigno aprofundamento
destas realidades, para se responder melhor às exigências relativas à
interpretação dos textos sagrados segundo a sua natureza. Nesta perspectiva,
desejo vivamente que a investigação possa avançar neste campo e dê fruto para a
ciência bíblica e para a vida espiritual dos fiéis. Deus
Pai,
fonte e origem da Palavra
20. A
economia da revelação tem o seu início e foram feitos os céus, pelo sopro da
sua boca todos os seus exércitos » (Sl 33, 6). É Ele que faz
resplandecer « o conhecimento da glória de Deus, que se reflete na
face de Cristo » (2 Cor 4, 6; cf. Mt
16, 17; L c 9, 29). No Filho, « Logos
feito carne » (cf. Jo 1, 14), que veio para
cumprir a vontade d’Aquele que O enviou (cf. Jo 4,
34), Deus, fonte da revelação, manifesta-Se como Pai e leva à perfeição a
educação divina do homem, já anteriormente animada pela palavra dos profetas e
pelas maravilhas realizadas na criação e na história do seu povo e de todos os
homens. O apogeu da revelação de Deus Pai é oferecido pelo Filho com o dom do
Paráclito (cf. Jo 14, 16), Espírito do Pai
e do Filho, que nos « guiará para a verdade total » (Jo
16, 13). Deste modo, todas as promessas de Deus se tornam « sim » em
Jesus Cristo (cf. 2 Cor 1, 20). Abre-se assim,
para o homem, a possibilidade de percorrer o caminho que o conduz ao Pai (cf. Jo
14, 6), para que no fi m « Deus seja tudo em todos » (1
Cor 15, 28).
21.
Como mostra a cruz de Cristo, Deus fala também por meio do seu silêncio. O
silêncio de Deus, a experiência da distância do Onipotente e Pai é etapa
decisiva no caminho terreno do Filho de Deus, Palavra encarnada. Suspenso no madeiro
da cruz, o sofrimento que Lhe causou tal silêncio fê-Lo lamentar: « Meu Deus,
meu Deus, porque Me abandonaste? » (Mc 15, 34; Mt
27, 46). Avançando na obediência até ao último respiro, na
obscuridade da morte, Jesus invocou o Pai. A Ele Se entregou no momento da
passagem, através da morte, para a vida eterna: « Pai, nas tuas mãos, entrego o
meu espírito » (L c 23, 46). Esta experiência
de Jesus é sintomática da situação do homem que, depois de ter escutado e reconhecido
a Palavra de Deus, deve confrontar--se também com o seu silêncio. É uma
experiência vivida por muitos Santos e místicos, e que ainda hoje faz parte do
caminho de muitos fiéis. O silêncio de Deus prolonga as suas
palavras anteriores. Nestes momentos obscuros, Ele fala no mistério do seu
silêncio. Portanto, na dinâmica da revelação cristã, o silêncio aparece como
uma expressão importante da Palavra de Deus.
A
RESPOSTA DO HOMEM A DEUS QUE FALA
Chamados
a entrar na Aliança com Deus
22. Ao
sublinhar a pluralidade de formas da Palavra, pudemos ver através de quantas
modalidades Deus fala e vem ao encontro do homem, dando-Se a conhecer no
diálogo. É certo que o diálogo, como afirmaram os Padres sinodais, « quando se refere à
Revelação comporta o primado da
Palavra de Deus dirigida ao homem ». O
mistério da Aliança exprime esta relação entre Deus que chama através da sua
Palavra e o homem que responde, sabendo claramente que não se trata de um
encontro entre dois contraentes iguais; aquilo que designamos por Antiga e Nova
Aliança não é um ato de entendimento entre duas partes iguais, mas puro dom de
Deus. Por meio deste dom do seu amor, Ele, superando toda a distância, torna-nos
verdadeiramente seus « parceiros », de modo a realizar o mistério nupcial do
amor entre Cristo e a Igreja. Nesta perspectiva, todo o homem aparece como o
destinatário da Palavra, interpelado e chamado a entrar, por uma resposta
livre, em tal diálogo de amor. Assim Deus torna cada um de nós capaz de escutar
e responder à Palavra divina. O homem é criado na Palavra e
vive nela; e não se pode compreender a si mesmo, se não se abre a este diálogo.
A Palavra de Deus revela a natureza filial e relacional da nossa vida. Por graça,
somos verdadeiramente chamados a configurar-nos com Cristo, o Filho do Pai, e a ser
transformados n’Ele. Deus escuta o homem e responde às suas
perguntas 23. Neste diálogo com Deus, compreendemo-nos a
nós mesmos e encontramos resposta para as perguntas mais profundas que habitam
no nosso coração. De fato, a Palavra de Deus não se contrapõe ao homem, nem
mortifica os seus anseios verdadeiros; pelo contrário, ilumina-os, purifica-os
e realiza-os. Como é importante, para o nosso tempo, descobrir que só Deus
responde à sede que está no coração de cada homem!
Infelizmente na nossa época, sobretudo no Ocidente, difundiu-se a idéia de que
Deus é alheio à vida e aos problemas do homem; pior ainda, de que a sua presença
pode até ser uma ameaça à autonomia humana. Na realidade, toda a economia da
salvação mostra-nos que Deus fala e intervém na história a favor do homem e da
sua salvação integral. Por conseguinte é decisivo, do ponto de vista pastoral, apresentar
a Palavra de Deus na sua capacidade de dialogar com os problemas que o homem deve
enfrentar na vida diária. Jesus apresenta-Se-nos precisamente como Aquele que
veio para que pudéssemos ter a vida em abundância (cf. Jo
10, 10). Por isso, devemos fazer todo o esforço para mostrar a
Palavra de Deus precisamente como abertura aos próprios problemas, como
resposta às próprias perguntas, uma dilatação dos próprios valores e,
conjuntamente, uma satisfação das próprias aspirações. A pastoral da Igreja
deve ilustrar claramente como Deus ouve a necessidade do homem e o seu apelo.
São Boaventura afirma no Breviloquium: « O
fruto da Sagrada Escritura não é um fruto qualquer, mas a plenitude da
felicidade eterna. De fato, a Sagrada Escritura é precisamente o livro no qual
estão escritas palavras de vida eterna, porque não só acreditamos, mas também
possuímos a vida eterna, em que veremos, amaremos e serão realizados todos os
nossos desejos ».
Dialogar
com Deus através das suas palavras
24. A
Palavra divina introduz cada um de nós no diálogo com o Senhor: o Deus que
fala, ensina-nos como podemos falar com Ele. Espontaneamente o pensamento
detém-se no Livro dos Salmos, onde
Ele nos fornece as palavras com que podemos dirigir-nos a Ele, levar a nossa
vida para o colóquio com Ele, transformando assim a própria vida num movimento
para Deus. De fato, nos Salmos,
encontramos articulada toda a gama de sentimentos que o homem pode ter na sua
própria existência e que são sapientemente colocados diante de Deus; alegria e
sofrimento, angústia e esperança, medo e perplexidade encontram lá a sua
expressão. E, juntamente com os Salmos, pensamos também em numerosos textos da
Sagrada Escritura que apresentam o homem a dirigir-se a Deus sob a forma de
oração de intercessão (cf. Ex 33, 12-16), de canto de
júbilo pela vitória (cf. Ex 15), ou de lamento no
desempenho da própria missão (cf. Jr 20, 7-18). Deste modo, a
palavra que o homem dirige a Deus torna-se também Palavra de Deus, como confirmação
do caráter dialógico de toda a revelação cristã,74 e a existência inteira do
homem torna-se um diálogo com Deus que fala e escuta, que chama e dinamiza a
nossa vida. Aqui a Palavra de Deus revela que toda a existência do homem está
sob o chamamento divino.
A
Palavra de Deus e a fé
25. «
A Deus que Se revela é devida “a obediência da fé” (Rm
16, 26; cf. Rm 1, 5; 2 Cor
10, 5-6); pela fé, o homem entrega-se total e livremente a Deus
oferecendo a Deus revelador “o obséquio pleno da inteligência e da vontade” e
prestando voluntário assentimento à sua revelação ». Com estas palavras, a Constituição dogmática Dei
Verbum exprimiu de modo claro a atitude do homem diante de Deus. A
resposta própria do homem a Deus, que fala, é a fé. Isto
coloca em evidência que, « para acolher a Revelação, o homem deve abrir a mente
e o coração à ação do Espírito Santo que lhe faz compreender a Palavra de Deus
presente nas Sagradas Escrituras ». De
fato, é precisamente a pregação da Palavra divina que faz surgir a fé, pela qual
aderimos de coração à verdade que nos foi revelada e entregamos todo o nosso
ser a Cristo: « A fé vem da pregação, e a pregação pela palavra de Cristo » (Rm
10, 17). Toda a história da salvação nos mostra progressivamente esta
ligação íntima entre a Palavra de Deus e a fé que se realiza no encontro com
Cristo. De fato, com Ele a fé toma a forma de encontro com uma Pessoa à qual se
confia a própria vida. Cristo Jesus continua hoje presente, na história,
no seu corpo que é a Igreja; por isso, o ato da nossa fé é um ato
simultaneamente pessoal e eclesial.
O
pecado como não escuta da Palavra de Deus
26. A
Palavra de Deus revela inevitavelmente também a dramática possibilidade que tem
a liberdade do homem de subtrair-se a este diálogo de aliança com Deus, para o
qual fomos criados. De fato, a Palavra divina desvenda também o pecado que
habita no coração do homem. Muitas vezes encontramos, tanto no Antigo como no
Novo Testamento, a descrição do pecado como não escuta da
Palavra, como ruptura da Aliança e, conseqüentemente,
como fechar-se a Deus que chama à comunhão com Ele.78 Com efeito, a Sagrada Escritura
mostra-nos como o pecado do homem é essencialmente desobediência e « não escuta
». Precisamente a obediência radical de Jesus até à morte de Cruz (cf. Fl
2, 8) desmascara totalmente este pecado. Na sua obediência,
realiza-se a Nova Aliança entre Deus e o homem e é-nos concedida a possibilidade
da reconciliação. De fato, Jesus foi mandado pelo Pai como vítima de expiação pelos
nossos pecados e pelos do mundo inteiro (cf. 1 Jo 2, 2;
4, 10; Hb 7, 27). Assim, é-nos oferecida misericordiosamente
a possibilidade da redenção e o início de uma vida nova em Cristo. Por isso, é
importante que os fiéis sejam educados a reconhecer a raiz do pecado
na não escuta da Palavra do Senhor e a acolher em Jesus, Verbo de Deus, o
perdão que nos abre à salvação.
Maria
« Mater Verbi Dei » e « Mater fi dei »
27. Os
Padres sinodais declararam que o objetivo fundamental da XII Assembleia foi «
renovar 78 Por exemplo Dt
28, 1-2.15.45; 32, 1; nos grandes profetas cf. Jr
7, 22-28; Ez 2, 8; 3, 10; 6, 3; 13, 2;
mas também nos menores: cf. Zc 3, 8. Em São Paulo, cf. Rm
10, 14-18; 1 Ts 2, 13. a fé da Igreja na
Palavra de Deus »; por isso é necessário olhar para uma pessoa em Quem a
reciprocidade entre Palavra de Deus e fé foi perfeita, ou seja, para a Virgem
Maria, « que, com o seu sim à Palavra da Aliança e à sua missão, realiza
perfeitamente a vocação divina da humanidade ». A realidade humana, criada por
meio do Verbo, encontra a sua figura perfeita precisamente na fé obediente de
Maria. Desde a Anunciação ao Pentecostes, vemo-La como mulher totalmente
disponível à vontade de Deus. É a Imaculada Conceição, Aquela que é « cheia de
graça » de Deus (cf. L c 1, 28),
incondicionalmente dócil à Palavra divina (cf. L
c 1, 38). A sua fé obediente face à iniciativa de Deus plasma cada
instante da sua vida. Virgem à escuta, vive em plena sintonia com a Palavra
divina; conserva no seu coração os acontecimentos do seu Filho, compondo-os por
assim dizer num único mosaico (cf. L c 2, 19.51). No nosso
tempo, é preciso que os fiéis sejam ajudados a descobrir melhor a ligação
entre Maria de Nazaré e a escuta crente da Palavra divina. Exorto também os
estudiosos a aprofundarem ainda mais a relação entre mariologia
e teologia da Palavra. Daí poderá vir grande benefício tanto para a vida
espiritual como para os estudos teológicos e bíblicos. De fato, quando a
inteligência da fé olha um tema à luz de Maria, coloca-se no centro mais íntimo
da verdade cristã. Na realidade, a encarnação do Verbo não pode ser pensada
prescindindo da liberdade desta jovem mulher que, com o seu assentimento,
coopera de modo decisivo para a entrada do Eterno no tempo. Ela é a figura
da Igreja à escuta da Palavra de Deus que nela Se fez carne. Maria é também
símbolo da abertura a Deus e aos outros; escuta ativa, que interioriza, assimila,
na qual a Palavra se torna forma de vida.
28.
Nesta ocasião, desejo chamar a atenção para a familiaridade de Maria com a
Palavra de Deus. Isto transparece com particular vigor no Magnificat. Aqui,
em certa medida, vê-se como Ela Se identifica com a Palavra, e nela entra; neste
maravilhoso cântico de fé, a Virgem exalta o Senhor com a sua própria Palavra:
« O Magnificat – um retrato,
por assim dizer, da sua alma – é inteiramente tecido de fi os da
Sagrada Escritura, com fios tirados da Palavra de Deus. Desta maneira se manifesta
que Ela Se sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus, dela sai e a ela
volta com naturalidade. Fala e pensa com a Palavra de Deus; esta torna-se
Palavra d’Ela, e a sua palavra nasce da Palavra de Deus. Além disso, fi ca
assim patente que os seus pensamentos estão em sintonia com os de Deus, que o
d’Ela é um querer juntamente com Deus. Vivendo intimamente permeada pela Palavra
de Deus, Ela pôde tornar-Se mãe da Palavra encarnada ». Além disso, a
referência à Mãe de Deus mostra-nos como o agir de Deus no mundo envolve sempre
a nossa liberdade, porque, na fé, a Palavra divina transforma-nos. Também a
nossa ação apostólica e pastoral não poderá jamais ser eficaz, se
não aprendermos de Maria a deixar-nos plasmar pela ação de Deus em nós: « A
atenção devota e amorosa à figura de Maria, como modelo e arquétipo da fé da
Igreja, é de importância capital para efetuar também nos nossos dias uma
mudança concreta de paradigma na relação da Igreja com a Palavra, tanto na
atitude de escuta orante como na generosidade do compromisso em prol da missão
e do anúncio ». Contemplando na Mãe de Deus uma vida modelada totalmente pela
Palavra, descobrimo-nos também nós chamados a entrar no mistério da fé, pela
qual Cristo vem habitar na nossa vida. Como nos recorda Santo Ambrósio, cada
cristão que crê, em certo sentido, concebe e gera em si mesmo o Verbo de Deus:
se há uma só Mãe de Cristo segundo a carne, segundo a fé, porém, Cristo é o
fruto de todos. Portanto, o que aconteceu em Maria pode voltar a acontecer em
cada um de nós diariamente na escuta da Palavra e na celebração dos
Sacramentos.
A
HERMENÊUTICA DA SAGRADA ESCRITURA NA IGREJA
A
Igreja, lugar originário da hermenêutica da Bíblia
29.
Outro grande tema surgido durante o Sínodo, sobre o qual quero debruçar-me
agora, é a interpretação da Sagrada Escritura na Igreja. E
precisamente a ligação intrínseca entre Palavra e fé põe em evidência que a
autêntica hermenêutica da Bíblia só pode ser feita na fé eclesial, que tem o
seu paradigma no sim de Maria. A este respeito, São Boaventura afirma
que, sem a fé, não há chave de acesso ao texto sagrado: « Esta é o conhecimento
de Jesus Cristo, do qual têm origem, como de uma fonte, a segurança e a
inteligência de toda a Sagrada Escritura. Por isso é impossível que alguém possa
entrar para a conhecer, se antes não tiver a fé infusa de Cristo que é
lanterna, porta e também fundamento de toda a Escritura ». E São Tomás de Aquino, mencionando Santo
Agostinho, insiste vigorosamente: « A letra do Evangelho também mata, se faltar
a graça interior da fé que cura ». Isto permite-nos assinalar um critério
fundamental da hermenêutica bíblica: o lugar originário da interpretação da
Escritura é a vida da Igreja. Esta afirmação não indica a referência eclesial como um
critério extrínseco ao qual se devem submeter os exegetas, mas é uma exigência
da própria realidade das Escrituras e do modo como se formaram ao longo do
tempo. De fato, « as tradições de fé formavam o ambiente vital onde se inseriu
a atividade literária dos autores da Sagrada Escritura. Esta inserção englobava
também a participação na vida litúrgica e na atividade externa das comunidades,
no seu mundo espiritual, na sua cultura e nas vicissitudes do seu destino
histórico. Por isso, de modo semelhante, a interpretação da Sagrada Escritura
exige a participação dos exegetas em toda a vida e em toda a fé da comunidade crente
do seu tempo ».86 Por conseguinte, « devendo a Sagrada Escritura ser lida e interpretada
com o mesmo Espírito com que foi escrita », é preciso que os exegetas, os teólogos e todo
o Povo de Deus se abeirem dela por aquilo que realmente é: como Palavra de Deus
que Se nos comunica através de palavras humanas (cf. 1
Ts 2, 13). Trata-se de um dado constante e implícito na própria Bíblia: «
Nenhuma profecia da Escritura é de interpretação particular, porque jamais uma
profecia foi proferida pela vontade dos homens. Inspirados pelo Espírito Santo
é que os homens santos falaram em nome de Deus » (2
Pd 1, 20-21). Aliás, é precisamente a fé da Igreja que reconhece na
Bíblia a Palavra de Deus; como admiravelmente diz Santo Agostinho, « não
acreditaria no Evangelho se não me movesse a isso a autoridade da Igreja Católica
». O Espírito Santo, que anima a vida da Igreja, é que torna capaz de
interpretar autenticamente as Escrituras. A Bíblia é o livro da Igreja e, a
partir da imanência dela na vida eclesial, brota também a sua verdadeira
hermenêutica.
30.
São Jerônimo recorda que, sozinhos, nunca poderemos ler a Escritura.
Encontramos demasiadas portas fechadas e caímos facilmente em erro. A Bíblia
foi escrita pelo Povo de Deus e para o Povo de Deus, sob a inspiração do
Espírito Santo. Somente com o « nós », isto é, nesta comunhão com o Povo de Deus,
podemos realmente entrar no núcleo da verdade que o próprio Deus nos quer
dizer. Aquele grande estudioso, para quem « a ignorância das Escrituras é
ignorância de Cristo », afirma que o caráter eclesial da interpretação
bíblica não é uma exigência imposta do exterior; o Livro é precisamente a voz
do Povo de Deus peregrino, e só na fé deste Povo é que estamos, por assim
dizer, na tonalidade justa para compreender a Sagrada Escritura. Uma autêntica interpretação
da Bíblia deve estar sempre em harmônica concordância com a fé da Igreja Católica.
Jerônimo escrevia assim a um sacerdote: « Permanece firmemente
apegado à doutrina tradicional que te foi ensinada, para que possas exortar
segundo a sã doutrina e rebater aqueles que a contradizem ». Abordagens do texto
sagrado que prescindam da fé podem sugerir elementos interessantes ao
deterem-se sobre a estrutura do texto e as suas formas; inevitavelmente, porém,
tal tentativa seria apenas preliminar e estruturalmente incompleta. De fato,
como foi afirmado pela Pontifícia Comissão Bíblica, repercutindo um princípio
compartilhado na hermenêutica moderna, « o justo conhecimento do texto bíblico
só é acessível a quem tem uma afinidade vital com aquilo de que fala o texto ».92
Tudo isto põe em relevo a relação entre a vida espiritual e a hermenêutica da
Escritura. De fato, « com o crescimento da vida no Espírito, cresce também no
leitor a compreensão das realidades de que fala o texto bíblico ». Uma intensa
e verdadeira experiência eclesial não pode deixar de incrementar a inteligência
da fé autêntica a respeito da Palavra de Deus; e, vice-versa, a leitura na fé
das Escrituras faz crescer a própria vida eclesial. Daqui podemos compreender de
um modo novo a conhecida afirmação de São Gregório Magno: « As palavras
divinas crescem juntamente com quem as lê ».94 Assim, a escuta da Palavra de
Deus introduz e incrementa a comunhão eclesial com todos os que caminham na fé.
«
A alma da sagrada teologia »
31. «
O estudo destes sagrados livros deve ser como que a alma da sagrada teologia »:
esta afirmação da Constituição dogmática Dei Verbum foi-se-nos
tornando ao longo destes anos cada vez mais familiar. Podemos dizer que o
período sucessivo ao Concílio Vaticano II, no que se refere aos estudos
teológicos e exegéticos, citou freqüentemente esta frase como símbolo do
renovado interesse pela Sagrada Escritura. Também a XII Assembleia do Sínodo
dos Bispos se referiu várias vezes a esta conhecida afirmação,
para indicar a relação entre investigação histórica e hermenêutica da fé aplicadas
ao texto sagrado. Nesta perspectiva, os Padres reconheceram, com alegria, o
crescimento do estudo da Palavra de Deus na Igreja ao longo dos últimos decênios
e exprimiram um vivo agradecimento aos numerosos
exegetas e teólogos que, com a sua dedicação, empenho e competência,
deram e ainda dão uma contribuição essencial para o aprofundamento do sentido
das Escrituras, enfrentando os problemas complexos que o nosso tempo coloca à
investigação bíblica. Expressaram sentimentos de sincera
gratidão também aos membros da Pontifícia Comissão Bíblica que se
sucederam nestes últimos anos e que, em estreita relação com a Congregação para
a Doutrina da Fé, continuam a dar o seu qualificado
contributo para enfrentar questões peculiares inerentes ao estudo da Sagrada
Escritura. Além disso, o Sínodo sentiu a necessidade de se interrogar sobre o estado
dos estudos bíblicos atuais e sobre a sua relevância no âmbito teológico. De fato,
da relação fecunda entre exegese e teologia depende, em grande parte, a eficácia
pastoral da ação da Igreja e da vida espiritual dos fiéis.
Por isso, considero importante retomar algumas reflexões
surgidas no debate havido sobre este tema nos trabalhos do Sínodo.
Desenvolvimento
da investigação bíblica e Magistério eclesial
32. Em
primeiro lugar, é preciso reconhecer os benefícios que a exegese histórico-crítica
e os outros métodos de análise do texto, desenvolvidos em tempos mais recentes,
trouxeram para a vida da Igreja. Segundo
a visão católica da Sagrada Escritura, a atenção a estes métodos é
imprescindível e está ligada ao realismo da encarnação: « Esta necessidade é a conseqüência
do princípio cristão formulado no Evangelho de João 1, 14: Verbum
caro factum est. O fato histórico é uma dimensão constitutiva
da fé cristã. A história da salvação não é uma mitologia, mas uma verdadeira história
e, por isso, deve-se estudar com os métodos de uma investigação histórica séria
». Por isso, o estudo da Bíblia exige o conhecimento e o uso apropriado destes
métodos de pesquisa. Se é verdade que esta sensibilidade no âmbito dos estudos se
desenvolveu mais intensamente na época moderna, embora não de igual modo por
toda a parte, todavia na sã tradição eclesial sempre houve amor pelo estudo da
« letra ». Basta recordar aqui a cultura monástica, à qual em última análise devemos
o fundamento da cultura européia: na sua raiz, está o interesse pela palavra. O
desejo de Deus inclui o amor pela palavra em todas as suas dimensões: « Visto
que, na Palavra bíblica, Deus caminha para nós e nós para Ele, é preciso
aprender a penetrar no segredo da língua, compreendê-la na sua estrutura e no
seu modo de se exprimir. Assim, devido precisamente à procura de Deus, tornam-se
importantes as ciências profanas que nos indicam as vias rumo à língua ».
33. O
Magistério vivo da Igreja, ao qual compete « o encargo de interpretar
autenticamente a Palavra de Deus escrita ou contida na Tradição », interveio
com sapiente equilíbrio relativamente à justa posição a tomar face à introdução
dos novos métodos de análise histórica. Refiro-me, de modo particular, às encíclicas Providentissimus
Deus do Papa Leão XIII e Divino affl
ante Spiritu do Papa Pio XII. O meu venerável predecessor
João Paulo II recordou a importância destes documentos para a exegese e a
teologia, por ocasião da celebração do centenário e cinqüentenário
respectivamente da sua publicação. A intervenção do Papa Leão XIII teve o
mérito de proteger a interpretação católica da Bíblia dos ataques do
racionalismo, sem, contudo se refugiar num sentido espiritual separado da
história. Não desprezava a crítica científica; desconfiava-se somente « das opiniões preconcebidas que
pretendem fundar-se sobre a ciência, mas, na realidade, fazem astuciosamente
sair a ciência do seu campo ».102 Por sua vez, o Papa Pio XII encontrava-se
perante os ataques dos adeptos duma exegese chamada mística, que recusava qualquer
abordagem científica. Com grande sensibilidade, a Encíclica Divino
affl ante Spiritu evitou
que se desenvolvesse a idéia de uma dicotomia entre a « exegese científica »
para o uso apologético e a « interpretação espiritual reservada ao uso interno
», afirmando, pelo contrário, quer o « alcance teológico do sentido literal
metodicamente definido », quer a pertença da « determinação do sentido
espiritual (…) ao campo da ciência exegética ». De tal modo ambos os documentos
recusam « a ruptura entre o humano e o divino, entre a pesquisa científica e a
visão da fé, entre o sentido literal e o sentido espiritual ». Este equilíbrio
foi, sucessivamente, expresso no documento de 1993 da Pontifícia Comissão
Bíblica: « No seu trabalho de interpretação, os exegetas católicos jamais devem
esquecer que interpretam a Palavra de Deus. A sua tarefa não termina depois que
distinguiram as fontes, definiram as formas ou explicaram os processos literários.
O objetivo do seu trabalho só está alcançado quando tiverem esclarecido o significado
do texto bíblico como Palavra atual de Deus ».
A
hermenêutica bíblica conciliar: uma indicação a acolher
34. A
partir deste horizonte, podem-se apreciar melhor os grandes princípios da
interpretação próprios da exegese católica expressos pelo Concílio Vaticano II,
particularmente na Constituição dogmática Dei Verbum: «
Como, porém, Deus na Sagrada Escritura falou por meio dos homens e à maneira
humana, o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis
comunicar-nos, deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente
quiseram significar e que aprouve a Deus manifestar por meio das
suas palavras ». O Concílio, por um lado, sublinha como elementos fundamentais
para identificar o significado pretendido pelo hagiógrafo, o estudo dos gêneros
literários e a contextualização; por outro, devendo a Escritura ser
interpretada no mesmo Espírito em que foi escrita, a Constituição dogmática indica
três critérios de base para se respeitar a dimensão divina da Bíblia:
1)
interpretar o texto tendo presente a unidade de toda a Escritura; isto
hoje chama-se exegese canônica; 2) ter presente a
Tradição viva de toda a Igreja;
3)
observar a analogia da fé.
« Somente
quando se observam os dois níveis metodológicos, histórico-crítico e teológico,
é que se pode falar de uma exegese teológica, de uma exegese adequada a este
Livro ». Os Padres sinodais afirmaram, justamente, que o fruto positivo
produzido pelo uso da investigação histórico-crítica moderna é inegável. Mas,
enquanto a exegese acadêmica atual, mesmo católica, trabalha a alto nível no
que se refere à metodologia histórico-crítica, incluindo as suas mais recentes
integrações, é forçoso exigir um estudo análogo da dimensão teológica dos
textos bíblicos, para que progrida o aprofundamento segundo os três elementos
indicados pela Constituição dogmática Dei Verbum.
O
perigo do dualismo e a hermenêutica secularizada
35. A
este propósito, é preciso sublinhar hoje o grave risco de um dualismo que se
gera ao abordar as Sagradas Escrituras. De fato, distinguindo os dois níveis da
abordagem bíblica, não se pretende de modo algum separá-los, contrapô-los, ou simplesmente
justapô-los. Só funcionam em reciprocidade. Infelizmente, não raro uma
infrutífera separação dos mesmos leva a exegese e a teologia a comportarem-se
como estranhas; e isto « acontece mesmo aos níveis acadêmicos mais altos ». Desejo
aqui lembrar as conseqüências mais preocupantes que se devem evitar.
a)
Antes de mais nada, se a atividade exegética se reduz só ao primeiro nível, conseqüentemente
a própria Escritura torna-se um texto só do passado: «
Daí podem-se tirar conseqüências morais, pode-se aprender a história, mas o
Livro como tal fala só do passado e a exegese já não é realmente teológica, mas
torna-se pura historiografia, história da literatura ».110 É claro que,
numa tal redução, não é possível de modo algum compreender o acontecimento da
revelação de Deus através da sua Palavra que nos é transmitida na Tradição viva
e na Escritura.
b) A
falta de uma hermenêutica da fé na abordagem da Escritura não se apresenta
apenas em termos de uma ausência; o seu lugar acaba inevitavelmente ocupado por
outra hermenêutica, uma hermenêutica secularizada, positivista,
cuja chave fundamental é a convicção de que o Divino não aparece na história
humana. Segundo esta hermenêutica, quando parecer que há um elemento divino, isso
deve-se explicar de outro modo, reduzindo tudo ao elemento humano. Conseqüentemente
propõem-se interpretações que negam a historicidade dos elementos divinos.
c) Uma
tal posição não pode deixar de danificar a vida da Igreja, fazendo surgir dúvidas
sobre mistérios fundamentais do cristianismo e sobre o seu valor histórico,
como, por exemplo, a instituição da Eucaristia e a ressurreição de Cristo.
De
fato, assim impõe-se uma hermenêutica filosófica, que nega a possibilidade de ingresso e presença
do Divino na história. A assunção de tal hermenêutica no âmbito dos estudos
teológicos introduz, inevitavelmente, um gravoso dualismo entre a exegese, que
se situa unicamente no primeiro nível, e a teologia que leva a uma
espiritualização do sentido das Escrituras não respeitadora do caráter
histórico da revelação. Tudo isto não pode deixar de resultar negativo também
para a vida espiritual e a atividade pastoral; « a conseqüência da ausência do
segundo nível metodológico é que se criou um fosso profundo entre exegese
científica e lectio divina. E
precisamente daqui nasce às vezes uma forma de perplexidade na própria
preparação das homilias ». Além disso,
há que assinalar que tal dualismo produz às vezes incerteza e pouca solidez no
caminho de formação intelectual mesmo de alguns candidatos aos ministérios
eclesiais. Enfim, « onde a exegese não é teologia, a Escritura não pode ser a alma
da teologia e, vice-versa, onde a teologia não é essencialmente interpretação da
Escritura na Igreja, esta teologia já não tem fundamento ».114 Portanto, é
necessário voltar decididamente a considerar com mais atenção as indicações
dadas pela Constituição dogmática Dei Verbum a este
propósito.
Fé
e razão na abordagem da Escritura
36.
Creio que pode contribuir para uma compreensão mais completa da exegese e, conseqüentemente,
da sua relação com a teologia inteira aquilo que escreveu o Papa João Paulo II
na Encíclica Fides et ratio a este
respeito. Afirmava ele que não se deve subestimar « o perigo que existe quando se
quer individuar a verdade da Sagrada Escritura com a aplicação de uma única
metodologia, esquecendo a necessidade de uma exegese mais ampla que permita o
acesso, em união com toda a Igreja, ao sentido pleno dos textos. Os que se
dedicam ao estudo da Sagrada Escritura nunca devem esquecer que as diversas
metodologias hermenêuticas têm também na sua base uma concepção filosófica: é
preciso examiná-las com grande discernimento, antes de aplicá-las aos textos sagrados
». Esta clarividente reflexão permite-nos ver como, na abordagem
hermenêutica da Sagrada Escritura, está em jogo inevitavelmente a relação correta
entre fé e razão. De fato, a hermenêutica secularizada da Sagrada Escritura é atuada
por uma razão que quer estruturalmente fechar-se à possibilidade de Deus entrar
na vida dos homens e falar aos homens com palavras humanas. Por isso é
necessário, também neste caso, convidar a alargar os espaços
da própria racionalidade. Na utilização dos métodos de análise histórica,
dever-se-á evitar de assumir, sempre que aparecem, critérios que
preconceituosamente se fechem à revelação de Deus na vida dos homens. A unidade
dos dois níveis do trabalho interpretativo da Sagrada Escritura pressupõe, em
última análise, uma harmonia entre a fé e a razão. Por
um lado, é necessária uma fé que, mantendo uma adequada relação com a reta
razão, nunca degenere em fideísmo, que se tornaria, a respeito da
Escritura, fautor de leituras fundamentalistas. Por outro, é necessária uma razão
que, investigando os elementos históricos presentes na Bíblia, se mostre aberta
e não recuse aprioristicamente tudo o que excede a própria medida. Aliás, a
religião do Logos encarnado não poderá deixar de apresentar-se profundamente razoável
ao homem que sinceramente procura a verdade e o sentido último da própria vida
e da história.
Sentido
literal e sentido espiritual
37.
Como foi afirmado na assembleia sinodal, um significativo
contributo para a recuperação de uma adequada hermenêutica da Escritura provém de
uma renovada escuta dos Padres da Igreja e da sua abordagem exegética. Com
efeito, os Padres da Igreja oferecem-nos, ainda hoje, uma teologia de grande
valor, porque no centro está o estudo da Sagrada Escritura na sua integridade.
De fato, os Padres são primária e essencialmente « comentadores da Sagrada
Escritura ». O seu exemplo pode « ensinar aos exegetas modernos uma abordagem verdadeiramente
religiosa da Sagrada Escritura, e também uma interpretação que se atém constantemente
ao critério de comunhão com a experiência da Igreja, que caminha através da
história sob a guia do Espírito Santo ». Apesar de não conhecer, obviamente, os
recursos de ordem filológica e histórica à disposição da exegese
moderna, a tradição patrística e medieval sabia reconhecer os vários sentidos
da Escritura, a começar pelo literal, isto é, « o expresso pelas palavras da
Escritura e descoberto pela exegese segundo as regras da reta interpretação ».
Por exemplo, São Tomás de Aquino afirma: « Todos os sentidos da Sagrada Escritura se
fundamentam no literal ». É preciso, porém, recordar-se de que, no período
patrístico e medieval, toda a forma de exegese, incluindo a literal, era feita
com base na fé, não havendo necessariamente distinção entre sentido
literal e sentido espiritual. A
propósito, recorde-se o dístico clássico que traduz a relação entre os diversos
sentidos da Escritura: « Littera gesta docet, quid credas allegoria,
Moralis quid agas, quo tendas anagogia. A letra ensina-te os
fatos [passados], a alegoria o que deves crer A moral o que deves fazer, a
anagogia para onde deves tender ». Sobressai aqui a unidade e a articulação
entre sentido literal e sentido espiritual, o
qual, por sua vez, se subdivide em três sentidos que descrevem os conteúdos da
fé, da moral e da tensão escatológica. Em suma, reconhecendo o valor e a
necessidade – apesar dos seus limites – do método histórico- crítico, pela
exegese patrística, aprendemos que « só se é fiel à
intencionalidade dos textos bíblicos na medida em que se procura encontrar, no
coração da sua formulação, a realidade de fé que os mesmos exprimem e em que se
liga esta realidade com a experiência crente do nosso mundo ». Somente nesta
perspectiva se pode reconhecer que a Palavra de Deus é viva e se dirige a cada
um de nós no momento presente da nossa vida. Continua assim plenamente válida a
afirmação da Pontifícia Comissão Bíblica que define o sentido
espiritual, segundo a fé cristã, como « o sentido expresso pelos textos
bíblicos quando são lidos sob o influxo do Espírito Santo no contexto do mistério
pascal de Cristo e da vida nova que dele resulta. Este contexto existe
efetivamente. O Novo Testamento reconhece nele o cumprimento das Escrituras.
Por isso, é normal reler as Escrituras à luz deste novo contexto, o da vida no
Espírito ».
A
necessária superação da « letra »
38.
Para se recuperar a articulação entre os diversos sentidos da Escritura,
torna-se então decisivo identificar a passagem entre letra e espírito. Não se
trata de uma passagem automática e espontânea; antes, é preciso transcender a
letra: « de fato, a Palavra do próprio Deus nunca se apresenta na simples
literalidade do texto. Para alcançá-la, é preciso transcender a literalidade
num processo de compreensão, que se deixa guiar pelo movimento interior do
conjunto e, portanto, deve tornar-se também um processo de vida ». Descobrimos assim
o motivo por que um autêntico processo interpretativo nunca é apenas intelectual,
mas também vital, que requer o pleno envolvimento na vida eclesial enquanto
vida « segundo o Espírito » (Gl 5, 16). Deste modo
tornam-se mais claros os critérios evidenciados pelo número 12 da Constituição
dogmática Dei Verbum: a referida superação não pode verificar-se
no fragmento literário individual, mas em relação com a totalidade da
Escritura. De fato, é uma única Palavra aquela para a qual somos chamados a
transcender. Este processo possui uma íntima dramaticidade, porque, no processo
de superação, a passagem que acontece em virtude do Espírito tem
inevitavelmente a ver também com a liberdade de cada um. São Paulo viveu
plenamente na sua própria vida esta passagem. O que significa
transcender a letra e a sua compreensão unicamente a partir do conjunto,
expressou-o ele de modo radical nesta frase: « A
letra mata, mas o Espírito vivifica » (2
Cor 3, 6). São Paulo descobre que « o Espírito libertador tem um nome e
que a liberdade tem, conseqüentemente, uma medida interior: “O Senhor é
Espírito, e onde está o Espírito do Senhor há liberdade” (2
Cor 3, 17). O Espírito libertador não é simplesmente a própria idéia, a
visão pessoal de quem interpreta. O Espírito é Cristo, e Cristo é o Senhor que
nos indica a estrada ». Sabemos como esta passagem foi dramática e
simultaneamente libertadora em Santo Agostinho; ele acreditou nas Escrituras,
que antes se lhe apresentavam muito diversificadas
em si mesmas e às vezes indelicadas, precisamente por esta superação que aprendeu
de Santo Ambrósio mediante a interpretação tipológica, segundo a qual todo o
Antigo Testamento é um caminho para Jesus Cristo. Para Santo Agostinho,
transcender a letra tornou credível a própria letra e permitiu-lhe encontrar finalmente
a resposta às profundas inquietações do seu espírito, sedento da verdade.
A
unidade intrínseca da Bíblia
39. Na
escola da grande tradição da Igreja, aprendemos na passagem da letra ao
espírito a identificar também a unidade de toda a Escritura, pois
única é a Palavra de Deus que interpela a nossa vida, chamando-a constantemente
à conversão. Continuam a ser para nós uma guia segura as expressões de Hugo de
São Vítor: « Toda a Escritura divina constitui um único livro e este único
livro é Cristo, fala de Cristo e encontra em Cristo a sua realização ». É certo
que a Bíblia, vista sob o aspecto puramente histórico ou literário, não é
simplesmente um livro, mas uma coletânea de textos literários, cuja redação se
estende por mais de um milênio e cujos diversos livros não são facilmente
reconhecíveis como partes duma unidade interior; antes, há tensões palpáveis entre
eles. Se isto já se verifica no interior da Bíblia de Israel, que nós,
cristãos, chamamos Antigo Testamento, muito mais quando nós, como cristãos, ligamos
o Novo Testamento e os seus escritos – como se fosse a chave hermenêutica – com
a Bíblia de Israel interpretando-a como caminho para Cristo. No Novo
Testamento, aparece menos a expressão « a Escritura » (cf. Rm
4, 3; 1 Pd 1, 6), do que « as
Escrituras » (cf. Mt 21, 43; Jo
5, 39; Rm 1, 2; 2
Pd 3, 16), que porém, no seu conjunto, são depois consideradas como a
única Palavra de Deus dirigida a nós.130 Por isso se vê claramente como é a
pessoa de Cristo que dá unidade a todas as « Escrituras » postas em relação com
a única « Palavra ». Compreende-se assim a afirmação
do número 12 da Constituição dogmática Dei Verbum, quando
indica a unidade interna de toda a Bíblia como critério decisivo para uma correta
hermenêutica da fé.
A
relação entre Antigo e Novo Testamento
40. Na
perspectiva da unidade das Escrituras em Cristo, tanto os teólogos como os
pastores necessitam de estar conscientes das relações entre o Antigo e o Novo
Testamento. Em primeiro lugar, é evidente que o próprio Novo
Testamento reconhece o Antigo Testamento como Palavra de Deus e, por
conseguinte, admite a autoridade das Sagradas Escrituras do povo judeu.
Reconhece-as implicitamente, quando usa a mesma linguagem e freqüentemente
alude a trechos destas Escrituras; reconhece-as explicitamente, porque cita
muitas partes servindo-se delas para argumentar. Uma argumentação baseada nos
textos do Antigo Testamento reveste-se assim, no Novo Testamento, de um valor
decisivo, superior ao de raciocínios simplesmente humanos. No quarto Evangelho,
a este propósito Jesus declara que « a Escritura não pode ser anulada » (Jo
10, 35) e São Paulo especifica de modo particular que a revelação do Antigo Testamento
continua a valer para nós, cristãos (cf. Rm 15, 4;
1 Cor 10, 11).132 Além disso, afirmamos
que « Jesus de Nazaré foi um judeu e a Terra Santa é terra-mãe da Igreja »;133
a raiz do cristianismo encontra-se no Antigo Testamento e sempre se nutre desta
raiz. Por isso a sã doutrina cristã sempre recusou qualquer forma emergente de
marcionismo, que tende de diversos modos a contrapor entre si o Antigo e o Novo
Testamento. Além disso, o próprio Novo Testamento se diz em conformidade com o
Antigo e proclama que, no mistério da vida, morte e ressurreição de Cristo,
encontraram o seu perfeito cumprimento as Escrituras Sagradas do povo judeu.
Mas é preciso notar que o conceito de cumprimento das Escrituras é complexo,
porque comporta uma tríplice dimensão: um aspecto fundamental de continuidade
com a revelação do Antigo Testamento, um aspecto de ruptura
e um aspecto de cumprimento e superação. O
mistério de Cristo está em continuidade de intenção com o culto sacrificial
do Antigo Testamento; mas realizou-se de um modo muito diferente, que
corresponde a muitos oráculos dos profetas, e alcançou assim uma perfeição
nunca antes obtida. De fato, o Antigo Testamento está cheio de tensões entre os
seus aspectos institucionais e os seus aspectos proféticos. O mistério pascal
de Cristo está plenamente de acordo – embora de uma forma que era imprevisível
– com as profecias e o aspecto prefigurativo das Escrituras; mas apresenta evidentes
aspectos de descontinuidade relativamente às instituições do Antigo Testamento.
41.
Estas considerações mostram assim a importância insubstituível do Antigo
Testamento para os cristãos, mas ao mesmo tempo evidenciam a
originalidade da leitura cristológica. Desde os tempos
apostólicos e depois na Tradição viva, a Igreja deixou clara a unidade do plano
divino nos dois Testamentos graças à tipologia, que não tem caráter arbitrário
mas é intrínseca aos acontecimentos narrados pelo texto sagrado e, por
conseguinte, diz respeito a toda a Escritura. A tipologia « descobre nas obras
de Deus, na Antiga Aliança, prefigurações do que o mesmo Deus realizou, na plenitude
dos tempos, na pessoa do seu Filho encarnado ». Por isso os cristãos lêem o
Antigo Testamento à luz de Cristo morto e ressuscitado. Se a leitura tipológica
revela o conteúdo inesgotável do Antigo Testamento relativamente ao Novo, não
deve todavia fazer-nos esquecer que aquele mantém o seu próprio valor de
Revelação que Nosso Senhor veio reafirmar (cf. Mc 12,
29-31). Por isso « também o Novo Testamento requer ser lido à luz do Antigo. A
catequese cristã primitiva recorreu constantemente a este método (cf. 1
Cor 5, 6-8; 10, 1-11) ». Por este motivo, os Padres sinodais afirmaram
que « a compreensão judaica da Bíblia pode ajudar a inteligência e o estudo das
Escrituras por parte dos cristãos ». Assim se exprimia, com aguda sabedoria, Santo
Agostinho sobre este tema: « O Novo Testamento está oculto no Antigo e o Antigo
está patente no Novo ». Deste modo, tanto em âmbito pastoral como em âmbito acadêmico,
importa que seja colocada bem em evidência a relação íntima entre os dois
Testamentos, recordando com São Gregório Magno que aquilo que « o Antigo
Testamento prometeu, o Novo Testamento fê-lo ver; o que aquele anuncia de
maneira oculta, este proclama abertamente como presente. Por isso, o Antigo
Testamento é profecia do Novo Testamento; e o melhor comentário do Antigo
Testamento é o Novo Testamento ».
As
páginas « obscuras » da Bíblia
42. No
contexto da relação entre Antigo e Novo Testamento, o Sínodo enfrentou também o
caso de páginas da Bíblia que às vezes se apresentam obscuras e difíceis por
causa da violência e imoralidade nelas referidas. Em relação a isto, deve-se
ter presente antes de mais nada que a revelação bíblica está profundamente
radicada na história. Nela se vai progressivamente manifestando
o desígnio de Deus, atuando-se lentamente ao longo de etapas
sucessivas, não obstante a resistência dos homens. Deus
escolhe um povo e, pacientemente, realiza a sua educação. A revelação adapta-se
ao nível cultural e moral de épocas antigas, referindo conseqüentemente fatos e
usos como, por exemplo, manobras fraudulentas, intervenções violentas, extermínio
de populações, sem denunciar explicitamente a sua imoralidade. Isto explica-se
a partir do contexto histórico, mas pode surpreender o leitor moderno,
sobretudo quando se esquecem tantos comportamentos « obscuros » que os homens sempre
tiveram ao longo dos séculos, inclusive nos nossos dias. No Antigo Testamento,
a pregação dos profetas ergue-se vigorosamente contra todo o tipo de injustiça
e de violência, coletiva ou individual, tornando-se assim o instrumento da
educação dada por Deus ao seu povo como preparação para o Evangelho. Seria,
pois, errado não considerar aqueles passos da Escritura que nos aparecem
problemáticos. Entretanto deve-se ter consciência de que a leitura destas
páginas requer a aquisição de uma adequada competência, através duma formação
que leia os textos no seu contexto histórico-literário e na perspectiva cristã,
que tem como chave hermenêutica última « o Evangelho e o mandamento novo de
Jesus Cristo realizado no mistério pascal ». Por isso exorto os estudiosos e os
pastores a ajudarem todos os fiéis a abeirar-se também destas páginas por meio de
uma leitura que leve a descobrir o seu significado à
luz do mistério de Cristo.
Cristãos
e judeus, relativamente às Sagradas Escrituras
43.
Depois de considerar a íntima relação que une o Novo Testamento ao Antigo, é
espontâneo fixar a atenção no vínculo peculiar que isso cria entre cristãos e
judeus, um vínculo que não deveria jamais ser esquecido. Aos judeus, o Papa João
Paulo II declarou: sois « os nossos “irmãos prediletos” na fé de Abraão, nosso
patriarca ». Por certo, estas afirmações não significam
ignorar as rupturas atestadas no Novo Testamento relativamente às instituições
do Antigo Testamento e menos ainda o cumprimento das Escrituras no mistério de
Jesus Cristo, reconhecido Messias e Filho de Deus. Mas esta diferença profunda
e radical não implica de modo algum hostilidade recíproca. Pelo contrário, o
exemplo de São Paulo (cf. Rm 9–11) demonstra que « uma
atitude de respeito, estima e amor pelo povo judeu é a única atitude
verdadeiramente cristã nesta situação que, misteriosamente, faz parte do
desígnio totalmente positivo de Deus ».142 De fato, o Apóstolo afirma que
os judeus, « quanto à escolha divina, são amados por causa dos Patriarcas, pois
os dons e o chamamento de Deus são irrevogáveis » (Rm
11, 28-29). Além disso, usa a bela imagem da oliveira para descrever
as relações muito estreitas entre cristãos e judeus: a Igreja dos gentios é
como um rebento de oliveira brava enxertado na oliveira boa que é o povo da
Aliança (cf. Rm 11, 17-24).
Alimentamo-nos, pois, das mesmas raízes espirituais. Encontramo-nos como
irmãos; irmãos que em certos momentos da sua história tiveram um relacionamento
tenso, mas agora estão firmemente comprometidos na construção de pontes
de amizade duradoura. Como disse o Papa João Paulo II noutra ocasião: « Temos
muito em comum. Juntos podemos fazer muito pela paz, pela justiça e por um
mundo mais fraterno e mais humano ». Desejo afirmar
uma vez mais quão precioso é para a Igreja o diálogo
com os judeus. É bom que, onde isto se apresentar como
oportuno, se criem possibilidades mesmo públicas de encontro e diálogo, que
favoreçam o crescimento do conhecimento mútuo, da estima recíproca e da
colaboração inclusive no próprio estudo das Sagradas Escrituras.
A
interpretação fundamentalista da Sagrada Escritura
44. A
atenção que quisemos dar até agora ao tema da hermenêutica bíblica, nos seus
diversos aspectos, permite-nos abordar o tema – muitas vezes aflorado
no debate sinodal – da interpretação fundamentalista da Sagrada Escritura.
Sobre este tema, a Pontifícia Comissão Bíblica, no documento A
interpretação da Bíblia na Igreja, formulou indicações importantes. Neste
contexto, desejo chamar a atenção sobretudo para aquelas leituras que não
respeitam o texto sagrado na sua natureza autêntica, promovendo interpretações
subjetivistas e arbitrárias. Na realidade, o « literalismo » propugnado
pela leitura fundamentalista constitui uma traição tanto do sentido literal
como do espiritual, abrindo caminho a instrumentalizações de variada natureza,
difundindo por exemplo interpretações anti-eclesiais das próprias Escrituras. O
aspecto problemático da « leitura fundamentalista é que, recusando ter em conta
o caráter histórico da revelação bíblica, torna-se incapaz de aceitar plenamente
a verdade da própria Encarnação. O fundamentalismo evita a íntima ligação do
divino e do humano nas relações com Deus. (…) Por este motivo, tende a tratar o
texto bíblico como se fosse ditado palavra por palavra pelo Espírito e não
chega a reconhecer que a Palavra de Deus foi formulada numa linguagem e numa
fraseologia condicionadas por uma dada época ». Ao contrário, o cristianismo divisa nas
palavras a Palavra, o próprio Logos, que
estende o seu mistério através de tal multiplicidade e da realidade de uma
história humana. A verdadeira resposta a uma leitura fundamentalista é « a
leitura crente da Sagrada Escritura, praticada desde a antiguidade na Tradição da
Igreja. [Tal leitura] procura a verdade salvífica para
a vida do indivíduo fiel e para a Igreja. Esta leitura reconhece o
valor histórico da tradição bíblica. Precisamente por este valor de testemunho histórico
é que ela quer descobrir o significado vivo das Sagradas Escrituras destinadas
também à vida do fiel de hoje »,148 sem ignorar, portanto, a
mediação humana do texto inspirado e os seus gêneros literários.
Diálogo
entre Pastores, teólogos e exegetas
45. A
autêntica hermenêutica da fé acarreta algumas conseqüências importantes no
âmbito da atividade pastoral da Igreja. Precisamente a este respeito, os Padres
sinodais recomendaram, por exemplo, um relacionamento mais assíduo entre Pastores,
exegetas e teólogos. É bom que as Conferências Episcopais favoreçam estes
encontros com o « fi m de promover uma maior comunhão no serviço da
Palavra de Deus ». Tal cooperação ajudará a todos a realizarem melhor o próprio
trabalho em benefício da Igreja inteira. De fato, situar-se no horizonte do
trabalho pastoral quer dizer, mesmo para os estudiosos, olhar o texto sagrado
na sua natureza de comunicação que o Senhor faz aos homens para a salvação.
Portanto, como afirmou a Constituição dogmática Dei
Verbum, « é preciso que os exegetas católicos e demais estudiosos da
sagrada teologia trabalhem em íntima colaboração de esforços, para que, sob a
vigilância do sagrado magistério, lançando mão de meios aptos, estudem e
expliquem as divinas Letras, de modo que o maior número possível de ministros
da Palavra de Deus possa oferecer com fruto ao Povo de Deus o alimento das
Escrituras, que ilumine o espírito, robusteça as vontades e infl ame os
corações dos homens no amor de Deus ».
Bíblia
e ecumenismo
46. Na
certeza de que a Igreja tem o seu fundamento em Cristo, Verbo de Deus feito
carne, o Sínodo quis sublinhar a centralidade dos estudos bíblicos no diálogo ecumênico,
que visa a plena expressão da unidade de todos os crentes em Cristo. De fato,
na própria Escritura, encontramos a comovente súplica de Jesus ao Pai pelos
seus discípulos para que sejam um só a fim de que o mundo creia (cf. Jo
17, 21). Tudo isto nos fortalece na convicção de que escutar e meditar
juntos as Escrituras nos faz viver uma comunhão real, embora ainda não plena;
pois « a escuta comum das Escrituras impele ao diálogo da caridade e faz
crescer o da verdade ». De fato, ouvir juntos
a Palavra de Deus, praticar a lectio divina da Bíblia,
deixar-se surpreender pela novidade que nunca envelhece e jamais se esgota da
Palavra de Deus, superar a nossa surdez àquelas palavras que não estão de
acordo com as nossas opiniões ou preconceitos, escutar e estudar na comunhão
dos fiéis de todos os tempos: tudo isto constitui um caminho a percorrer
para alcançar a unidade da fé, como resposta à escuta da Palavra.
Verdadeiramente esclarecedoras eram estas palavras do Concílio Vaticano II: «
No próprio diálogo [ecumênico], a Sagrada Escritura é um exímio instrumento da
poderosa mão de Deus para a consecução daquela unidade que o Salvador oferece a
todos os homens ». Por isso, é bom incrementar o estudo, o diálogo e as
celebrações ecumênicas da Palavra de Deus, no respeito das regras vigentes e
das diversas tradições. Estas celebrações são úteis à causa ecumênica e, se
vividas no seu verdadeiro significado, constituem momentos intensos de autêntica
oração nos quais se pede a Deus para apressar o suspirado dia em que será possível
abeirar-nos todos da mesma mesa e beber do único cálice. Entretanto, na justa e
louvável promoção destes momentos, faça-se de modo que os mesmos não sejam
propostos aos fiéis em substituição da participação na Santa
Missa nos dias de preceito. Neste trabalho de estudo e de oração, reconhecemos com
serenidade também os aspectos que requerem ser aprofundados e que nos mantêm ainda
distantes, como, por exemplo, a compreensão do sujeito da interpretação com
autoridade na Igreja e o papel decisivo do Magistério. Além disso, queria
sublinhar o que os Padres sinodais disseram da importância que têm, neste trabalho
ecumênico, as traduções da Bíblia nas diversas línguas. De
fato, sabemos que traduzir um texto não é trabalho meramente mecânico, mas faz
parte em certo sentido do trabalho interpretativo. A este respeito, o Venerável
João Paulo II afirmou: « Quem recorda como influíram
nas divisões, especialmente no Ocidente, os debates em torno da Escritura, pode
compreender quanto seja notável o passo em frente representado por tais
traduções comuns ». Por isso, a promoção das traduções comuns da Bíblia faz
parte do trabalho ecumênico. Desejo aqui agradecer a todos os que estão
comprometidos nesta importante tarefa e encorajá-los a continuarem na sua obra.
Conseqüências
sobre a organização dos estudos teológicos
47.
Outra conseqüência que deriva de uma adequada hermenêutica da fé diz respeito à
necessidade de mostrar as suas implicações na formação exegética e teológica,
particularmente dos candidatos ao sacerdócio. Faça-se com que o estudo da Sagrada
Escritura seja verdadeiramente a alma da teologia, enquanto se reconhece nela a
Palavra que Deus hoje dirige ao mundo, à Igreja e a cada um pessoalmente. É
importante que os critérios indicados pelo número 12 da Constituição dogmática Dei
Verbum sejam efetivamente tomados em consideração e se tornem objeto de
aprofundamento. Evite-se cultivar uma noção de pesquisa científica,
que se considera neutral face à Escritura. Por isso, juntamente com o estudo
das línguas próprias em que foi escrita a Bíblia e dos métodos interpretativos
adequados, é necessário que os estudantes tenham uma profunda vida espiritual, para
se aperceberem de que só é possível compreender a Escritura se a viverem. Nesta
perspectiva, recomendo que o estudo da Palavra de Deus, transmitida e escrita,
se verifique sempre em profundo espírito eclesial, tendo em devida conta, na
formação acadêmica, as intervenções sobre estas temáticas feitas pelo Magistério,
o qual « não está acima da palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando
apenas o que foi transmitido, enquanto, por mandato divino e com a assistência
do Espírito Santo, a ouve piamente, a guarda religiosamente e a expõe fielmente
». Portanto tenha-se o cuidado de que os estudos se realizem reconhecendo que «
a sagrada Tradição, a sagrada Escritura e o magistério da Igreja, segundo o
sapientíssimo desígnio de Deus, de tal maneira se unem e associam que um sem os
outros não se mantém ».160 Desejo pois que, segundo a doutrina do Concílio
Vaticano II, o estudo da Sagrada Escritura, lida na comunhão da Igreja
universal, seja realmente como que a alma do estudo teológico.
Os
Santos e a interpretação da Escritura
48. A
interpretação da Sagrada Escritura ficaria incompleta se não se ouvisse também quem
viveu verdadeiramente a Palavra de Deus, ou seja, os Santos. De
fato, « viva lectio est vita bonorum ». Realmente
a interpretação mais profunda da Escritura provém precisamente daqueles que se
deixaram plasmar pela Palavra de Deus, através da sua escuta, leitura e
meditação assídua. Certamente não é por acaso que as grandes espiritualidades,
que marcaram a história da Igreja, nasceram de uma explícita referência à Escritura.
Penso, por exemplo, em Santo Antão Abade, que se decide ao ouvir esta palavra
de Cristo: « Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que possuíres, dá o
dinheiro aos pobres, e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-Me » (Mt
19, 21). Igualmente sugestivo é São Basílio Magno, quando, na sua
obra Moralia, se interroga: « O que é próprio da fé? Certeza
plena e segura da verdade das palavras inspiradas por Deus. (…) O que é próprio
do fiel? Com tal certeza plena, conformar-se com o significado
das palavras da Escritura, sem ousar tirar nem acrescentar seja o que for ».
São Bento, na sua Regra, remete para a Escritura
como « norma retíssima para a vida do homem ». São Francisco de Assis – escreve
Tomás de Celano – « ao ouvir que os discípulos de Cristo não devem possuir
ouro, nem prata, nem dinheiro, não devem trazer alforje, nem pão, nem cajado
para o caminho, não devem ter vários pares de calçado, nem duas túnicas, (…)
logo exclamou, transbordando de Espírito Santo: Com todo o coração isto quero,
isto peço, isto anseio realizar! ». E Santa Clara de Assis reproduz plenamente a
experiência de São Francisco: « A forma de vida da Ordem das Irmãs pobres (…) é
esta: observar o santo Evangelho do Senhor nosso Jesus Cristo ».168 Por sua
vez, São Domingos de Gusmão « em toda a parte se manifestava como um homem
evangélico, tanto nas palavras como nas obras »,169 e tais queria que fossem
também os seus padres pregadores: « homens evangélicos ». Santa Teresa de
Ávila, nos seus escritos, recorre continuamente a imagens bíblicas para
explicar a sua experiência mística, e lembra que o próprio Jesus lhe manifesta
que « todo o mal do mundo deriva de não se conhecer claramente a verdade da
Sagrada Escritura ». Santa Teresa do Menino Jesus encontra o Amor como sua
vocação pessoal, quando perscruta as Escrituras, em particular os capítulos 12
e 13 da Primeira Carta aos Coríntios; e a
mesma Santa assim nos descreve o fascínio das Escrituras: « Apenas lanço o
olhar sobre o Evangelho, imediatamente respiro os perfumes da vida de Jesus e
sei para onde correr ». Cada Santo constitui uma espécie de raio de luz que
brota da Palavra de Deus: assim o vemos também em Santo Inácio de Loyola na sua
busca da verdade e no discernimento espiritual, em São João Bosco na sua paixão
pela educação dos jovens, em São João Maria Vianney na sua consciência da
grandeza do sacerdócio como dom e dever; em São Pio de Pietrelcina no seu ser
instrumento da misericórdia divina; em São Josemaria Escrivá na sua pregação
sobre a vocação universal à santidade; na Beata Teresa de Calcutá missionária
da caridade de Deus pelos últimos; e nos mártires do nazismo e do comunismo
representados, os primeiros, por Santa Teresa Benedita da Cruz (Edith Stein),
monja carmelita, e os segundos pelo Beato Aloísio Stepinac, Cardeal Arcebispo
de Zagrábia.
49.
Assim a santidade relacionada com a Palavra de Deus inscreve-se de certo modo
na tradição profética, na qual a Palavra de Deus se serve da própria vida do
profeta. Neste sentido, a santidade na Igreja representa uma hermenêutica da Escritura
da qual ninguém pode prescindir. O Espírito Santo que inspirou os autores
sagrados é o mesmo que anima os Santos a darem a vida pelo Evangelho. Entrar na
sua escola constitui um caminho seguro para efetuar uma hermenêutica viva e eficaz da
Palavra de Deus. Tivemos um testemunho direto desta ligação entre Palavra de
Deus e santidade durante a XII Assembleia do Sínodo quando, a 12 de Outubro na
Praça de São Pedro, se realizou a canonização de quatro novos Santos: o
sacerdote Caetano Errico, fundador da Congregação dos Missionários dos Sagrados
Corações de Jesus e de Maria; a Irmã Maria Bernarda Bütler, nascida na Suíça e missionária
no Equador e na Colômbia; a Irmã Afonsa da Imaculada Conceição, primeira santa canonizada
nascida na Índia; a jovem leiga equatoriana Narcisa de Jesus Martillo Morán.
Com a sua vida, deram testemunho ao mundo e à Igreja da perene fecundidade do
Evangelho de Cristo. Pedimos ao Senhor que, por intercessão destes Santos
canonizados precisamente nos dias da assembleia sinodal sobre a Palavra de
Deus, a nossa vida seja aquele « terreno bom » onde o Semeador divino possa
semear a Palavra para que produza em nós frutos de santidade, a « trinta,
sessenta, e cem por um » (Mc 4, 20).
A
MISSÃO DA IGREJA: ANUNCIAR A PALAVRA DE DEUS AO MUNDO
A
Palavra que sai do Pai e volta para o Pai
90.
São João sublinha fortemente o paradoxo fundamental da fé cristã. Por um lado,
afirma que « ninguém jamais viu a Deus » (Jo
1, 18; cf. 1 Jo 4, 12): de modo nenhum
podem as nossas imagens, conceitos ou palavras definir ou
calcular a realidade infinita do Altíssimo; permanece o Deus
semper maior. Por outro lado, diz que realmente o Verbo « Se
fez carne » (Jo 1, 14). O Filho unigênito,
que está voltado para o seio do Pai, revelou o Deus que « ninguém jamais viu »
(Jo 1, 18). Jesus Cristo vem a nós « cheio de graça
e de verdade » (Jo 1, 14), que nos são dadas
por meio d’Ele (cf. Jo 1, 17); de fato, « da sua
plenitude é que todos nós recebemos, graça sobre graça » (Jo
1, 16). E assim, no Prólogo, o evangelista João contempla o Verbo
desde o seu estar junto de Deus passando pelo fazer-Se carne, até ao regresso
ao seio do Pai, levando consigo a nossa própria humanidade que assumiu para
sempre. Neste sair do Pai e voltar ao Pai (cf. Jo
13, 3; 16, 28; 17, 8.10), Ele apresenta-Se-nos como o « Narrador » de
Deus (cf. Jo 1, 18). De fato, o Filho – afirma
Santo Ireneu de Lião – « é o Revelador do Pai ».310 Jesus de Nazaré é, por assim
dizer, o « exegeta » de Deus que « ninguém jamais viu »; « Ele é a imagem do
Deus invisível » (Cl 1, 15). Cumpre-se aqui a
profecia de Isaías relativa à eficácia da Palavra do Senhor: assim como a chuva e
a neve descem do céu para regar e fazer germinar a terra, assim também a
Palavra de Deus « não volta sem ter produzido o seu efeito, sem ter executado a
minha vontade e cumprido a sua missão » (Is 55,
10-11). Jesus Cristo é esta Palavra definitiva e eficaz que saiu do Pai e voltou a Ele, realizando
perfeitamente no mundo a sua vontade.
Anunciar
ao mundo o « Logos » da Esperança
91. O
Verbo de Deus comunicou-nos a vida divina que transfigura a
face da terra, fazendo novas todas as coisas (cf. Ap
21, 5). A sua Palavra envolve-nos não só como destinatários
da revelação divina, mas também como seus arautos. Ele,
o enviado do Pai para cumprir a sua vontade (cf. Jo
5, 36-38; 6, 38-40; 7, 16-18), atrai-nos a Si e envolve-nos na sua
vida e missão. Assim o Espírito do Ressuscitado habilita a nossa vida para o
anúncio eficaz da Palavra em todo o mundo. É a experiência da primeira
comunidade cristã, que via difundir-se a Palavra por meio da pregação e do
testemunho (cf. Act 6, 7). Quero citar aqui
particularmente a vida do Apóstolo Paulo, um homem arrebatado completamente
pelo Senhor (cf. Fl 3, 12) – « já não sou eu
que vivo, é Cristo que vive em mim » (Gl 2, 20) – e pela sua
missão: « Ai de mim se não evangelizar! » (1 Cor 9,
16), ciente de que em Cristo se revela realmente a salvação de todas as nações,
a libertação da escravidão do pecado para entrar na liberdade dos filhos
de Deus. Com efeito, o que a Igreja anuncia ao mundo é o Logos
da Esperança (cf. 1 Pd 3, 15); o homem precisa
da « grande Esperança » para poder viver o seu próprio presente – a grande
esperança que é « aquele Deus que possui um rosto humano e que nos “amou até ao
fim” (Jo 13, 1) ». Por isso, na
sua essência, a Igreja é missionária. Não podemos guardar para nós as palavras
de vida eterna, que recebemos no encontro com Jesus Cristo: são para todos,
para cada homem. Cada pessoa do nosso tempo – quer o saiba quer não – tem
necessidade deste anúncio. Oxalá o Senhor suscite entre os homens, como nos
tempos do profeta Amós, nova fome e nova sede das palavras do Senhor (cf. Am
8, 11). A nós cabe a responsabilidade de transmitir aquilo que por
nossa vez tínhamos, por graça, recebido.
Da
Palavra de Deus deriva a missão da Igreja
92. O
Sínodo dos Bispos reafirmou com veemência a necessidade de revigorar na
Igreja a consciência missionária, presente no Povo de Deus desde a sua origem.
Os primeiros cristãos consideraram o seu anúncio missionário como uma
necessidade derivada da própria natureza da fé: o Deus em quem acreditavam era
o Deus de todos, o Deus único e verdadeiro que Se manifestara na história de
Israel e, por fi m, no seu Filho, oferecendo assim a resposta que
todos os homens, no seu íntimo, aguardam. As primeiras comunidades cristãs
sentiram que a sua fé não pertencia a um costume cultural particular, que
diverge de povo para povo, mas ao âmbito da verdade, que diz respeito
igualmente a todos os homens. Também aqui São Paulo nos ilustra, com a sua
vida, o sentido da missão cristã e a sua originária universalidade. Pensemos no
episódio do Areópago de Atenas, narrado pelos Atos dos Apóstolos
(cf. 17, 16-34). O Apóstolo das Nações entra em diálogo com homens de
culturas diversas, na certeza de que o mistério de Deus,
Conhecido-Desconhecido, do qual todo o homem tem uma certa percepção embora confusa,
revelou-Se realmente na história: « O que venerais sem conhecer, é que eu vos
anuncio » (Act 17, 23). De fato, a novidade
do anúncio cristão é a possibilidade de dizer a todos os povos: « Ele
mostrou-Se. Ele em pessoa. E agora está aberto o caminho para Ele. A novidade
do anúncio cristão não consiste num pensamento mas num fato: Ele revelou-Se ».
A
Palavra e o Reino de Deus
93.
Por conseguinte, a missão da Igreja não pode ser considerada como realidade
facultativa ou suplementar da vida eclesial. Trata-se de deixar que o Espírito
Santo nos assimile a Cristo, participando assim na sua própria missão: « Assim
como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós » (Jo
20, 21), de modo a comunicar a Palavra com a vida inteira. É a
própria Palavra que nos impele para os irmãos: é a Palavra que ilumina, purifica, converte;
nós somos apenas servidores. Por isso, é necessário descobrir cada vez mais a
urgência e a beleza de anunciar a Palavra para a vinda do Reino de Deus, que o
próprio Cristo pregou. Neste sentido, renovamos a consciência – tão familiar
aos Padres da Igreja – de que o anúncio da Palavra tem como conteúdo o Reino de
Deus (cf. Mc 1, 14-15), sendo este a
própria pessoa de Jesus (o Autobasileia),
como sugestivamente lembra Orígenes. O Senhor oferece a salvação aos homens de
cada época. Todos nos damos conta de quão necessário é que a luz de Cristo
ilumine cada âmbito da humanidade: a família, a escola, a cultura, o trabalho,
o tempo livre e os outros sectores da vida social.314 Não se trata de anunciar uma
palavra anestesiante, mas desinstaladora, que chama à conversão, que torna
acessível o encontro com Ele, através do qual floresce
uma humanidade nova.
Todos
os batizados responsáveis do anúncio
94.
Uma vez que todo o Povo de Deus é um povo « enviado », o Sínodo reafirmou
que « a missão de anunciar a Palavra de Deus é dever de todos os discípulos de
Jesus Cristo, em conseqüência do seu batismo ». Nenhuma pessoa que crê em
Cristo pode sentir-se alheia a esta responsabilidade que deriva do fato de ela
pertencer sacramentalmente ao Corpo de Cristo. Esta consciência deve ser
despertada em cada família, paróquia, comunidade, associação e movimento
eclesial. Portanto toda a Igreja, enquanto mistério de comunhão, é missionária
e cada um, no seu próprio estado de vida, é chamado a dar uma contribuição incisiva
para o anúncio cristão. Bispos e sacerdotes,
segundo a missão própria de cada um, são os primeiros chamados a uma vida cativada
pelo serviço da Palavra, para anunciar o Evangelho, celebrar os Sacramentos e
formar os fiéis no conhecimento autêntico das Escrituras. Sintam-se também os diáconos
chamados a colaborar, segundo a própria missão, para este compromisso
de evangelização. A vida consagrada resplandece,
em toda a história da Igreja, pela sua capacidade de assumir explicitamente o
dever do anúncio e da pregação da Palavra de Deus na missio
ad gentes e nas situações mais difíceis, mostrando-se
disponível também para as novas condições de evangelização, empreendendo com
coragem e audácia novos percursos e novos desafios
para o anúncio eficaz da Palavra de Deus. Os
fiéis leigos são
chamados a exercer a sua missão profética, que deriva diretamente do batismo, e
testemunhar o Evangelho na vida diária onde quer que se encontrem. A este
respeito, os Padres sinodais exprimiram « a mais viva estima e gratidão bem
como encorajamento pelo serviço à evangelização que muitos leigos, e
particularmente as mulheres, prestam com generosidade e diligência nas
comunidades espalhadas pelo mundo, a exemplo de Maria de Magdala, primeira testemunha
da alegria pascal ». Além disso, o
Sínodo reconhece, com gratidão, que os movimentos eclesiais e as novas
comunidades constituem, na Igreja, uma grande força para a evangelização neste
tempo, impelindo a desenvolver novas formas de anúncio do Evangelho.
A
necessidade da « missio ad gentes »
95. Ao
exortar todos os fiéis para o anúncio da Palavra divina, os Padres
sinodais reafirmaram a necessidade, no nosso tempo também, de um decidido empenho
na missio ad gentes. A Igreja não pode de modo algum limitar-se a
uma pastoral de « manutenção » para aqueles que já conhecem o Evangelho de
Cristo. O ardor missionário é um sinal claro da maturidade de uma comunidade eclesial.
Além disso, os Padres exprimiram vivamente a consciência de que a Palavra de
Deus é a verdade salvífica da qual tem necessidade cada homem em todo o
tempo. Por isso, o anúncio deve ser explícito. A Igreja deve ir ao encontro de
todos com a força do Espírito (cf. 1 Cor 2, 5) e continuar
profeticamente a defender o direito e a liberdade das pessoas escutarem a
Palavra de Deus, procurando os meios mais eficazes
para a proclamar, mesmo sob risco de perseguição. A todos a Igreja se sente
devedora de anunciar a Palavra que salva (cf. Rm 1,
14).
Anúncio
e nova evangelização
96. O
Papa João Paulo II, na esteira de quanto já expressara o Papa Paulo VI na
Exortação apostólica Evangelii nuntiandi,
tinha de muitos modos lembrado aos fiéis a necessidade de uma nova estação missionária
para todo o Povo de Deus. Na alvorada do terceiro milênio, não só existem muitos
povos que ainda não conheceram a Boa Nova, mas há também muitos cristãos que
têm necessidade que lhes seja anunciada novamente, de modo persuasivo, a
Palavra de Deus, para poderem assim experimentar concretamente a força do
Evangelho. Há muitos irmãos que são « batizados, mas não suficientemente
evangelizados ». É freqüente ver nações, outrora ricas de fé e de vocações, que
vão perdendo a própria identidade, sob a influência
de uma cultura secularizada. A exigência de uma nova evangelização, tão sentida
pelo meu venerado Predecessor, deve-se reafirmar sem medo, na certeza da eficácia
da Palavra divina. A Igreja, segura da fidelidade do seu Senhor, não se cansa de anunciar
a boa nova do Evangelho e convida todos os cristãos a redescobrirem o fascínio
de seguir Cristo.
Palavra
de Deus e testemunho cristão
97. Os
horizontes imensos da missão eclesial e a complexidade da situação presente
requerem hoje modalidades renovadas para se poder comunicar eficazmente
a Palavra de Deus. O Espírito Santo, agente primário de toda a evangelização,
nunca deixará de guiar a Igreja de Cristo nesta atividade. Antes de mais nada,
é importante que cada modalidade de anúncio tenha presente a relação intrínseca
entre comunicação da Palavra de Deus e testemunho cristão;
disso depende a própria credibilidade do anúncio. Por um lado, é necessária a
Palavra que comunique aquilo que o próprio Senhor nos disse; por outro, é
indispensável dar, com o testemunho, credibilidade a esta Palavra, para que não
apareça como uma bela filosofia ou utopia, mas antes como uma realidade que se
pode viver e que faz viver. Esta reciprocidade entre Palavra e testemunho
recorda o modo como o próprio Deus Se comunicou por meio da encarnação do seu
Verbo. A Palavra de Deus alcança os homens « através do encontro com
testemunhas que a tornam presente e viva ». Particularmente as novas gerações
têm necessidade de ser introduzidas na Palavra de Deus « através do encontro e
do testemunho autêntico do adulto, da influência positiva dos amigos e da grande companhia
que é a comunidade eclesial ». Há uma relação estreita entre o testemunho da
Escritura, como atestado que a Palavra de Deus dá de si mesma, e o testemunho
de vida dos crentes. Um implica e conduz ao outro. O testemunho cristão
comunica a Palavra atestada nas Escrituras. Por sua vez, as Escrituras explicam
o testemunho que os cristãos são chamados a dar com a própria vida. Deste modo,
aqueles que encontram testemunhas credíveis do Evangelho são levados a
constatar a eficácia da Palavra de Deus naqueles que a acolhem. Nesta circularidade entre testemunho e
Palavra, compreendem-se as afirmações do Papa Paulo VI na Exortação apostólica
Evangelii nuntiandi. A nossa responsabilidade não se limita a sugerir
ao mundo valores que compartilhamos; mas é preciso chegar ao anúncio explícito
da Palavra de Deus. Só assim seremos fiéis ao mandato de Cristo: « Por conseguinte a
Boa Nova proclamada pelo testemunho de vida deverá, mais cedo ou mais tarde,
ser anunciada pela palavra de vida. Não há verdadeira evangelização, se o nome,
a doutrina, a vida, as promessas, o Reino, o mistério de Jesus de Nazaré, Filho
de Deus, não forem proclamados ». O fato do anúncio da Palavra de Deus requerer
o testemunho da própria vida é um dado bem presente na consciência cristã desde
as suas origens. O próprio Cristo é a testemunha fiel e verdadeira
(cf. Ap 1, 5; 3, 14), testemunha da Verdade (cf. Jo
18, 37). A este propósito, desejo recordar os inumeráveis testemunhos
que tivemos a graça de ouvir durante a assembleia sinodal. Ficamos
profundamente impressionados com o relato daqueles que souberam viver a fé e
dar luminosos testemunhos do Evangelho mesmo sob regimes contrários ao
cristianismo ou em situações de perseguição. Tudo isto não nos deve meter medo.
O próprio Jesus disse aos seus discípulos: « Um servo não é maior que o seu
senhor. Se a Mim Me perseguiram também vos perseguirão a vós » (Jo
15, 20). Por isso desejo elevar a Deus, com toda a Igreja, um hino de
louvor pelo testemunho de muitos irmãos e irmãs que, mesmo neste nosso tempo, deram
a vida para comunicar a verdade do amor de Deus que nos foi revelado em Cristo
crucificado e ressuscitado. Além disso, exprimo a gratidão da Igreja inteira
aos cristãos que não se rendem perante os obstáculos e as perseguições por
causa do Evangelho. Ao mesmo tempo unimo-nos, com profunda e solidária estima,
aos fiéis de todas as comunidades cristãs, particularmente na Ásia e na África,
que neste tempo arriscam a vida ou a marginalização social por causa da fé. Vemos
realizar-se aqui o espírito das bem-aventuranças do Evangelho para aqueles que
são perseguidos por causa do Senhor Jesus (cf. Mt
5, 11). Ao mesmo tempo não cessamos de erguer a nossa voz para que os
governos das nações garantam a todos liberdade de consciência e de religião,
inclusive para poder testemunhar publicamente a própria fé.
PALAVRA
DE DEUS E COMPROMISSO NO MUNDO
Servir
Jesus nos seus « irmãos mais pequeninos » (Mt 25,
40)
99. A
Palavra divina ilumina a existência humana e leva as consciências a reverem em
profundidade a própria vida, porque toda a história da humanidade está sob o
juízo de Deus: « Quando o Filho do Homem vier na sua glória, acompanhado por
todos os seus anjos, sentar-Se-á, então, no seu trono de glória. Perante Ele
reunir-se-ão todas as nações » (Mt 25, 31-32). No nosso
tempo, detemo-nos muitas vezes superficialmente no valor do instante que passa, como
se fosse irrelevante para o futuro. Diversamente, o Evangelho recorda-nos que
cada momento da nossa existência é importante e deve ser vivido intensamente, sabendo
que cada um deverá prestar contas da própria vida. No capítulo vinte e cinco do
Evangelho de Mateus, o Filho do Homem considera como feito ou não
feito a Si aquilo que tivermos feito ou deixado de fazer a um só dos seus «
irmãos mais pequeninos » (25, 40.45): « Tive fome e destes-Me de comer, tive
sede e destes-Me de beber; era peregrino e recolhestes-Me; estava nu e
destes-Me de vestir; adoeci e visitastes-Me; estive na prisão e fostes ter
comigo » (25, 35-36). Deste modo, é a própria Palavra de Deus que nos recorda a
necessidade do nosso compromisso no mundo e a nossa responsabilidade diante de
Cristo, Senhor da História. Quando anunciamos o Evangelho, exortamo-nos
reciprocamente a cumprir o bem e a empenhar-nos pela justiça, pela
reconciliação e pela paz.
Palavra
de Deus e compromisso na sociedade pela justiça
100. A
Palavra de Deus impele o homem para relações animadas pela retidão e pela
justiça, confirma o valor precioso aos olhos de Deus de todas as fadigas do homem
para tornar o mundo mais justo e mais habitável. A própria Palavra de Deus
denuncia, sem ambigüidade, as injustiças e promove a solidariedade e a
igualdade. À luz das palavras do Senhor, reconheçamos pois os « sinais dos
tempos » presentes na história, não nos furtemos ao compromisso em favor de quantos
sofrem e são vítimas do egoísmo. O Sínodo lembrou que o compromisso pela
justiça e a transformação do mundo é constitutivo da evangelização. Como dizia
o Papa Paulo VI, trata-se de « chegar a atingir e como que a modificar
pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os
centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os
modelos de vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de
Deus e com o desígnio da salvação ». Com este objetivo, os Padres sinodais
dirigiram um pensamento particular a quantos estão empenhados na vida política
e social. A evangelização e a difusão da
Palavra de Deus devem inspirar a sua ação no mundo à procura do verdadeiro bem
de todos, no respeito e promoção da dignidade de toda a pessoa. Certamente não
é tarefa direta da Igreja criar uma sociedade mais justa, embora lhe caiba o
direito e o dever de intervir sobre as questões éticas e morais que dizem
respeito ao bem das pessoas e dos povos. Compete sobretudo aos fiéis
leigos formados na escola do Evangelho intervir diretamente na ação social e política.
Por isso o Sínodo recomenda uma adequada educação segundo os princípios da
doutrina social da Igreja.
101.
Além disso, quero chamar a atenção geral para a importância de defender e
promover os direitos humanos de toda a pessoa, que,
como tais, são « universais, invioláveis e inalienáveis ». A Igreja aproveita a
ocasião extraordinária oferecida pelo nosso tempo para que a dignidade humana,
através da afirmação de tais direitos, seja mais eficazmente
reconhecida e promovida universalmente, como característica impressa por Deus
criador na sua criatura, assumida e redimida por Jesus Cristo através da sua
encarnação, morte e ressurreição. Por isso a difusão da Palavra de Deus não
pode deixar de reforçar a consolidação e o respeito dos direitos humanos de
cada pessoa.
Anúncio
da Palavra de Deus, reconciliação e paz entre os povos
102.
Dentre os numerosos âmbitos de compromisso, o Sínodo recomendou vivamente a
promoção da reconciliação e da paz. No contexto atual, é grande a necessidade
de descobrir a Palavra de Deus como fonte de reconciliação e de paz, porque nela
Deus reconcilia em Si todas as coisas (cf. 2 Cor 5,
18-20; Ef 1, 10): Cristo « é a nossa paz » (Ef
2, 14), Aquele que derruba os muros de divisão. Muitos testemunhos no
Sínodo comprovaram os graves e sangrentos conflitos e
as tensões presentes no nosso planeta. Às vezes tais hostilidades parecem
assumir o aspecto de conflito inter-religioso. Quero uma vez mais reafirmar
que a religião nunca pode justificar a intolerância ou as guerras. Não se pode
usar a violência em nome de Deus! Toda a
religião devia impelir para um uso correto da razão e promover valores éticos
que edifiquem a convivência civil. Fiéis à obra de reconciliação realizada por
Deus em Jesus Cristo, crucificado e ressuscitado, os católicos e todos os
homens de boa vontade empenhem-se por dar exemplos de reconciliação para se
construir uma sociedade justa e pacífica. Nunca esqueçamos que « onde as palavras humanas
se tornam impotentes, porque prevalece o trágico clamor da violência e das
armas, a força profética da Palavra de Deus não esmorece e repete-nos que a paz
é possível e que devemos nós mesmos, ser instrumentos de reconciliação e de paz
».
A
Palavra de Deus e a caridade ativa
103. O
compromisso pela justiça, a reconciliação e a paz encontra a sua raiz última e
perfeição no amor que nos foi revelado em Cristo. Ouvindo os testemunhos
proferidos no Sínodo, tornámo--nos mais atentos à ligação que há entre a escuta
amorosa da Palavra de Deus e o serviço desinteressado aos irmãos; que todos os fiéis
compreendam « a necessidade de traduzir em gestos de amor a palavra escutada,
porque só assim se torna credível o anúncio do Evangelho, apesar das fragilidades
humanas que marcam as pessoas ». Jesus passou por este mundo fazendo o bem (cf.
Act 10, 38). Escutando com ânimo disponível a Palavra
de Deus na Igreja, desperta-se « a caridade e a justiça para com todos,
sobretudo para com os pobres ». É
preciso nunca esquecer que « o amor – caritas – será
sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa. (…) Quem quer desfazer-se do
amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem ». Por isso, exorto
todos os fiéis a meditarem com freqüência o hino à caridade escrito pelo
Apóstolo Paulo, deixando-se inspirar por ele: « A caridade é paciente, a
caridade é benigna, não é invejosa; a caridade não se ufana, não se
ensoberbece, não é inconveniente, não procura o seu interesse, não se irrita,
não suspeita mal, não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade.
Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade nunca acabará »
(1 Cor 13, 4-8). Deste modo o amor do próximo, radicado
no amor de Deus, deve ser o nosso compromisso constante como indivíduos e como
comunidade eclesial local e universal. Diz Santo Agostinho: « É fundamental
compreender que a plenitude da Lei, bem como de todas as Escrituras divinas, é
o amor (…). Por isso quem julga ter compreendido as Escrituras, ou pelo menos
uma parte qualquer delas, mas não se empenha a construir, através da sua
inteligência, este duplo amor de Deus e do próximo, demonstra que ainda não as
compreendeu ».
Anúncio
da Palavra de Deus e os jovens
104. O
Sínodo reservou uma atenção particular ao anúncio da Palavra divina feito às
novas gerações. Os jovens já são membros ativos da Igreja e representam o seu
futuro. Muitas vezes encontramos neles uma abertura espontânea à escuta da Palavra
de Deus e um desejo sincero de conhecer Jesus. De
fato, na idade da juventude, surgem de modo irreprimível e sincero as questões
sobre o sentido da própria vida e sobre a direção que se deve dar à própria
existência. A estas questões só Deus sabe dar verdadeira resposta. Esta
solicitude pelo mundo juvenil implica a coragem de um anúncio claro; devemos
ajudar os jovens a ganharem confidência e familiaridade com a Sagrada Escritura,
para que seja como uma bússola que indica a estrada a seguir. Para isso,
precisam de testemunhas e mestres, que caminhem com eles e os orientem para amarem
e por sua vez comunicarem o Evangelho sobretudo aos da sua idade, tornando-se
eles mesmos arautos autênticos e credíveis. É preciso que a Palavra divina seja
apresentada também nas suas implicações vocacionais de modo a ajudar e orientar
os jovens nas suas opções de vida, incluindo a consagração total. Autênticas vocações
para a vida consagrada e para o sacerdócio encontram o seu terreno propício no contacto
fiel com a Palavra de Deus. Repito aqui o convite que fiz no
início do meu pontificado para abrir de par em par as portas a
Cristo: « Quem faz entrar Cristo, nada perde, nada – absolutamente nada daquilo
que torna a vida livre, bela e grande. Não! Só nesta amizade se abrem de par em
par as portas da vida. Só nesta amizade se abrem realmente as grandes
potencialidades da condição humana. (…) Queridos jovens, não tenhais medo de
Cristo! Ele não tira nada, e dá tudo. Quem se entrega a Ele, recebe o cêntuplo.
Sim, abri de par em par as portas a Cristo, e encontrareis a vida verdadeira ».
Anúncio
da Palavra de Deus e os migrantes
105. A
Palavra de Deus torna-nos atentos à história e a tudo o que de novo germina
nela. Por isso o Sínodo quis, a propósito da missão evangelizadora da Igreja, fixar a
atenção também no fenômeno complexo dos movimentos migratórios, que tem
assumido nestes anos proporções inéditas. Aqui levantam-se questões bastante
delicadas relativas à segurança das
nações e ao acolhimento que se
deve oferecer a quantos buscam refúgio, melhores condições de vida, saúde,
trabalho. Um grande número de pessoas, que não conhece Cristo ou possui uma
imagem imperfeita d’Ele, estabelece-se em países de tradição cristã. Ao mesmo
tempo pessoas que pertencem a povos marcados profundamente pela fé cristã
emigram para países onde há necessidade de levar o anúncio de Cristo e de uma
nova evangelização. Estas novas situações oferecem novas possibilidades para a
difusão da Palavra de Deus. A este propósito, os Padres sinodais afirmaram
que os migrantes têm o direito de ouvir o kerygma, que lhes
é proposto, não imposto. Se forem cristãos, necessitam de uma assistência
pastoral adequada para fortalecer a fé e serem eles mesmos portadores do
anúncio evangélico. Conscientes da complexidade do fenômeno, é necessário que
todas as dioceses interessadas se mobilizem para que os movimentos migratórios
sejam considerados também como ocasião para descobrir novas modalidades de
presença e de anúncio e se proveja, segundo as próprias possibilidades, a um
condigno acolhimento e animação destes nossos irmãos para que, tocados pela Boa
Nova, se façam eles mesmos anunciadores da Palavra de Deus e testemunhas do
Senhor Ressuscitado, esperança do mundo.
Anúncio
da Palavra de Deus e os doentes
106.
Ao longo dos trabalhos sinodais, a atenção dos Padres deteve-se também na
necessidade de anunciar a Palavra de Deus a todos aqueles que estão em
condições de sofrimento físico, psíquico ou espiritual. De fato, é na hora do
sofrimento que se levantam mais acutilantes no coração do homem as
questões últimas sobre o sentido da própria vida. Se a
palavra do homem parece emudecer diante do mistério do mal e da dor e a nossa
sociedade parece dar valor à vida apenas se corresponde a certos níveis de eficiência
e bem-estar, a Palavra de Deus revela-nos que mesmo estas circunstâncias são
misteriosamente « abraçadas » pela ternura divina. A fé que nasce do encontro com
a Palavra divina ajuda-nos a considerar a vida humana
digna de ser vivida plenamente, mesmo quando está debilitada pelo mal. Deus
criou o homem para a felicidade e a vida, enquanto a doença e a morte entraram
no mundo em conseqüência do pecado (cf. Sb 2,
23-24). Mas o Pai da vida é o médico por excelência do homem e não cessa de
inclinar-Se amorosamente sobre a humanidade que sofre. Contemplamos o apogeu da
proximidade de Deus ao sofrimento do homem, no próprio Jesus que é « Palavra
encarnada. Sofreu conosco, morreu. Com a sua paixão e morte, assumiu e
transformou profundamente a nossa debilidade ». A
proximidade de Jesus aos doentes não se interrompeu:
prolonga-se no tempo graças à ação do Espírito Santo na missão da Igreja, na
Palavra e nos Sacramentos, nos homens de boa vontade, nas atividades de
assistência que as comunidades promovem com caridade fraterna, mostrando assim o
verdadeiro rosto de Deus e o seu amor. O Sínodo dá graças a Deus pelo
testemunho esplêndido, freqüentemente escondido, de muitos cristãos – sacerdotes,
religiosos e leigos – que emprestaram e continuam a emprestar as suas mãos, os
seus olhos e os seus corações a Cristo, verdadeiro médico dos corpos e das
almas. Depois exorta para que se continue a cuidar das pessoas doentes, levando-lhes
a presença vivificadora do Senhor Jesus na Palavra e na
Eucaristia. Sejam ajudadas a ler a Escritura e a descobrir que podem,
precisamente na sua condição, participar de um modo particular no sofrimento
redentor de Cristo pela salvação do mundo (cf. 2
Cor 4, 8-11.14).
Anúncio
da Palavra de Deus e os pobres
107. A
Sagrada Escritura manifesta a predileção de Deus pelos pobres e necessitados
(cf. Mt 25, 31-46). Com freqüência, os Padres sinodais lembraram
a necessidade de que o anúncio evangélico e o empenho dos pastores e das
comunidades se dirijam a estes nossos irmãos. Com efeito, « os primeiros que
têm direito ao anúncio do Evangelho são precisamente os pobres, necessitados não
só de pão, mas também de palavras de vida ». A diaconia da caridade, que nunca
deve faltar nas nossas Igrejas, tem de estar sempre ligada ao anúncio da
Palavra e à celebração dos santos mistérios. Ao mesmo tempo é preciso
reconhecer e valorizar o fato de que os próprios pobres são também agentes de
evangelização. Na Bíblia, o verdadeiro pobre é aquele que se confia
totalmente a Deus e, no Evangelho, o próprio Jesus chama-os bem-aventurados, «
porque deles é o reino dos céus » (Mt 5, 3; cf. L
c 6, 20). O Senhor exalta a simplicidade de coração de quem reconhece em
Deus a verdadeira riqueza, coloca n’Ele a sua esperança e não nos bens deste
mundo. A Igreja não pode desiludir os pobres: « Os pastores são chamados a
ouvi-los, a aprender deles, a guiá-los na sua fé e a motivá-los para serem
construtores da própria história ». A Igreja está ciente também de que existe uma
pobreza que é virtude a cultivar e a abraçar livremente,
como fizeram muitos Santos, e há a miséria, muitas vezes resultante
de injustiças e provocada pelo egoísmo, que produz indigência e fome e alimenta
os conflitos. Quando a Igreja anuncia a Palavra de Deus sabe que é preciso
favorecer um « círculo virtuoso » entre a pobreza « que
se deve escolher » e a pobreza « que
se deve combater », redescobrindo « a sobriedade e a
solidariedade como valores simultaneamente evangélicos e universais. (…) Isto
obriga a opções de justiça e de sobriedade ».
Palavra
de Deus e defesa da criação
108. O
compromisso no mundo requerido pela Palavra divina impele-nos a ver com olhos
novos todo o universo criado por Deus e que traz já em si os vestígios do
Verbo, por Quem tudo foi feito (cf. Jo 1, 2). Com efeito, há uma
responsabilidade que nos compete como fiéis e anunciadores do Evangelho também a
respeito da criação. A revelação, ao mesmo tempo que nos dá a conhecer o
desígnio de Deus sobre o universo, leva-nos também a denunciar os
comportamentos errados do homem, quando não reconhece todas as coisas como reflexo do
Criador, mas mera matéria que se pode manipular sem escrúpulos. Deste modo,
falta ao homem aquela humildade essencial que lhe permite reconhecer a criação
como dom de Deus que se deve acolher e usar segundo o seu desígnio. Ao
contrário, a arrogância do homem que vive como se Deus não existisse, leva a
explorar e deturpar a natureza, não a reconhecendo como uma obra da Palavra
criadora. Neste quadro teológico, desejo lembrar as afirmações
dos Padres sinodais ao recordarem que o fato de « acolher a Palavra de Deus
atestada na Sagrada Escritura e na Tradição viva da Igreja gera um novo modo de
ver as coisas, promovendo um ecologia autêntica, que tem a sua raiz mais
profunda na obediência da fé, (…) e desenvolvendo una renovada sensibilidade teológica
sobre a bondade de todas as coisas, criadas em Cristo ». O homem precisa de ser
novamente educado para se maravilhar, reconhecendo a verdadeira beleza que se
manifesta nas coisas criadas.
PALAVRA
DE DEUS E CULTURAS
O
valor da cultura para a vida do homem
109. O
anúncio joanino referente à encarnação do Verbo revela o vínculo indissolúvel
que existe entre a Palavra divina e as palavras
humanas, através das quais Se nos comunica. Foi no âmbito desta reflexão
que o Sínodo dos Bispos se deteve sobre a relação entre Palavra de Deus e
cultura. De fato, Deus não Se revela ao homem abstratamente, mas assumindo
linguagens, imagens e expressões ligadas às diversas culturas. Trata-se de uma
relação fecunda, largamente testemunhada na história da Igreja. Hoje tal relação
entra também numa nova fase, devido à propagação e enraizamento da
evangelização dentro das diversas culturas e nas mais recentes evoluções da
cultura ocidental. Isto implica, antes de mais nada, reconhecer a importância
da cultura como tal para a vida de cada homem. De fato, o fenômeno da cultura, nos
seus múltiplos aspectos, apresenta-se como um dado constitutivo da experiência
humana: « O homem vive sempre segundo uma cultura que lhe é própria e por sua
vez cria entre os homens um laço, que lhes é próprio também, determinando o
caráter inter-humano e social da existência humana fundamentais, expressões
artísticas magníficas e estilos de vida exemplares. Assim, na esperança de um renovado encontro
entre Bíblia e culturas, quero reafirmar a todos os agentes culturais que nada têm a
temer da sua abertura à Palavra de Deus, que nunca destrói a verdadeira
cultura, mas constitui um estímulo constante para a busca de expressões humanas
cada vez mais apropriadas e significativas. Para servir verdadeiramente o homem, cada
cultura autêntica deve estar aberta à transcendência e, em última análise, a
Deus.
A
Bíblia como grande código para as culturas
110.
Os Padres sinodais sublinharam a importância de favorecer um adequado
conhecimento da Bíblia entre os agentes culturais, mesmo nos ambientes
secularizados e entre os não crentes; na Sagrada Escritura, estão contidos
valores antropológicos e filosóficos que influíram positivamente sobre toda a humanidade.
Deve-se recuperar plenamente o sentido da Bíblia como grande código para as
culturas.
O
conhecimento da Bíblia nas escolas e universidades
111.
Um âmbito particular do encontro entre Palavra de Deus e culturas é o da escola
e da universidade. Os
Pastores tenham um cuidado especial por estes ambientes, promovendo um
conhecimento profundo da Bíblia para se poder individuar, também hoje, as suas
fecundas implicações culturais. Os centros de estudo promovidos pelas realidades
católicas oferecem uma contribuição original – que deve ser reconhecida – para
a promoção da cultura e da instrução. Além disso, não se deve descuidar o ensino
da religião, formando cuidadosamente os professores. Em
muitos casos, isto representa para os estudantes uma ocasião única de contacto
com a mensagem da fé. É bom que se promova, neste ensino, o conhecimento da
Sagrada Escritura, superando antigos e novos preconceitos e procurando dar a
conhecer a sua verdade.
A
Sagrada Escritura nas diversas expressões artísticas
112. A
relação entre Palavra de Deus e cultura encontrou expressão em obras de âmbitos
diversos, particularmente no mundo da arte. Por
isso a grande tradição do Oriente e do Ocidente sempre estimou as manifestações
artísticas inspiradas na Sagrada Escritura, como, por exemplo, as artes figurativas
e a arquitetura, a literatura e a música. Penso também na antiga linguagem
expressa pelos ícones que, partindo da tradição
oriental, aos poucos se foi espalhando por todo o mundo. Com os Padres
sinodais, a Igreja inteira exprime apreço, estima e admiração pelos artistas «
enamorados da beleza », que se deixaram inspirar pelos textos sagrados; contribuíram
para a decoração das nossas igrejas, a celebração da nossa fé, o enriquecimento
da nossa liturgia, e muitos deles ajudaram ao mesmo tempo a tornar de algum
modo perceptível no tempo e no espaço as realidades invisíveis e eternas.
Exorto os organismos competentes a promoverem na Igreja uma sólida formação dos
artistas sobre a Sagrada Escritura à luz da Tradição viva da Igreja e do
Magistério.
Palavra
de Deus e meios de comunicação social
113.
Ligada à relação entre Palavra de Deus e culturas está também a importância da
utilização cuidadosa e inteligente dos meios, antigos e novos, de comunicação
social. Os Padres sinodais recomendaram um conhecimento apropriado destes instrumentos,
estando atentos ao seu rápido desenvolvimento e aos diversos níveis de interação
e investindo maiores energias para adquirir competência nos vários sectores,
particularmente nos novos meios de comunicação, como por exemplo, a internet. Por
parte da Igreja, já existe uma significativa presença no mundo da comunicação de massa,
e o próprio Magistério eclesial exprimiu-se várias vezes sobre este tema a
partir do Concílio Vaticano II. A aquisição de novos métodos para transmitir a
mensagem evangélica faz parte da constante tensão evangelizadora dos fiéis, e
hoje a rede de comunicação envolve o mundo inteiro, tendo adquirido um novo
significado o apelo de Cristo: « O que vos digo às escuras, dizei-o à luz do
dia, e o que escutais ao ouvido, proclamai-o sobre os terraços » (Mt
10, 27). Para além da forma escrita, a Palavra divina deve ressoar
também através das outras formas de comunicação. Por isso, juntamente com os
Padres sinodais, desejo agradecer aos católicos que lutam com competência por
uma presença significativa no mundo dos mass
media, solicitando um empenhamento ainda mais amplo e qualificado. Entre
as novas formas de comunicação de massa, há que reconhecer hoje um papel
crescente à internet, que
constitui um novo fórum onde fazer ressoar o Evangelho, na certeza, porém, de que
o mundo virtual nunca poderá substituir o mundo real e que a evangelização só
poderá usufruir da virtualidade oferecida
pelos novos meios de comunicação para instaurar relações significativas,
se se chegar ao encontro pessoal que
permanece insubstituível. No mundo da internet, que
permite que bilhões de imagens apareçam sobre milhões de monitores em todo o
mundo, deverá sobressair o rosto de Cristo e
ouvir-se a sua voz, porque, « se não há espaço para Cristo, não há espaço para
o homem ».
Bíblia
e inculturação
114. O
mistério da encarnação mostra-nos que Deus, por um lado, comunica-Se sempre
numa história concreta, assumindo os códigos culturais nela inscritos, mas, por
outro, a própria Palavra pode e deve transmitir-se em culturas diferentes, transfigurando-as
a partir de dentro através daquilo que Paulo VI chamava a
evangelização das culturas. Deste
modo a Palavra de Deus, como aliás a fé cristã, manifesta um caráter
profundamente intercultural,
capaz de encontrar e fazer encontrar culturas diversas. Neste contexto,
compreende-se também o valor da inculturação do
Evangelho. A Igreja está firmemente persuadida da capacidade intrínseca que
tem a Palavra de Deus de atingir todas as pessoas humanas no contexto cultural
onde vivem: « Esta convicção deriva da própria Bíblia, que, desde o livro do Genesis,
assume uma orientação universal (cf. Gn 1, 27-28), mantém-na
depois na bênção prometida a todos os povos graças a Abraão e à sua
descendência (cf. Gn 12, 3; 18, 18) e confirma-a
definitivamente quando estende a “todas as nações” a evangelização ». Por
isso, a inculturação não deve ser confundida com processos de adaptação superficial,
nem mesmo com a amálgama sincretista que dilui a originalidade do Evangelho
para o tornar mais facilmente aceitável. O autêntico paradigma da inculturação
é a própria encarnação do Verbo: « A “aculturação” ou “inculturação” será
realmente um reflexo da encarnação do Verbo, quando uma cultura,
transformada e regenerada pelo Evangelho produzir na sua própria tradição
expressões originais de vida, de celebração, de pensamento cristão », levedando
como o fermento dentro da cultura local, valorizando as semina
Verbi e tudo o que de positivo haja nela, abrindo-a aos valores
evangélicos.
Traduções
e difusão da Bíblia
115. Se
a inculturação da Palavra de Deus é parte imprescindível da missão da Igreja no
mundo, um momento decisivo deste processo é a difusão da Bíblia por meio do
valioso trabalho de tradução nas diversas línguas. A este propósito, nunca se
deve esquecer que a obra de tradução das Escrituras « teve início desde os
tempos do Antigo Testamento quando o texto hebraico da Bíblia foi traduzido
oralmente para aramaico (Ne 8, 8.12) e, mais tarde,
traduzido de forma escrita para grego. De fato, uma tradução é sempre algo mais
do que uma simples transcrição do texto original. A passagem de uma língua para
outra comporta necessariamente uma mudança de contexto cultural: os conceitos
não são idênticos e o alcance dos símbolos é diferente, porque põem em relação com
outras tradições de pensamento e outros modos de viver ». Durante os trabalhos
sinodais, pôde-se constatar que várias Igrejas locais ainda não dispõem de uma
tradução integral da Bíblia nas suas próprias línguas. Atualmente quantos povos
têm fome e sede da Palavra de Deus, mas infelizmente não podem ainda ter um «
acesso patente à Sagrada Escritura », como desejara o Concílio Vaticano II. Por
isso, o Sínodo considera importante, antes de qualquer coisa, a formação de
especialistas que se dediquem a traduzir a Bíblia nas diversas línguas. Encorajo
a que se invistam recursos neste âmbito. De modo particular, quero recomendar que
seja apoiado o empenho da Federação Bíblica Católica para um incremento ainda
maior do número das traduções da Sagrada Escritura e da sua minuciosa
difusão.374 Bom será que tal trabalho, pela sua própria natureza, seja feito na
medida do possível em colaboração com as diversas Sociedades Bíblicas.
A
Palavra de Deus supera os limites das culturas
116.
No debate sobre a relação entre Palavra de Deus e culturas, a assembleia
sinodal sentiu necessidade de reafirmar aquilo que os primeiros cristãos puderam
experimentar desde o dia de Pentecostes (cf. Act 2,
1-13). A Palavra divina é capaz de penetrar e exprimir-se em culturas e línguas
diferentes, mas a própria Palavra transfigura os limites de cada uma das culturas criando
comunhão entre povos diversos. A Palavra do Senhor convida-nos a avançar para
uma comunhão mais vasta. « Saímos da estreiteza das nossas experiências e
entramos na realidade que é verdadeiramente universal. Entrando na comunhão com
a Palavra de Deus, entramos na comunhão da Igreja que vive a Palavra de Deus.
(…) É sair dos limites de cada uma das culturas para a universalidade que
nos vincula a todos, a todos nos une e faz irmãos ». Portanto, anunciar a
Palavra de Deus começa sempre por nos pedir a nós mesmos um renovado êxodo,
deixando as nossas medidas e as nossas imaginações limitadas para abrir espaço em
nós à presença de Cristo.
PALAVRA
DE DEUS E DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO
O
valor do diálogo inter-religioso
117. A
Igreja reconhece como parte essencial do anúncio da Palavra o encontro, o
diálogo e a colaboração com todos os homens de boa vontade, particularmente com
as pessoas pertencentes às diversas tradições religiosas da humanidade, evitando
formas de sincretismo e de relativismo e seguindo as linhas indicadas pela
Declaração do Concílio Vaticano II Nostra aetate e
desenvolvidas pelo Magistério sucessivo dos Sumos Pontífices.
O
processo veloz de globalização, característico da nossa época, permite viver em
contacto mais estreito com pessoas de culturas e religiões diferentes. Trata-se
de uma oportunidade providencial para manifestar como o autêntico sentido
religioso pode promover entre os homens relações de fraternidade universal. É
muito importante que as religiões possam favorecer, nas nossas sociedades frequentemente
secularizadas, uma mentalidade que veja em Deus Omnipotente o fundamento de todo
o bem, a fonte inexaurível da vida moral, o sustentáculo de um profundo sentido
de fraternidade universal.
Na
tradição judaico-cristã, por exemplo, encontra-se sugestivamente confirmado
o amor de Deus por todos os povos, que Ele, já na Aliança estabelecida com Noé,
reúne num único e grande abraço simbolizado pelo « arco nas nuvens » (Gn
9, 13.14.16) e que, segundo as palavras dos profetas, pretende
congregar numa única família universal (cf. Is 2,
2ss; 42, 6; 66, 18-21; Jr 4, 2; Sl
47). Na realidade aparecem, em muitas das grandes tradições religiosas,
testemunhos da ligação íntima que existe entre a relação com Deus e a ética do
amor por todo o homem.
Diálogo
entre cristãos e muçulmanos
118.
De entre as diversas religiões, a Igreja olha com estima os muçulmanos, que
reconhecem a existência de um único Deus; fazem referimento a Abraão e prestam
culto a Deus, sobretudo com a oração, a esmola e o jejum. Reconhecemos que, na
tradição do Islã, há muitas figuras, símbolos e temas bíblicos. Em
continuidade com a importante ação empreendida pelo Venerável João Paulo II,
desejo que as relações baseadas na confiança, que estão instauradas desde há diversos anos
entre cristãos e muçulmanos, continuem e se desenvolvam num espírito de diálogo
sincero e respeitoso. Neste diálogo, o Sínodo fez votos de que se possam
aprofundar o respeito da vida como valor fundamental, os direitos inalienáveis do
homem e da mulher e a sua igual dignidade. Tendo em conta a distinção entre a
ordem sociopolítica e a ordem religiosa, as religiões devem dar a sua
contribuição para o bem comum. O Sínodo pede às Conferências Episcopais que se
favoreçam, onde for oportuno e profícuo, encontros para um conhecimento
recíproco entre cristãos e muçulmanos a fim de se promoverem os valores de que a sociedade
tem necessidade para uma convivência pacífica e positiva.
Diálogo
com as outras religiões
119.
Além disso, desejo aqui manifestar o respeito da Igreja pelas antigas religiões
e tradições espirituais dos vários Continentes; contêm valores que podem
favorecer imenso a compreensão entre as pessoas e os povos. Muitas vezes
constatamos sintonias com valores expressos também nos seus livros religiosos,
como, por exemplo, o respeito pela vida, a contemplação, o silêncio e a simplicidade,
no Budismo; o sentido da sacralidade, do sacrifício e do jejum, no Hinduísmo; e
ainda os valores familiares e sociais no Confucionismo. Vemos, ainda noutras
experiências religiosas, uma sincera atenção à transcendência de Deus, reconhecido
como Criador, e também ao respeito da vida, do matrimonio e da família e ainda
um forte sentido da solidariedade.
Diálogo
e liberdade religiosa
120.
Todavia o diálogo não seria fecundo, se não incluísse também um verdadeiro
respeito por toda a pessoa para que possa aderir livremente à sua própria
religião. Por isso o Sínodo, ao mesmo tempo que promove a colaboração entre os
expoentes das diversas religiões, recorda igualmente « a necessidade de que
seja efetivamente assegurada a todos os crentes a liberdade de professar, privada
e publicamente a sua própria religião, e também a liberdade de consciência »; de
fato « o respeito e o diálogo exigem a reciprocidade em todos os campos,
sobretudo no que diz respeito às liberdades fundamentais e, de modo muito
particular, à liberdade religiosa. Tal respeito e diálogo favorecem a paz e a
harmonia entre os povos ».
CONCLUSÃO
A
palavra definitiva de Deus
121.
No termo destas reflexões, em que reuni e aprofundei a riqueza da
XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre a Palavra de Deus na
vida e na missão da Igreja, desejo uma vez mais exortar todo o Povo de Deus, os
Pastores, as pessoas consagradas e os fiéis leigos a empenharem-se para que as Sagradas
Escrituras se lhes tornem cada vez mais familiares. Nunca devemos esquecer que,
na base de toda a espiritualidade cristã autêntica e viva, está a
Palavra de Deus anunciada, acolhida, celebrada e meditada na Igreja. A
intensificação do relacionamento com a Palavra divina acontecerá com tanto
maior decisão quanto mais cientes estivermos de nos encontrar, quer na
Escritura quer na Tradição viva da Igreja, em presença da Palavra definitiva
de Deus sobre o universo e a história. Como nos leva a contemplar o Prólogo do Evangelho
de João, todo o ser está sob o signo da Palavra. O Verbo sai do Pai e vem
habitar entre os Seus e regressa ao seio do Pai para levar consigo toda a
criação que n’Ele e para Ele fora criada.
Agora
a Igreja vive a sua missão na veemente expectativa da manifestação escatológica
do Esposo: « O Espírito e a Esposa dizem: “Vem!” » (Ap
22, 17). Esta expectativa nunca é passiva, mas tensão missionária de
anúncio da Palavra de Deus que cura e redime todo o homem; ainda hoje Jesus ressuscitado
nos diz: « Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa Nova a toda a criatura » (Mc
16, 15).
Nova
evangelização e nova escuta
122.
Por isso, o nosso deve ser cada vez mais o tempo de uma nova escuta da Palavra
de Deus e de uma nova evangelização. É
que descobrir a centralidade da Palavra de Deus na vida cristã faz-nos encontrar
o sentido mais profundo daquilo que João Paulo II incansavelmente lembrou:
continuara missio ad gentes e
empreender com todas as forças a nova evangelização, sobretudo naquelas nações
onde o Evangelho foi esquecido ou é vítima da indiferença da maioria por causa
de um difundido secularismo. O Espírito Santo desperte nos homens fome e sede
da Palavra de Deus e os torne zelosos anunciadores e testemunhas do Evangelho.
À
imitação do grande Apóstolo das Nações, que ficou
transformado depois de ter ouvido a voz do Senhor (cf. Act
9, 1-30), escutemos também nós a Palavra divina que não cessa de nos interpelar
pessoalmente aqui e agora. O Espírito Santo reservou para Si – narram os Actos
dos Apóstolos – Paulo e Barnabé para a pregação e a difusão da
Boa Nova (cf. 13, 2). Também hoje de igual modo o Espírito Santo não cessa de
chamar ouvintes e anunciadores convictos e persuasivos da Palavra do Senhor.
A
Palavra e a alegria
123.
Quanto mais soubermos colocar-nos à disposição da Palavra divina, tanto mais
poderemos constatar como o mistério do Pentecostes se está a realizar ainda
hoje na Igreja de Deus. O Espírito do Senhor continua a derramar os seus dons
sobre a Igreja, para que sejamos guiados para a verdade total, desvendando-nos
o sentido das Escrituras e tornando-nos anunciadores credíveis da Palavra de
salvação. E assim regressamos à Primeira Carta de São João. Na
Palavra de Deus, também nós escutamos, vimos e tocamos o Verbo da vida. Por graça,
acolhemos o anúncio de que a vida eterna se manifestou, de modo que agora
reconhecemos que estamos em comunhão uns com os outros, com quem nos precedeu no
sinal da fé e com todos aqueles que, espalhados pelo mundo, escutam a Palavra,
celebram a Eucaristia, vivem o testemunho da caridade. Recebemos a comunicação
deste anúncio – recorda-nos o apóstolo João – para que « a nossa alegria seja
completa » (cf. 1 Jo 1, 4). A Assembleia
sinodal permitiu-nos experimentar tudo isto que está contido na mensagem joanina:
o anúncio da Palavra cria comunhão e gera
a alegria. Trata-se de uma alegria profunda que brota do
próprio coração da vida trinitária e é-nos comunicada no Filho. Trata-se da
alegria como dom inefável que o mundo não pode dar. Podem-se organizar festas,
mas não a alegria. Segundo a Escritura, a alegria é fruto do Espírito Santo
(cf. Gl 5, 22), que nos permite entrar na Palavra e
fazer com que a Palavra divina entre em nós e frutifique para
a vida eterna. Anunciando a Palavra de Deus na força do Espírito Santo,
queremos comunicar também a fonte da verdadeira alegria, não uma alegria superficial e
efêmera, mas aquela que brota da certeza de que só o Senhor Jesus tem palavras de
vida eterna (cf. Jo 6, 68). «
Mater Verbi et Mater laetitiae »
124.
Esta relação íntima entre a Palavra de Deus e a alegria aparece em evidência
precisamente na Mãe de Deus. Recordemos as palavras de Santa Isabel: « Feliz
daquela que acreditou que teriam cumprimento as coisas que lhe foram ditas da parte
do Senhor » (L c 1, 45). Maria é feliz
porque tem fé, porque acreditou, e, nesta fé, acolheu no seu ventre o Verbo de
Deus para O dar ao mundo. A alegria recebida da Palavra pode agora estender-se
a todos aqueles que na fé se deixam transformar pela Palavra de Deus. O Evangelho
de Lucas apresenta-nos este mistério de escuta e de alegria, em dois textos.
Jesus afirma: « Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de
Deus e a põem em prática » (8, 21). E, em resposta à exclamação duma mulher
que, do meio da multidão, pretende exaltar o ventre que O trouxe e o seio que O
amamentou, Jesus revela o segredo da verdadeira alegria: « Diz antes: Felizes
os que escutam a palavra de Deus e a põem em prática » (11, 28). Jesus
manifesta a verdadeira grandeza de Maria, abrindo assim também a cada um de nós
a possibilidade daquela bem-aventurança que nasce da Palavra acolhida e posta
em prática. Por isso, recordo a todos os cristãos que o nosso relacionamento pessoal
e comunitário com Deus depende do incremento da nossa familiaridade com a
Palavra divina. Por fi m, dirijo-me a todos os homens, mesmo a quantos
se afastaram da Igreja, que abandonaram a fé ou que nunca ouviram o anúncio de
salvação. O Senhor diz a cada um: « Eis que estou à porta e bato. Se alguém
ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele
comigo » (Ap 3, 20). Por isso, cada um dos nossos dias seja
plasmado pelo encontro renovado com Cristo, Verbo do Pai feito carne: Ele está
no início e no fim de tudo, e n’Ele todas as coisas subsistem
(cf. Cl 1, 17). Façamos silêncio para ouvir a Palavra do
Senhor e meditá-la, a fi m de que a mesma, através da ação eficaz do
Espírito Santo, continue a habitar e a viver em nós e a falar-nos ao longo de
todos os dias da nossa vida. Desta forma, a Igreja sempre se renova e
rejuvenesce graças à Palavra do Senhor, que permanece eternamente (cf. 1
Pd 1, 25; Is 40, 8). Assim também nós
poderemos entrar no esplêndido diálogo nupcial com que se encerra a Sagrada
Escritura: « O Espírito e a Esposa dizem: “Vem”! E, aquele que ouve, diga:
“Vem”! (…) O que dá testemunho destas coisas diz. “Sim, Eu venho em breve”!
Amen. Vem, Senhor Jesus! » (Ap 22, 17.20).
Dado
em Roma, junto de São Pedro, no dia 30 de Setembro – memória de São Jerónimo –
de 2010, sexto ano de Pontificado.
TIPOGRAFIA
VATICANA