segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Para entender o protestantismo

O Protestantismo partiu, no século XVI, de uma intuição muito válida e oportuna: restaurar a estima e o culto da Palavra de Deus, com todo o seu poder de santificação. Se tivessem tirado as conseqüências lógicas deste princípio, os reformadores teriam corroborado e abrilhantado a única Igreja de Cristo. Pois a Palavra de Deus na Bíblia remete constantemente à Palavra viva da Tradição oral, que na Igreja, assistida por Cristo, passa de geração em geração; é a Palavra oral o critério abalizado para se entender e interpretar a Bíblia. Admitindo a Igreja como depositária e intérprete da Palavra, os protestantes teriam admitido outrossim a autoridade da Igreja para santificar ou recriar o homem mediante a Palavra de Deus, pois esta é não apenas ensinamento para a inteligência mas força viva que restaura o homem. A Palavra de Deus desenvolve toda a sua eficácia quando se torna não apenas audível, mas visível nos sacramentos (água batismal, pão e vinho eucarísticos, óleo sagrado...); assim os sacramentos, como a própria Igreja, estão implícitos na revalorização da Palavra de Deus apregoada pelos reformadores do século XVI.
Infelizmente, porém, estes deixaram-se influenciar por teses da filosofia nominalista e do subjetivismo dos séculos XV/XVI. Arrancaram a Bíblia do seu berço e do seu ambiente co-natural, que é a Palavra de Deus oral; assim a Bíblia foi paradoxalmente desvalorizada, porque feita letra morta, sujeita ao arbítrio tanto de ´´profetas´´ fantasiosos como de estudiosos racionalistas liberais.
Lembrar estas verdades é aplainar o caminho para a reunião dos cristãos; os protestantes afirmam um princípio muito válido, que eles não devem renegar, mas apenas desenvolver segundo a lógica exigida por essa premissa mesma.
0 fenômeno protestante, com as suas diversas afirmações, vai/se impondo à atenção do público, especialmente dos católicos. Variado como é, exige que distingamos entre o Protestantismo clássico, dito ´´histórico´´ ou ´´tradicional´´, que é o de Lutero, Calvino, Knox (século XVI) e o Protestantismo recente, oriundo principalmente dos Estados Unidos da América (pentecostais, mórmons, adventistas, e suas subdivisões ... ). É mais difícil dialogar com o Protestantismo moderno, pois este se torna cada vez mais distante das fontes do Cristianismo: os mórmons têm uma ´´nova Bíblia´´ (o Livro de Mórmon); os adventistas e as testemunhas de Jeová retornam ao Antigo Testamento, com detrimento da mensagem propriamente cristã; os pentecostais enfatizam unilateralmente os fenômenos extraordinários, os estados psicológicos e a ação do demônio, seguindo muitas vezes as emoções mais do que o raciocínio e a fé esclarecida... Ao contrário, o diálogo com o Protestantismo clássico tem sido efetuado entre teólogos num clima sereno, que permite remover atitudes passionais e favorece a compreensão mútua.
Entre os nomes que mais se destacam nesse diálogo, está o do francês Louis Bouyer, que foi fervoroso ministro protestante; guiado pelo estudo objetivo, tornou-se católico e hoje é sacerdote oratoriano, muito interessado em fomentar a aproximação de católicos e protestantes. L. Bouyer escreveu diversas obras sobre o seu itinerário espiritual, das quais merecem destaque ´´Du Protestantisme à VEglise´´ (Paris 1954) e ´´Parole, Eglise et Sacrements dans le Protestantisme et le Catholicisme´´ (traduzido com o título ´´Palavra, Igreja e Sacramentos no Protestantismo e no Catolicismo´´, São Paulo, Ed. Flamboyant 1962). Este último livro é especialmente significativo; daí o propósito de apresentarmos o seu conteúdo nas linhas que se seguem, focalizando precisamente os três pontos em que Protestantismo e Catolicismo mais parecem divergir entre si.
Bouyer frisa sempre que, para compreender o Protestantismo e aplainar o caminho de reunião, os católicos não o devem considerar apenas como um conjunto de heresias, mas, sim, como a afirmação de certos princípios autenticamente cristãos, que necessitavam de ser re/enfatizados no século XVI, mas que infelizmente foram desenvolvidos de maneira heterogênea por influência da filosofia nominalista (o Nominalismo é uma escola que, entre outras coisas, depreciava a razão ou a inteligência humana) dos séculos XV/XVI.
É na base desta observância que Bouyer elabora suas condições, que vamos acompanhar sucintamente.
1. A Palavra
No Protestantismo

A estima da Bíblia é o que de mais típico se encontra na espiritualidade e na teologia protestantes; foi precisamente lendo a epístola aos Romanos que Lutero descobriu a verdade mais fundamental da Revelação cristã: não somos nós os primeiros a amar a Deus, mas é Deus que nos ama primeira e gratuitamente, sem mérito da nossa parte (cf. Rm 5,6/10; 1Cor 4,10/19); não é o homem que toma a iniciativa de procurar a Deus, mas é Deus quem começa por procurar o homem (cf. Rm 9,16).
Em conseqüência, o culto protestante consiste em leituras bíblicas, entre as quais se inserem cantos e orações, e que têm no sermão subseqüente a sua atualização concreta. Após este encontro com a Palavra, o crente procura responder-lhe em seu coração e traduz sua resposta numa conduta de vida adequada.
Mais precisamente: o protestante clássico coloca-se diante da Palavra de Deus como o pecador necessitado de salvação, e ouve a mensagem de que só a graça o salva; isto o leva a uma atitude de confiança no dom de Deus; a Este, e não a si mesmo, o crente atribui a sua purificação interior; a Deus só, e não a si (homem), o protestante tributa a glória.
Além disto, o Protestantismo guardou a consciência já existente entre os judeus do Antigo Testamento de que a Palavra de Deus é criadora eficaz; é tão viva que realiza o que ela anuncia (cf. Gn 1,3s; Si 32,9; Is 48,13; Jo 1,3). Abraçando essa Palavra pela fé, o crente se julga renovado interiormente ou ´´uma nova criatura´´ (cf. 2Cor 5,17).
Examinemos agora a posição católica frente à Palavra.
No Catolicismo

As afirmações da teologia protestante atrás mencionadas nada têm que se oponham à tradição católica.
Com efeito. 0 culto cristão, desde as suas origens, sempre incluiu a leitura da Palavra de Deus acompanhada de cantos e orações; a Eucaristia antigamente era, não raro, celebrada na madrugada do domingo após uma noite de vigília em contato com a Bíblia. Nunca até hoje a Missa foi celebrada em circunstâncias normais sem a Liturgia da Palavra, a tal ponto que o Concílio do Vaticano II fala da mesa da Palavra e do Corpo do Senhor. ´Verdade é´ que o uso do latim, devido a circunstâncias contingentes, e hoje ultrapassadas, dificultou o entendimento da Bíblia durante séculos; mas hoje se acha removido, de modo a possibilitar a compreensão dos fiéis interpelados pela S. Escritura.
Na piedade pessoal antiga, a S. Escritura ocupava lugar primacial; S. Jerônimo (421) foi um dos grandes mestres que incutiram aos discípulos o recurso às Escrituras; é este doutor que afirma: ´´Ignorar as Escrituras é ignorar o Cristo´´. Para São João Crisóstomo (407), como para Lutero, o conhecimento íntimo das epístolas de São Paulo é a entrada obrigatória para a compreensão mais profunda do Cristianismo. Nos mosteiros, a lectio divina (leitura meditada das coisas de Deus) versava sobre a Bíblia, como alimento de oração e união com Deus.
É também clássica na Tradição cristã a afirmação de que a Palavra de Deus é viva, eficaz ou, em linguagem católica, um sacramental: santifica não apenas na medida da compreensão que dessa Palavra temos, mas também na proporção da fé e do amor com que a lemos.
Por conseguinte, as afirmações protestantes a respeito da Palavra de Deus procedem do coração de um vasto movimento de retorno às fontes que se iniciou no século XV e que no século XVI teve protagonistas entre os próprios católicos: Ambrósio Traversari (1439), John Colet (1519) e Tomás Moro (1535), o Cardeal Ximánez de Cisneros (1517)... 0 próprio Cardeal Caetano de Vio (1534), um dos mais firmes adversários de Lutero, considerava que o único meio eficaz para renovar a Igreja no século XVI seria a restauração bíblica, no seio da qual a Reforma protestante ia surgindo. Não é, portanto, o amor à Bíblia uma característica exclusiva do Luteranismo.
Acontece, porém, que a Bíblia, por motivos independentes dela mesma, veio a ser utilizada no século XVI como arsenal de heresias propaladas pelos Reformadores. Foi isto que tornou as Escrituras um livro suspeito aos olhos dos católicos. Diante dos variados arautos de ´´novos Cristianismos´´ pretensamente deduzidos da Bíblia traduzida para o vernáculo e diante da confusão assim instaurada, a Igreja julgou oportuno, naquela época, proibir aos fiéis o uso das Escrituras traduzidas para o vernáculo; esta atitude certamente marcou a piedade católica nos tempos subseqüentes. Hoje em dia, porém, verifica-se que as medidas drásticas tomadas no século XVI já não são necessárias nem convenientes.
Pergunta-se então: por que a volta à Bíblia, tão sadia e autêntica como era no século XVI, degenerou entre os Protestantes em fonte de heresias ou de doutrinas contrárias à própria Tradição cristã, a tal ponto que hoje algumas denominações oriundas do Protestantismo, conservando a Bíblia nas mãos, já não são cristãs (tenham-se em vista as Testemunhas de Jeová, os Mórmons...)?
Em resposta, dir-se-á que o Protestantismo, na sua estima à Palavra de Deus escrita, esqueceu que esta tem seu berço na Palavra de Deus oral; o Senhor no Antigo e no Novo Testamento falou e não escreveu; a Palavra escrita é a cristalização ocasional da Palavra de modo que, para entender autenticamente a Escritura, se requer a fiei ausculta da Palavra oral. Se arrancamos a Escritura da Tradição oral, que é o seu ambiente anterior e concomitante, temos uma Palavra que já não se explicita por si mesma; é letra que perde a sua vitalidade e fica sujeita a todo tipo de interpretação que os seus leitores lhe queiram dar. Ora a Tradição oral não é algo de vago e indefinido; ela continua viva na Igreja, que fala pelo seu magistério assistido pelo Senhor Jesus (cf. Mt 16,16/19; Lc 22,31s; Jo 14,26; 16,13s).
Em outros termos: para salvaguardar a autoridade da Bíblia, não é necessário negar a autoridade da Igreja; não há oposição, mas, sim, complementação entre uma e outra. Quem realiza essa separação, deixa de reconhecer aos poucos a autoridade da própria Escritura, pois cada intérprete faz a Bíblia dizer aquilo que ele subjetivamente concebe ou pensa; esse subjetivismo redunda em manipulação ou distorção da Palavra de Deus, donde resulta a fragmentação e o esfacelamento do Protestantismo; este se desmembra em correntes que se opõem umas às outras, baseando-se em textos arrancados do seu contexto. 0 individualismo dos intérpretes protestantes, desligados da Tradição oral viva na Igreja e no seu magistério, chegou a produzir (além das denominações não cristãs já citadas) as teorias liberais e racionalistas de Rudolf BuItmann e de escolas congêneres; estes vêem na Bíblia um aglomerado de mitos ou um discurso mítico do qual só se pode depreender um apelo à conversão ou a exortação a que passemos de uma vida não autêntica para uma vida autêntica; tem-se assim a morte da Palavra sagrada e do próprio Cristianismo que ela veio anunciar.
A experiência do Protestantismo é, pois, suficiente para nos dizer que nenhum texto bíblico, tomado a sós, fora do seu contexto oral originário, é capaz de se defender contra as interpretações subjetivas e arbitrárias que tendem progressivamente a minimizar a autoridade da Escritura, embora a proclamem soberana.
0 Catolicismo responde a esta problemática, afirmando que não há que acrescentar uma autoridade humana à autoridade divina das Escrituras, mas é necessário reconhecer que o próprio Deus, ao entregar-nos a sua Palavra, quis que ela fosse proclamada, lida e interpretada na caudal da Tradição oral, da qual é autêntica intérprete a Igreja, Corpo de Cristo, vivificado pelo Espírito Santo. A autoridade da Igreja está, portanto, incluída no desígnio divino de entregar a Palavra aos homens, de tal modo que esta permaneça incólume em meio às efusões do subjetivismo humano: o Senhor nunca pensou em deixar-nos sua Palavra abandonada ao mero bom senso ou fervor dos homens; Ele mesmo, vivo na Igreja, quis garantir a transmissão autêntica da sua Revelação.
Esta temática leva-nos a considerar diretamente a questão da Igreja no Protestantismo e no Catolicismo.
2. A Igreja
No Protestantismo

A grande dificuldade dos protestantes em relação à Igreja Católica é a autoridade doutrinária que ela reivindica. Julgam que tudo o que se conceda à autoridade da Igreja, é subtraído à autoridade da Palavra de Deus na Bíblia.
A autoridade da Igreja poderia também, segundo eles, ser considerada uma forma de opressão das consciências individuais.
Por que os protestantes da primeira geração assim pensavam?
Porque confundiam certas interpretações subjetivas e errôneas da Palavra de Deus com a própria Palavra de Deus. Em conseqüência, a Igreja, ciosa de conservar o autêntico sentido da Palavra, qual depositária responsável, só podia parecer/lhes um estorvo. Mais: a fobia da autoridade da Igreja facilmente se transformou em fobia de toda autoridade doutrinária no protestantismo liberal e racionalista dos séculos XIX/XX.
Cedo os próprios reformadores protestantes e seus sucessores perceberam que, rejeitando a autoridade da Igreja, estavam dando ocasião à anarquia doutrinal. Procuraram então um substitutivo para aquela, substitutivo que tomou cinco modalidades principais:
1. Lutero partiu da idéia de que, a religião sendo religião do Estado (como fora o Cristianismo desde o Imperador Romano Teodósio,(+395), o Estado deveria zelar pela incólume preservação das verdades da fé ou pela autoridade da Bíblia tal como Lutero a interpretava. 0 príncipe civil seria como que o ´´bispo supremo´´. Este princípio não podia deixar de ocasionar arbitrariedades ou o predomínio de interesses políticos sobre os religiosos.
2. Na Renânia foi estipulado que magistrados eleitos pelo povo luterano teriam a incumbência de defender a autoridade da Palavra de Deus. Verificou/se, porém, que a solução era precária, pois os magistrados de uma cidade ou região não diziam a mesma coisa que os de outra cidade.
3. Calvino procurou uma fórmula mais bíblica: verificou que São Paulo, ao evangelizar as cidades da Ásia Menor, constituía em cada qual um colégio de presbíteros ou anciãos, que ficavam responsáveis pela respectiva comunidade sob a jurisdição do Apóstolo (cf. At 14,23; ver também At 11,30; Tt 1,5). Calvino resolveu, pois, instituir presbíteros ou anciãos nas comunidades calvinistas, encarregados de tutelar a autoridade das Escrituras e a organização eclesial.
4. Na Inglaterra e na Nova Inglaterra, a autoridade foi confiada à própria congregação dos crentes: estes não poderiam desfazer/se dela em benefício de pessoa alguma. Assim teve origem o Congregacionalismo, segundo o qual os fiéis, de comum acordo, devem submeter/se à autoridade da S. Escritura e dela tirar as diretrizes concretas, dia por dia, para a vida da Igreja.
5. Algumas comunidades protestantes conservam o episcopado; tais foram as da Prússia e da Escandinávia (Luteranas) e as anglicanas (episcopaliarias). A autoridade de tais prelados nunca foi bem definida: ou seriam simples funcionários da Coroa, incumbidos principalmente de aplicar as decisões do ´´supremo bispo´´ (=o monarca) ou seriam moderadores de Concílios ou assembléias, representando o conjunto dos crentes ou grupos destes.
Na verdade, nenhuma destas soluções substitutivas do magistério da Igreja foi capaz de garantir a conservação intacta e fiel da Palavra de Deus; mas esta foi sendo, no decorrer dos quase cinco séculos de protestantismo, mais e mais estraçalhada mediante centenas e centenas de interpretações diferentes, que deram origem a centenas e centenas de ramos do protestantismo.
Pergunta-se: era necessário chegar a esse impasse do protestantismo? Como precisamente o Catolicismo considera a autoridade da Igreja diante da Palavra de Deus?
No Catolicismo

6. A Igreja Católica atribui a si uma autoridade doutrinária pelo fato de ser a Igreja instituída por Cristo sobre o fundamento dos Apóstolos.
Que significa isto exatamente?
Jesus Cristo se apresentou como o enviado do Pai e, por sua vez, enviou os Apóstolos a continuar a sua missão:
´´Como o Pai me enviou, também eu vos envio´´ (Jo 20,21).
´´Como Tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo´´ (Jo 17,18).
´´Quem vos recebe, a mim recebe, e quem me recebe, recebe aquele que me enviou´´ (Mt 10,40; cf. Lc 9,48; Mc 9,37).
´´Quem vos ouve, a mim ouve; quem vos despreza, a mim despreza; e quem me despreza, despreza aquele que me enviou´´ (Lc 10,16).
´´Quem crê em mim, não é em mim que ele crê, mas naquele que me enviou´´ (Jo 12,44; cf. Jo 13,20).
Donde se vê que a Boa/Nova cristã procede do Pai; passa por Cristo e é confiada aos Apóstolos para que a difundam no mundo inteiro. Mais: Jesus prometeu aos Apóstolos sua assistência infalível até o fim dos séculos; onde haja a continuidade da sucessão apostólica, existe a certeza da presença atuante de Cristo na sua Igreja; disse o Senhor aos Apóstolos:
´´Toda autoridade no céu e na terra me foi entregue. Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei. Eis que estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos´´ (Mt 28,18/20).
Depreende-se, pois, que a autoridade dos Apóstolos e, conseqüentemente, a da Igreja é a autoridade do próprio Cristo, que se serve de instrumentos e os adapta à sua obra, recorrendo a critérios objetivos: a apostolicidade ou a sucessão apostólica através dos séculos. Vê/se também que a autoridade da Igreja assim instituída não se restringe ao campo doutrinal, mas se estende à vida e à configuração espiritual dos cristãos; a Palavra de Deus proferida pelos Apóstolos e seus sucessores não tem valor apenas acadêmico, mas é eficiente e restauradora. Diz o Senhor Jesus:
´´Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, serão perdoados; a quem os retiverdes, serão retidos´´ (Jo 20,22s).
´´Tudo o que ligardes na terra, será ligado no céu; tudo o que desligardes na terra, será desligado no céu´´ (Mt 18,18).
Os Apóstolos recebem, pois, o Espírito do Pai, que é também de Cristo, e, assim habilitados, têm o poder de recriar o homem.
7. A esta altura, porém, coloca-se uma objeção, formulada pelo famoso exegeta protestante Oscar Cullmann: dado que os Apóstolos e, em especial, Pedro tinham o poder de ligar e desligar de maneira autêntica, é de crer que essa autoridade era intransferível; não passou para os sucessores dos Apóstolos. Sim; os Apóstolos eram, após Cristo, os fundadores da Igreja; ora tal função não se podia repetir. Após os Apóstolos, toca à Igreja tão somente permanecer na doutrina dos Apóstolos, fixada por eles nos livros do Novo Testamento; por isto a Igreja pós-apostólica não precisa de uma autoridade que continue a dos Apóstolos e a de São Pedro em particular; bastam/lhe os livros sagrados que os Apóstolos lhe entregaram.
Que responder a isto?
A Igreja não afirma que os bispos e os Papas sejam outros Apóstolos no sentido de fundadores da Igreja, independentes da primeira geração. Os bispos e o Papa são apenas guardiães e transmissores, credenciados por Cristo, do depósito sagrado que receberam dos Apóstolos. A fé da Igreja é simplesmente a fé dos Apóstolos; a Palavra que os seus bispos anunciam, há de ser aquela que os Apóstolos ensinaram por primeiro. Não se criam novos dogmas mas explicita/se o que está contido no depósito sagrado ou no tesouro ´´do qual se tiram coisas novas e velhas´´ (Mt 13,52). A autoridade dos bispos, assim entendida, pode manter viva a Palavra que os Apóstolos trouxeram à Igreja primitiva, com uma vida tão pujante quanto a tinha naquele tempo.
Ademais, no tocante a Pedro em particular, pode-se observar o seguinte: se Cristo o constituiu fundamento visível da sua Igreja (cf. Mt 16,16/19) e se a Igreja deve perdurar indefinidamente apesar das invectivas adversárias, é lógico que o fundamento Pedro há de perdurar em seus sucessores; em caso contrário, o edifício, sem fundamento, cairia por terra.
Aliás, notamos: através de toda a história da Igreja jamais em documento algum aparece a idéia de que a autoridade, após os Apóstolos, passou a residir unicamente nos Livros Sagrados. Todos os dizeres dos doutores e escritores antigos e medievais professam que a verdade do Evangelho continua presente na Igreja por uma tradição viva, que passou do Pai a Cristo, de Cristo aos Apóstolos, dos Apóstolos aos seus primeiros sucessores, e depois de bispo para bispo, iluminando os escritos sagrados que procederam dessa tradição oral.
A inegável continuidade histórica da Igreja Católica com a Igreja primitiva é a base desta afirmação. Se alguém precisa de provar sua origem divino/apostólica, não é a Igreja Católica. ´´É, pelo contrário, a tese tardia e despojada de precedentes, segundo a qual, com a morte do derradeiro Apóstolo, a verdade da Palavra de Deus, na Igreja, teria deixado de ser confiada a um grupo de responsáveis, revestidos da autoridade do seu Mestre; teria também deixado de ser a verdade de um livro´´ (L. Bouyer, livro citado, pp. 14s). A Igreja afirma que a verdade da Palavra de Deus está sujeita a ser deteriorada e alterada se é apenas a verdade de um Livro, entregue tão somente ao fervor ou ao acume dos seus leitores, sem que haja mandatários dotados do carisma da verdade para transmitir e interpretar autenticamente essa Palavra.
É nestes termos que, a partir da própria S. Escritura, tão cara aos protestantes, se pode demonstrar a necessidade e a existência real da Igreja com seu magistério assistido por Cristo. Os reformadores, se fossem conseqüentes consigo mesmos, não teriam abandonado a Igreja fundada por Cristo para garantir a incolumidade da Palavra; dizendo ´´não´´ à Igreja, expuseram as Escrituras à perda de sua vitalidade e ao arbítrio dos homens.
3. Os Sacramentos

No Catolicismo os sacramentos são os sete ritos pelos quais a graça do Pai, feita presente em Cristo e na Igreja, é aplicada a cada indivíduo desde o nascer até a morte. Ser cristão não é apenas ser discípulo do Mestre Jesus Cristo, mas é ser ramo do tronco de videira (cf. Jo 15,1/5) e membro do Corpo de Cristo (cf. 1Cor 12,12/27) / o que significa: comungar com a vida mesma do Tronco ou da Cabeça... com a vida de Cristo e, mediante Cristo, com a vida do Pai.
No protestantismo

1. Ora os protestantes rejeitam a maneira como os católicos entendem os sacramentos. Aliás, guardaram apenas o do Batismo e o da Eucaristia; o matrimônio no protestantismo é um contrato que o ministro ou pastor abençoa sem lhe atribuir o valor de sacramento.
Mesmo em relação ao Batismo e à Santa Ceia os protestantes têm conceitos um tanto vagos: apontam a ordem explícita do Salvador (cf. Mt 28,18/20; Jo 3,3; Mt 26,26/29...), mas explicam de diversas maneiras o significado desse rito.
0 Batismo, por exemplo, em algumas denominações, só é ministrado a jovens e adultos que ´´se tenham convertido´´; é um testemunho da fé e da mudança de vida já existentes naquele que recebe o Batismo; é, portanto, mais um gesto do homem para Deus e a comunidade do que um gesto de Deus em favor do homem. Os luteranos e as denominações mais antigas conservaram um conceito mais tradicional ou mais próximo do Catolicismo com relação a este sacramento.
A Santa Ceia, em caso nenhum, para os protestantes, é a perpetuação do sacrifício do Calvário. Lutero ainda admitiu a empanação ou a presença de Cristo dentro do pão consagrado; Calvino condicionou essa real presença à fé do comungante. Zwínglio, porém, rejeitou/a por completo. A Santa Ceia geralmente no protestantismo é a memória ou a recordação simbólica da última refeição de Cristo, mediante a qual os crentes em sua fé e seu amor se unem a Cristo.
2. Pergunta-se: por que assumem os protestantes posição tão distante da católica?
Podem-se apontar dois motivos:
a) a piedade do fim da Idade Média se apegara demais às coisas ou aos sinais concretos: relíquias, medalhas e outros sacramentais eram objeto de estima por vezes excessiva, ao passo que o sentido da Eucaristia era menos compreendido e vivido pela piedade popular; as práticas religiosas assumiam caráter mecânico, desligadas que eram de uma perspectiva teológica mais profunda;
b) o conceito de opus operatum escandalizava os reformadores. Na teologia católica, opus operatum é toda ação sagrada eficaz pela realização do próprio rito, independentemente dos méritos daquele que a efetua. Assim são os sete sacramentos: algo de objetivo através deles se processa, desde que os sinais sagrados (água, pão, vinho, óleo e palavras) sejam aplicados aos fiéis por um ministro devidamente instituído, mesmo que este não tenha as qualidades morais desejáveis; explica a teologia que em tais casos é Cristo quem opera os efeitos de santificação mediante o ministro, que é mero instrumento. É sempre Cristo quem batiza, quem consagra o pão e o vinho no seu corpo e no seu sangue, quem absolve os pecados... Por isto é que num hospital, quando uma criança está para morrer sem Batismo, qualquer pessoa (mesmo um ateu) pode batizá-la, desde que tenha a intenção de fazer o que Cristo e a Igreja fazem no caso, e aplique água natural com as palavras: ´´Eu te batizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo´´. Assim, os sete sacramentos não são obra nossa, mas obra de Deus nas mãos dos homens; são os mais belos dons da misericórdia divina.
Do opus operatum distingue-se o opus operantis, que é uma ação sagrada cuja eficácia é condicionada ao fervor da Igreja ou, mais precisamente, do fiel que a executa: assim a leitura da Bíblia é um sacramental, cuja eficácia dependerá não só da compreensão do leitor, mas também, e principalmente, da fé e do amor com que lê.
Ora os reformadores não entenderam o conceito de opus operatum; identificaram-no, antes com ato mágico, pelo qual o homem tenta obrigar Deus a agir como a criatura deseja; seria um ´´truque´´ para dominar a Onipotência Divina. É claro que esta interpretação equivale a um mal-entendido, que faz dos sacramentos precisamente o contrário daquilo que eles são: pura graça soberana de Deus, que se dá aos homens sem que o homem possa dizer que o mereceu.
Vejamos agora a resposta que o Catolicismo dá a esta posição protestante.
No Catolicismo

3. 0 Catolicismo julga que os reformadores protestantes afirmaram duas grandes verdades que, se tivessem sido autenticamente desenvolvidas, teriam levado os protestantes ao reconhecimento dos sacramentos depurados das deformações e contrafacções que a piedade popular dos séculos XV/XVI lhes impusera. Com efeito, os reformadores enfatizaram:
a) o valor comunitário do culto católico. Apesar do individualismo que os afetava, proclamaram a índole pública da piedade e dos ritos litúrgicos, que se obscurecera no fim da Idade Média. A Santa Ceia seria celebração da assembléia, cujos membros participariam todos do símbolo sagrado;
b) o conceito de verbum Dei visibile (palavra visível de Deus), conceito formulado por S. Agostinho e muito valorizado por Lutero e Calvino. Como entender tal conceito?
Para os reformadores, a Palavra de Deus não é simples vocábulo, mas acontecimento (´´diabhar´´, em hebraico) ou intervenção de Deus em nossa vida, que ela transforma pela sua eficácia criadora. Ora a noção de Palavra visível de Deus vem a coincidir com a de sacramento no sentido católico; este é palavra associada à matéria (água, pão, vinho, óleo...),... matéria que torna visível o conteúdo da Palavra e, ao mesmo tempo, realiza o que a Palavra significa. 0 pão de trigo sobre o qual Cristo, por meio do seu legítimo ministro, diga: ´´Isto é o meu corpo´´, torna visível tal palavra, pois vem a ser o Corpo de Cristo. Da mesma forma o vinho de uva sobre o qual se diga: ´´Isto é o meu sangue´´, torna visível tal palavra, pois vem a ser o sangue de Cristo. Nos sacramentos a Palavra de Deus toca o homem por meio de sinais concretos para enxertar/lhe a vida de Cristo, que é a vida do País.
Infelizmente os reformadores não chegaram a esta conclusão, embora estivesse na lógica das suas premissas. Ao contrário, entenderam verbum Dei visíbile no sentido meramente intelectual, como se fosse uma palavra de menor valor, destinada aos iletrados, que só podem compreender mediante imagens ou através do sistema audio/visual. Conseqüentemente os templos protestantes foram mais e mais assumindo o aspecto de salas de aula, em que se ministram ensinamentos mediante palavras e gestos, mas em que falta o complemento lógico da Palavra que é o sacramento (=sinal eficaz de graça).
Desta forma a Palavra de Deus, tão legítima e oportunamente exaltada pelos reformadores, foi/se paradoxalmente depauperando contra toda lógica.
Chamar a atenção para estas verdades é abrir o melhor caminho para que o protestantismo possa recuperar a clássica doutrina relativa aos sacramentos.
4. Positivamente, a Igreja Católica ensina: nos sacramentos fala-nos e atua em nós a Palavra anunciada por aqueles que Cristo enviou, como se fosse Ele em pessoa que a anunciasse. Não são os nossos méritos nem a nossa fé que podem efetuar tão grandes coisas, como a comunhão com Cristo pelo Batismo, a Eucaristia, a Penitência..., mas é unicamente Deus, que falou uma vez por todas em Cristo,... em Cristo que continua a falar nos seus Apóstolos e na Igreja Apostólica que os prolonga. Ainda os sacramentos recebem toda a sua eficácia da Palavra de Deus, Palavra que os instituiu durante a vida terrestre de Cristo, Palavra que Cristo transmitiu aos seus Apóstolos e, depois destes, aos que lhes sucedem, de tal maneira que, onde quer que eles falem em nome de Cristo, repetindo o que Cristo disse, é sempre o Senhor Jesus quem fala e, falando, realiza o que Ele diz.
Vê-se, pois, que as palavras do Batismo, da consagração da Eucaristia, da absolvição dos pecados nada têm de mágico ou de ´´truque´´, mas são eficazes unicamente porque Jesus Cristo, mediante os Apóstolos e seus sucessores, continua presente e atuante na sua Igreja. Esta presença é perpetuada naqueles que Jesus escolheu como seus ministros, para falar em Seu Nome, através dos séculos, comprometendo/se a dar à sua Palavra nos lábios deles a mesma força que ela tinha nos lábios de Cristo. Pois, naqueles que Ele enviou, é Ele que está presente, fala e age, para manter sempre atuante o mistério da sua Cruz e Ressurreição, o mistério da sua Igreja e dos sacramentos,... mistério que é a derradeira Palavra que a Palavra de Deus tinha a nos dar.
4. Conclusão

O percurso traçado nas linhas anteriores pode ser assim compendiado:
Os reformadores (Lutero, Calvino... ) no século XVI partiram de uma intuição genial: restaurar a estima e o culto da Palavra de Deus, com todos os predicados de santificação que ela possui. Procederam muito bem, pois as Escrituras Sagradas vinham sendo empalidecidas por mentalidade fantasiosa e por escolas filosóficas decadentes no fim da Idade Média.
Se tivessem tirado as conclusões contidas neste seu princípio básico, só teriam reforçado e abrilhantado a única Igreja fundada por Cristo, pois afirmavam algo de genuinamente cristão e eclesial. Infelizmente, porém, arrancaram a Palavra de Deus escrita do seu berço anterior e do seu ambiente concomitante, que é a Palavra de Deus proferida oralmente, único critério adequado para se interpretar a Palavra escrita ou a Bíblia. Em conseqüência, esta perdeu sua vida, sua eloqüência própria e ficou sujeita às interpretações dos homens, animados, sem dúvida, de fé e fervor, mas marcados pela falibilidade e o subjetivismo; daí o paradoxal depauperamento da Palavra de Deus, que por último tem sido julgada (em vez de julgar) por intuições imaginosas do protestantismo moderno (mórmons, pentecostais, adventistas...) ou pelos princípios racionalistas do protestantismo liberal.
Ao invés desta caminhada, pode-se propor outra trilha: quem lê objetivamente as Escrituras, verifica que elas remetem constantemente o fiel à Palavra oral que a antecedeu e que a explica (2Ts 2,15; 3,6; lTs 3,4; 4,16; lCor 11,23/25...). Essa Palavra ou Tradição oral não perece, mas continua viva através dos séculos na Igreja, que não é mera sociedade humana, e sim o Corpo de Cristo prolongado; a este o Senhor concede sua assistência infalível desde que se guarde a sucessão apostólica (cf. Mt 28,18/20).
A autoridade da Igreja, portanto, credenciada pelas Escrituras não derroga à autoridade da Bíblia, mas serve a esta. Mais: é autoridade não apenas para ensinar, pois a Palavra de Deus não ensina apenas (como numa escola), mas é autoridade também para transformar o homem, comunicando-lhe a vida de Deus, pois a finalidade da obra de Cristo não é simplesmente ensinar, e sim levar à comunhão com o Pai, o Filho e o Espírito Santo (cf. lJo 1,1/3). Por isto, o Senhor dizia aos Apóstolos: ´´Fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo´´ (Mt 28,19). Nem a palavra da pregação vale sem o rito sacramental, nem o sacramento sem a pregação...
Em conseqüência, a Igreja, na qual Cristo vive e atua, tem a missão de oferecer aos homens não só a Palavra audível, mas também a Palavra visível de Deus ou a Palavra cujo significado é corroborado por sinais sagrados, de modo a transmitir através destes a vida de Deus; tais são os sacramentos. Sem estes, estaria incompleta a obra de Cristo e da Igreja; seria truncada a eficácia da Palavra de Deus.
Quem aceita a Igreja como Corpo Místico de Cristo dotada de autoridade doutrinal e eficácia santificadora garantidas por Cristo, aceitará conseqüentemente tudo o que daí decorre ou tudo o que a Igreja ensina como verdades de fé deduzidas da Palavra de Deus: o purgatório, a veneração dos santos e das suas imagens, o Papado, as indulgências, a Confissão auricular, etc. Cada um destes temas se prende à Palavra de Deus escrita, lida e explicitada pela Tradição oral.
Assim se vê que o protestantismo parte de afirmações positivas, às quais ele não deve renunciar; importa/lhe, porém, renunciar a princípios filosóficos que os séculos XV e seguintes lhe comunicaram, deturpando sua intuição inicial. Oxalá isto possa acontecer nesta época, em que o diálogo ecumênico vem sendo carinhosamente cultivado! Para tanto, toca grande responsabilidade aos fiéis católicos: requer/se que se despojem não só de toda imperfeição moral, mas também de toda mescla de doutrinas e atitudes heterogêneas, que empalideçam o brilho do Cristianismo tal como nos foi entregue através dos séculos pela Palavra de Deus escrita e oral.
Notas:

1. 0 Anglicanismo ou Episcopalianismo apresenta dois ramos: a ´´High Church´´ (Alta Igreja), próxima do Catolicismo, e a ´´Low Church´´ (Baixa Igreja), mais sujeita às influências dos Reformadores do século XVI... Os anglícanos descontentes com a índole ´´católica´´ da Igreja oficial, emigraram para os Estados Unidos, onde têm sido vítimas de subjetivismo crescente, que vai esfacelando o bloco protestante: multiplicam/se os fundadores de ´´igrejas´´ na base de intuições pessoais; essas diversas ´´igrejas´´ têm sua ascensão e seu declínío, dando lugar a um reavivamento (´revival´), que por sua vez declina e, conseqüentemente, ocasiona outro reavivamento...
2. As objeções dos protestantes contra as imagens e os Santos, o purgatório, a S. Escritura, o Santo Sacrifício da Missa, o Papado... decorrem da posição assumida por eles no tocante à Palavra, à Igreja e aos sacramentos. Feito o acordo sobre estes três pontos, os demais deixarão de causar dificuldades.
´´A Igreja sempre venerou as divinas Escrituras, da mesma forma como o próprio Corpo do Senhor, já que, principalmente na Sagrada Liturgia, sem cessar toma da mesa tanto da Palavra de Deus quanto do Corpo de Cristo o pão da vida, e o distribui aos fiéis´´ (Constituição Dei Verbum no 21). Ver Presbyterorum Ordinís no 18, Perfectae Caritatis nº 6.
3. Podemos lembrar que, durante as disputas políticas que se seguiram ao brado reformador de Lutero, ficou estabelecido que cada território alemão teria oficialmente a religião do seu governante: ´´Cuius regio, eius refigio´´.
4. Quando se diz que a Igreja é ´´una, santa, católica e apostólica´´, não se entende diretamente a índole missionária da Igreja, mas o fato de que ela está fundada sobre Cristo e, necessariamente mediante os Apóstolos, chega até nós... Em conseqüência, percebe/se que a Igreja fundada por Cristo não pode ser recomeçada, por mais evidente que seja a fragilidade dos seus membros. Quem rompe com a Igreja de Cristo e funda ´´sua Igreja´´ (luterana, calvinista, wesleyana... adventista, batista...) perde a garantia da presença indefectível do Senhor prometida aos Apóstolos e seus sucessores até o fim dos tempos (cf. Mt 28,18/20). Institui uma sociedade que só tem o valor e a eficácia dos homens que a compõem e que, portanto, está sujeita a ser substituída por outra sociedade humana, devida a outro ´fundador´, sempre em condições muito precárias. São tantas e tantas as ´´igrejas´´ protestantes, umas derivadas das outras!
Dom Estevão Bettencourt
Fonte: Editora Cléofas

VIDA DE LOUVOR e A experiência do Louvor

O louvor deve tomar conta de todo o nosso ser.
1. "Judá" significa "Louvor" Gn 29.35
Jacó transmite a Judá a maior benção e este terá autoridade real e legal,além de trazer o Messias ao mundo.
2. O louvor cura os "tempos secos" . Nm 21.16,17
Em tempos de pressão, ansiedade ou depressão, junte-se ao povo de Deus em louvor.
3. Poder da unidade do louvor. 2 Cr 5.13
Há poder no louvor, na gratidão e na música.
4. O Louvor gera vitória. 2 Cr 20.15-22
Quando estavam diante dos inimigos, os levitas respondiam à Palavra com um louvor exuberante; a vitória vinha em seguida.
5. O louvor interrompe o avanço da iniqüidade. Sl 7.14-17
O louvor voluntário, sincero, poderoso e audível terá a presença de Jesus, afastando o desejo de identificar-se com atos, pensamentos ou ações pecaminosas,
6. O Louvor leva-nos a olhar para Deus. Sl 18.3
O louvor dirigido a ele, que é digno, reflete Deus.
7. Louvor, o caminho para a presença de Deus. Sl 22.3,4
O louvor quanto parte de um coração puro, traz a presença de Deus.
8. Cante louvores com entendimento. Sl 47.7
Quando cantamos louvores com entendimento (inteligência, sabedoria), estamos testemunhando o amor de Deus por nós e o nosso amor a Deus.
9. O Louvor libera bênçãos e satisfação. Sl 63.1-5
O tipo de expressão de louvor que libera bênçãos está cheio de paixão e anseio por Deus.
10. Louvor Criativo. Sl 71.14
Deus deseja que sejamos criativos em nosso louvor e que evitemos o louvor descuidado.
11. Ensine seus filhos a louvar. Sl 145.4
Devemos louvar continuamente a Deus e educar os filhos neste objetivo.
12. Um forte apelo para louvar. Sl 150.1-6
Somos convidados a louvar a Deus pela sua majestade e atos poderosos em toda a sua criação.
13. O louvor abre as portas das prisões. At 16.25,26
O louvor dirigido a Deus abriu as portas da prisão e libertou um homem.
14. Animando uns aos outros no louvor. Ef 5.18,19
O culto é engrandecido quando nos reunimos aos outros, encorajando-nos mutuamente.
15. O sacrifício do louvor. Hb 13.10-15
O louvor confronta e exige que matemos os nossos orgulho e preguiça.
16. Caminha com Deus em adoração. 1 Pe 2.9
Como povo escolhido e eleitos de Deus, nós proclamamos o seu louvor e propagamos a sua benção por toda a terra.
Charles green
Veni Sancte Spiritus!
Prezados Irmãos
Desejo partilhar algo sobre o experiência do Louvor! Que Deus nos abençoe!
"Ainda que nossos louvores não Vos sejam necessários, Vós nos concedeis o dom de Vos louvor. Eles nada acrescentam ao que sois, mas nos aproximam de Vós, por Jesus Cristo Vosso Filho e Senhor Nosso" (Prefácio Comum IV).
O louvor nos aproxima de Deus. O louvor traz Deus a nós. Na apostila de nº1 da Escola Paulo Apóstolo lemos a definição de Unção como sendo o "senso da presença de Deus". Quando a presença de Deus se faz manifesta a nossa percepção de algum modo nós denominamos esta experiência "unção", dentro da dinâmica da oração carismática. Não se trata, contudo, da unção sacramental, mas da unção como "carisma", que se nos apresenta pelos sentidos. Sentimos a presença de Deus, sentimos a Unção!
No Prefácio, vemos estampada uma verdade que a RCC palpou e ainda palpa (pelo menos em muitos grupos de oração): O Louvor traz a presença de Deus para o meio da assembléia de oração, ou seja, o Louvor traz Unção!
Louvar é reconhecer a Grandeza, a Soberania, a Bondade, a Justiça, a Força, a Fidelidade, a Misericórdia, a Honra, a Dignidade, a Magestade e a Santidade de nosso Deus. As canções netamente bíblicas são cheias do verdadeiro louvor. Uma canção poeticamente bem feita é sempre bem-vinda, mas nunca se comparará a uma canção netamente bíblica, dado que a Sagrada Escritura, juntamente com a Tradição, constituem os pilares de sustentação do Depósito de Fé da Igreja Católica.
Celebramos, a pouco, o sínodo sobre a Palavra de Deus. É interessante a relação, mas percebam: Quem não conhece a palavra de Deus geralmente não sabe orar, não sabe louvar. Não conhece as promessas de Deus, contidas nos textos bíblicos, nem mesmo Seus atributos, vindos da história de Deus com seu povo... Como vão se relacionar com quem não conhecem? A Bíblia é caminho privilegiado para conhecer o Senhor.
Constato com tristeza que "temos roubado a glória de Deus" em muitos de nossos Grupos. As "palavras de sabedoria", os "discernimentos", "profetadas", "visagens", "canções poéticas", "pregações retoricamente bem feitas" têm roubado o espaço do louvor e da adoração. Existem certos servos e coordenadores que precisam aparacer em todos os Grupos, precisam dar sempre o "ar da graça". Com um tom místico, roubam o espaço do louvor.
Devolvamos o Trono da Glória ao Senhor!
O Verdadeiro Louvor traz a presença de Deus para o lugar onde nos reunimos. O Verdadeiro Louvor Cura, Liberta, Batiza no Espírito Santo, Converte! Se, ao invés de querermos ditar ao Espírito Santo o que Ele deve fazer (agora é momento de cura, agora é momento de libertação, agora é momento de perdão, agora é momento de imposição de mãos, e assim por diante), nós trouxéssemos Unção às nossas reuniões mediante o Louvor... Veríamos a realidade de um Deus que dá aos que ama enquanto eles ainda dormem, um Deus que perscruta o mais íntimo de nós e sabe o que precisamos antes de abrirmos nossos lábios para dizê-lo. Se trouxermos Unção, ou seja, se trouxermos Deus para dentro do lugar da Reunião, veremos a corrente da graça do Batismo no Espírito Santo renovando vidas!
Nosso povo não sabe mais louvar e adorar. É apático na oração. Não conhece a Bíblia. Isso, na verdade, é fruto de péssimos dirigentes de oração e péssimos ministros de música, que não cantam músicas de com conteúdo bíblico e que não sabem dirigir uma oração citando os textos bíblicos e ajudando o povo a tomar posse das promessas de Deus expressas nos mesmos. O Músico quer cativar o povo com sua simpatia, suas brincadeiras, suas dinamicazinhas. .. O povo, as vezes, é exposto ao ridículo (puxa o cabelo do seu irmão, aperta o narizinho do seu irmão, empurra o seu irmão, olha nos olhinhos do seu irmão, e por aí vai). Nosso povo não sabe orar, não sabe louvar porque não lhes é ensinado pelos dirigentes e ministros. Não conhecem os textos bíblicos porque não se ministra mais a oração mediante as promessas contidas na Palavra de Deus!
É trágico ver ministros que não sabem orar. A oração em língüas, graça que se dá em meio a nós quando o Espírito Santo se manifesta poderosamente, foi banalizada. Terminam a canção, não sabem orar e disparam em "grunhidos" (porque isso não é glossolalia de jeito nenhum!)
Considero, portanto, vital para a RCC que se retorne a pensar no Louvor. Hoje se fala de fazer casas para Formar Missionários. Isso é desejo de Deus! Creio que precisamos criar algo para formar Ministros de Louvor e Adoração também. Nossa expressão "Grupo de Oração, Eu participo" precisa gerar uma série de cuidados para com nossos Grupos de Oração: Acolhida, Louvor, Adoração, Pregação, Batismo no Espírito Santo, Carismas, Vivência Comunitária e por aí vai. São elementos de um Grupo de Oração que precisam ser cuidados com esmero. Só assim o Grupo de Oração vai se tornar um "trampolim missionário"!
O ser humano foi criado para viver e respirar numa atmosfera de adoração e louvor ao seu Criador. O influxo permanente do poder divino deveria ser mantido pela expressão permanente dum alegre e humilde louvor ao seu Criador. O Vínculo da benção através da obediência foi quebrado pelo pecado e silenciou a comunhão cheia de louvor existente entre o ser humano e Deus, introduzindo o egocentrismo, a auto compaixão e a insatisfação (Gn 3.9-12). Porém agora há salvação e vida em Cristo e, depois de receber a Jesus como Salvador, a vida diária nos convida à oração e a Palavra nos direciona à comunhão e à sabedoria no viver. Porém o nosso apresentar-se diário diante de Deus deve ser com louvor: "Entrai pelas portas dele, com louvor e em seus átrios, com hinos." Sl 100.4
Fernando Nascimento
Ministério Jovem RCC Brasil

EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL SACRAMENTUM CARITATIS

XORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL SACRAMENTUM CARITATIS DE SUA SANTIDADE BENTO XVI AO EPISCOPADO, AO CLERO, ÀS PESSOAS CONSAGRADAS E AOS FIÉIS LEIGOS SOBRE A EUCARISTIA FONTE E ÁPICE DA VIDA E DA MISSÃO DA IGREJA
Introdução [1]
O alimento da verdade [2]
O desenvolvimento do rito eucarístico [3]
O Sínodo dos Bispos e o Ano da Eucaristia [4]
Finalidade do documento [5]

I PARTE - EUCARISTIA, MISTÉRIO ACREDITADO
A fé eucarística da Igreja [6]
Santíssima Trindade e Eucaristia
O pão descido do céu [7]
Dom gratuito da Santíssima Trindade [8]

Eucaristia: Jesus verdadeiro Cordeiro imolado
A nova e eterna aliança no sangue do Cordeiro [9]
A instituição da Eucaristia [10]
A figura deu lugar à Verdade [11]

O Espírito Santo e a Eucaristia
Jesus e o Espírito Santo [12]
Espírito Santo e celebração eucarística [13]

Eucaristia e Igreja
Eucaristia, princípio causal da Igreja [14]
Eucaristia e comunhão eclesial [15]

Eucaristia e Sacramentos
Sacramentalidade da Igreja [16]
I. Eucaristia e iniciação cristã
Eucaristia, plenitude da iniciação cristã [17]
A ordem dos sacramentos da iniciação [18]
Iniciação, comunidade eclesial e família [19]

II. Eucaristia e sacramento da Reconciliação
Sua ligação intrínseca [20]
Alguns cuidados pastorais [21]

III. Eucaristia e Unção dos Enfermos [22]
IV. Eucaristia e sacramento da Ordem
Na pessoa de Cristo cabeça [23]
Eucaristia e celibato sacerdotal [24]
Escassez de clero e pastoral vocacional [25]
Gratidão e esperança [26]

V. Eucaristia e Matrimônio
Eucaristia, sacramento esponsal [27]
Eucaristia e unidade do matrimônio [28]
Eucaristia e indissolubilidade do matrimônio [29]

Eucaristia e escatologia
Eucaristia, dom para o homem a caminho [30]
O banquete escatológico [31]
Oração pelos defuntos [32]

A Eucaristia e a Virgem Maria [33]
II PARTE - EUCARISTIA, MISTÉRIO CELEBRADO
Norma da oração e norma de fé [34]
Beleza e liturgia [35]

A celebração eucarística, obra de Cristo inteiro
Cristo inteiro: cabeça e corpo [36]
Eucaristia e Cristo ressuscitado [37]

Arte da celebração [38]
O bispo, liturgista por excelência [39]
O respeito pelos livros litúrgicos e pela riqueza dos sinais [40]
Arte ao serviço da celebração [41]
O canto litúrgico [42]

A estrutura da celebração eucarística [43]
Unidade intrínseca da ação litúrgica [44]
A liturgia da palavra [45]
A homilia [46]
Apresentação das oferendas [47]
A Oração Eucarística [48]
Saudação da paz [49]
Distribuição e recepção da Eucaristia [50]
A despedida: « Ite, missa est » [51]

Participação ativa
Autêntica participação [52]
Participação e ministério sacerdotal [53]
Celebração eucarística e inculturação [54]
Condições pessoais para uma participação ativa [55]
Participação dos cristãos não católicos [56]
Participação através dos meios de comunicação [57]
Participação ativa dos doentes [58]
A solicitude pelos presos [59]
Os migrantes e a participação na Eucaristia [60]
As grandes concelebrações [61]
A língua latina [62]
Celebrações eucarísticas em pequenos grupos [63]

Celebração interiormente participada
Catequese mistagógica [64]
A reverência à Eucaristia [65]

Adoração e piedade eucarística
A relação intrínseca entre celebração e adoração [66]
A prática da adoração eucarística [67]
Formas de devoção eucarística [68]
O lugar do sacrário na igreja [69]

III PARTE - EUCARISTIA, MISTÉRIO VIVIDO
Forma eucarística da vida cristã
O culto espiritual [70]
Eficácia omnicompreensiva do culto eucarístico [71]
Viver segundo o domingo [72]
Viver o preceito dominical [73]
O sentido do repouso e do trabalho [74]
Assembléias dominicais na ausência de sacerdote [75]
Uma forma eucarística da existência cristã, a pertença eclesial [76]
Espiritualidade e cultura eucarística [77]
Eucaristia e evangelização das culturas [78]
Eucaristia e fiéis leigos [79]
Eucaristia e espiritualidade sacerdotal [80]
Eucaristia e vida consagrada [81]
Eucaristia e transformação moral [82]
Coerência eucarística [83]

Eucaristia, mistério anunciado
Eucaristia e missão [84]
Eucaristia e testemunho [85]
Jesus Cristo, único Salvador [86]
Liberdade de culto [87]

Eucaristia, mistério oferecido ao mundo
Eucaristia, pão repartido para a vida do mundo [88]
As implicações sociais do mistério eucarístico [89]
O alimento da verdade e a indigência do homem [90]
A doutrina social da Igreja [91]
Santificação do mundo e defesa da criação [92]
Utilidade dum Compêndio Eucarístico [93]

Conclusão [94-97]
INTRODUÇÃO
1. Sacramento da Caridade, [1] a santíssima Eucaristia é a doação que Jesus Cristo faz de Si mesmo, revelando-nos o amor infinito de Deus por cada homem. Neste sacramento admirável, manifesta-se o amor « maior »: o amor que leva a « dar a vida pelos amigos » (Jo 15, 13). De fato, Jesus « amou-os até ao fim » (Jo 13, 1). Com estas palavras, o evangelista introduz o gesto de infinita humildade que Ele realizou: na vigília da sua morte por nós na cruz, pôs uma toalha à cintura e lavou os pés aos seus discípulos. Do mesmo modo, no sacramento eucarístico, Jesus continua a amar-nos « até ao fim », até ao dom do seu corpo e do seu sangue. Que enlevo se deve ter apoderado do coração dos discípulos à vista dos gestos e palavras do Senhor durante aquela Ceia! Que maravilha deve suscitar, também no nosso coração, o mistério eucarístico!
O alimento da verdade
2. No sacramento do altar, o Senhor vem ao encontro do homem, criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 27), fazendo-Se seu companheiro de viagem. Com efeito, neste sacramento, Jesus torna-Se alimento para o homem, faminto de verdade e de liberdade. Uma vez que só a verdade nos pode tornar verdadeiramente livres (Jo 8, 36), Cristo faz-Se alimento de Verdade para nós. Com agudo conhecimento da realidade humana, Santo Agostinho pôs em evidência como o homem se move espontaneamente, e não constrangido, quando encontra algo que o atrai e nele suscita desejo. Perguntando-se ele, uma vez, sobre o que poderia em última análise mover o homem no seu íntimo, o santo bispo exclama: « Que pode a alma desejar mais ardentemente do que a verdade? » [2] De fato, todo o homem traz dentro de si o desejo insuprimível da verdade última e definitiva. Por isso, o Senhor Jesus, « caminho, verdade e vida » (Jo 14, 6), dirige-Se ao coração anelante do homem que se sente peregrino e sedento, ao coração que suspira pela fonte da vida, ao coração mendigo da Verdade. Com efeito, Jesus Cristo é a Verdade feita Pessoa, que atrai a Si o mundo. « Jesus é a estrela polar da liberdade humana: esta, sem Ele, perde a sua orientação, porque, sem o conhecimento da verdade, a liberdade desvirtua-se, isola-se e reduz-se a estéril arbítrio. Com Ele, a liberdade volta a encontrar-se a si mesma ».[3] No sacramento da Eucaristia, Jesus mostra-nos de modo particular a verdade do amor, que é a própria essência de Deus. Esta é a verdade evangélica que interessa a todo o homem e ao homem todo. Por isso a Igreja, que encontra na Eucaristia o seu centro vital, esforça-se constantemente por anunciar a todos, em tempo propício e fora dele (opportune, importune: cf. 2 Tm 4, 2), que Deus é amor.[4] Exatamente porque Cristo Se fez alimento de Verdade para nós, a Igreja dirige-se ao homem convidando-o a acolher livremente o dom de Deus.
O desenvolvimento do rito eucarístico
3. Contemplando a história bimilenária da Igreja de Deus, sapientemente guiada pela ação do Espírito Santo, admiramos cheios de gratidão o desenvolvimento ordenado no tempo das formas rituais em que fazemos memória do acontecimento da nossa salvação. Desde as múltiplas formas dos primeiros séculos, que resplandecem ainda nos ritos das Antigas Igrejas do Oriente, até à difusão do rito romano; desde as indicações claras do Concílio de Trento e do Missal de São Pio V até à renovação litúrgica querida pelo Concílio Vaticano II: em cada etapa da história da Igreja, a celebração eucarística, enquanto fonte e ápice da sua vida e missão, resplandece no rito litúrgico em toda a sua multiforme riqueza. A XI Assembléia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que decorreu de 2 a 23 de Outubro de 2005 no Vaticano, elevou um profundo agradecimento a Deus por esta história, reconhecendo nela a guia ativa do Espírito Santo. De modo particular, os padres sinodais reconheceram e reafirmaram o benéfico influxo que teve, na vida da Igreja, a reforma litúrgica atuada a partir do Concílio Ecumênico Vaticano II.[5] O Sínodo dos Bispos pôde avaliar o acolhimento que a mesma teve depois da assembléia conciliar; inúmeros foram os elogios; como lá se disse, as dificuldades e alguns abusos assinalados não podem ofuscar a excelência e a validade da referida renovação litúrgica, que contém riquezas ainda não plenamente exploradas. Trata-se, em concreto, de ler as mudanças queridas pelo Concílio dentro da unidade que caracteriza o desenvolvimento histórico do próprio rito, sem introduzir artificiosas rupturas.[6]
O Sínodo dos Bispos e o Ano da Eucaristia
4. Além disso, é necessário sublinhar a relação do recente Sínodo dos Bispos sobre a Eucaristia com o que sucedeu durante os últimos anos na vida da Igreja. Antes de mais, devemos pensar no Grande Jubileu do ano 2000, com o qual meu amado predecessor, o servo de Deus João Paulo II, introduziu a Igreja no terceiro milênio cristão; o Ano Jubilar teve, sem dúvida, uma caracterização intensamente eucarística. Depois, não se pode esquecer que o Sínodo dos Bispos foi precedido e, em certo sentido, preparado também pelo Ano da Eucaristia, estabelecido com grande clarividência por João Paulo II para toda a Igreja; teve início com o Congresso Eucarístico Internacional em Guadalajara no mês de Outubro de 2004 e terminou a 23 de Outubro de 2005, no final da XI assembléia Sinodal, com a canonização de cinco beatos que se distinguiram, de forma particular, pela sua piedade eucarística: o bispo José Bilczewski, os sacerdotes Caetano Catanoso, Sigismundo Gorazdowski e Alberto Hurtado Cruchaga, e o religioso capuchinho Félix de Nicósia. Graças aos ensinamentos propostos por João Paulo II na Carta Apostólica Mane nobiscum Domine [7] e às preciosas sugestões da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos,[8] numerosas foram as iniciativas que as dioceses e as diversas realidades eclesiais empreenderam para despertar e aumentar nos crentes a fé eucarística, para melhorar o cuidado das celebrações e promover a adoração eucarística, para encorajar uma real solidariedade que, partindo da Eucaristia, atingisse os necessitados. Por último, é preciso mencionar a importância da última Encíclica do meu venerado predecessor, a Ecclesia de Eucharistia,[9] deixando-nos através dela uma segura referência do Magistério quanto à doutrina eucarística e um derradeiro testemunho do lugar central que este sacramento divino ocupava na sua vida.
Finalidade do documento
5. Esta Exortação Apostólica pós-sinodal tem por objetivo recolher a multiforme riqueza de reflexões e propostas surgidas na recente assembléia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos - a começar dos Lineamenta até às Propositiones, passando pelo Instrumentum laboris, as Relationes ante et post disceptationem, as intervenções dos padres sinodais, auditores e delegados fraternos -, com a intenção de explicitar algumas linhas fundamentais de empenho tendentes a despertar na Igreja novo impulso e fervor eucarístico. Consciente do vasto patrimônio doutrinal e disciplinar acumulado no decurso dos séculos à volta da Eucaristia,[10] neste documento desejo sobretudo recomendar, acolhendo o voto dos padres sinodais,[11] que o povo cristão aprofunde a relação entre o mistério eucarístico, a ação litúrgica e o novo culto espiritual que deriva da Eucaristia enquanto sacramento da caridade. Com esta perspectiva, pretendo colocar esta Exortação na linha da minha primeira Carta Encíclica - a Deus caritas est -, na qual várias vezes falei do sacramento da Eucaristia pondo em evidência a sua relação com o amor cristão, tanto para com Deus como para com o próximo: « O Deus encarnado atrai-nos todos a Si. Assim se compreende por que motivo o termo agape se tenha tornado também um nome da Eucaristia; nesta, a agape de Deus vem corporalmente a nós, para continuar a sua ação em nós e através de nós ».[12]
I PARTE - EUCARISTIA, MISTÉRIO ACREDITADO
« A obra de Deus consiste em acreditar n'Aquele que Ele enviou »(Jo 6, 29)
A fé eucarística da Igreja
6. « Mistério da fé! »: com esta exclamação pronunciada logo a seguir às palavras da consagração, o sacerdote proclama o mistério celebrado e manifesta o seu enlevo diante da conversão substancial do pão e do vinho no corpo e no sangue do Senhor Jesus, realidade esta que ultrapassa toda a compreensão humana. Com efeito, a Eucaristia é por excelência « mistério da fé »: « É o resumo e a súmula da nossa fé ».[13] A fé da Igreja é essencialmente fé eucarística e alimenta-se, de modo particular, à mesa da Eucaristia. A fé e os sacramentos são dois aspectos complementares da vida eclesial. Suscitada pelo anúncio da palavra de Deus, a fé é alimentada e cresce no encontro com a graça do Senhor ressuscitado que se realiza nos sacramentos: « A fé exprime-se no rito e este revigora e fortifica a fé ».[14] Por isso, o sacramento do altar está sempre no centro da vida eclesial; « graças à Eucaristia, a Igreja renasce sempre de novo! » [15] Quanto mais viva for a fé eucarística no povo de Deus, tanto mais profunda será a sua participação na vida eclesial por meio duma adesão convicta à missão que Cristo confiou aos seus discípulos. Testemunha-o a própria história da Igreja: toda a grande reforma está, de algum modo, ligada à redescoberta da fé na presença eucarística do Senhor no meio do seu povo.
Santíssima Trindade e Eucaristia
O pão descido do céu
7. O primeiro conteúdo da fé eucarística é o próprio mistério de Deus, amor trinitário. No diálogo de Jesus com Nicodemos, encontramos uma afirmação esclarecedora a tal respeito: « Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigênito, para que todo o homem que acredita n'Ele não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele » (Jo 3, 16-17). Estas palavras revelam a raiz última do dom de Deus. Na Eucaristia, Jesus não dá « alguma coisa », mas dá-Se a Si mesmo; entrega o seu corpo e derrama o seu sangue. Deste modo dá a totalidade da sua própria vida, manifestando a fonte originária deste amor: Ele é o Filho eterno que o Pai entregou por nós. Noutro passo do evangelho, depois de Jesus ter saciado a multidão pela multiplicação dos pães e dos peixes, ouvimo-Lo dizer aos interlocutores que vieram atrás d'Ele até à sinagoga de Cafarnaum: « Meu Pai é que vos dá o verdadeiro pão que vem do céu. O pão de Deus é o que desce do céu para dar a vida ao mundo » (Jo 6, 32-33), acabando por identificar-Se Ele mesmo - a sua própria carne e o seu próprio sangue - com aquele pão: « Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que Eu hei de dar é a minha carne que Eu darei pela vida do mundo » (Jo 6, 51). Assim Jesus manifesta-Se como o pão da vida que o Pai eterno dá aos homens.
Dom gratuito da Santíssima Trindade
8. Na Eucaristia, revela-se o desígnio de amor que guia toda a história da salvação (Ef 1, 9-10; 3, 8-11). Nela, o Deus-Trindade (Deus Trinitas), que em Si mesmo é amor (1 Jo 4, 7-8), envolve-Se plenamente com a nossa condição humana. No pão e no vinho, sob cujas aparências Cristo Se nos dá na ceia pascal (Lc 22, 14-20; 1 Cor 11, 23-26), é toda a vida divina que nos alcança e se comunica a nós na forma do sacramento: Deus é comunhão perfeita de amor entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Já na criação, o homem fora chamado a partilhar, em certa medida, o sopro vital de Deus (Gn 2, 7). Mas, é em Cristo morto e ressuscitado e na efusão do Espírito Santo, dado sem medida (Jo 3, 34), que nos tornamos participantes da intimidade divina.[16] Assim Jesus Cristo, que « pelo Espírito eterno Se ofereceu a Deus como vítima sem mancha » (Heb 9, 14), no dom eucarístico comunica-nos a própria vida divina. Trata-se de um dom absolutamente gratuito, devido apenas às promessas de Deus cumpridas para além de toda e qualquer medida. A Igreja acolhe, celebra e adora este dom, com fiel obediência. O « mistério da fé » é mistério de amor trinitário, no qual, por graça, somos chamados a participar. Por isso, também nós devemos exclamar com Santo Agostinho: « Se vês a caridade, vês a Trindade ».[17]
Eucaristia: Jesus verdadeiro Cordeiro imolado
A nova e eterna aliança no sangue do Cordeiro
9. A missão, que trouxe Jesus entre nós, atinge o seu cumprimento no mistério pascal. Do alto da cruz, donde atrai todos a Si (Jo 12, 32), antes de « entregar o Espírito » Jesus diz: « Tudo está consumado » (Jo 19, 30). No mistério da sua obediência até à morte, e morte de cruz (Fil 2, 8), cumpriu-se a nova e eterna aliança. Na sua carne crucificada, a liberdade de Deus e a liberdade do homem juntaram-se definitivamente num pacto indissolúvel, válido para sempre. Também o pecado do homem ficou expiado, uma vez por todas, pelo Filho de Deus (Heb 7, 27; 1 Jo 2, 2; 4, 10). Como já tive ocasião de afirmar, « na sua morte de cruz, cumpre-se aquele virar-se de Deus contra Si próprio, com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvá-lo - o amor na sua forma mais radical ».[18] No mistério pascal, realizou-se verdadeiramente a nossa libertação do mal e da morte. Na instituição da Eucaristia, o próprio Jesus falara da « nova e eterna aliança », estipulada no seu sangue derramado (Mt 26, 28; Mc 14, 24; Lc 22, 20). Esta finalidade última da sua missão era bem evidente já no início da sua vida pública; de fato, nas margens do Jordão, quando João Baptista vê Jesus vir ter com ele, exclama: « Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo » (Jo 1, 29). É significativo que a mesma expressão apareça, sempre que celebramos a Santa Missa, no convite do sacerdote para nos abeirarmos do altar: « Felizes os convidados para a ceia do Senhor. Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo ». Jesus é o verdadeiro cordeiro pascal, que Se ofereceu espontaneamente a Si mesmo em sacrifício por nós, realizando assim a nova e eterna aliança. A Eucaristia contém nela esta novidade radical, que nos é oferecida em cada celebração.[19]
A instituição da Eucaristia
10. Deste modo, a nossa reflexão foi deter-se na instituição da Eucaristia durante a Última Ceia. O fato teve lugar no âmbito duma ceia ritual, que constituía o memorial do acontecimento fundador do povo de Israel: a libertação da escravidão do Egito. Esta ceia ritual, associada com a imolação dos cordeiros (Ex 12, 1-28. 43-51), era memória do passado, mas ao mesmo tempo também memória profética, ou seja, anúncio duma libertação futura; de fato, o povo experimentara que aquela libertação não tinha sido definitiva, pois a sua história ainda estava demasiadamente marcada pela escravidão e pelo pecado. O memorial da antiga libertação abria-se, assim, à súplica e ao anseio por uma salvação mais profunda, radical, universal e definitiva. É neste contexto que Jesus introduz a novidade do seu dom; na oração de louvor - a Berakah -, Ele dá graças ao Pai não só pelos grandes acontecimentos da história passada, mas também pela sua própria « exaltação ». Ao instituir o sacramento da Eucaristia, Jesus antecipa e implica o sacrifício da cruz e a vitória da ressurreição; ao mesmo tempo, revela-Se como o verdadeiro cordeiro imolado, previsto no desígnio do Pai desde a fundação do mundo, como se lê na I Carta de Pedro (1, 18-20). Ao colocar o dom de Si mesmo neste contexto, Jesus manifesta o sentido salvífico da sua morte e ressurreição, mistério este que se torna uma realidade renovadora da história e do mundo inteiro. Com efeito, a instituição da Eucaristia mostra como aquela morte, de per si violenta e absurda, se tenha tornado, em Jesus, ato supremo de amor e libertação definitiva da humanidade do mal.
A figura deu lugar à Verdade
11. Como vimos, Jesus insere a sua novidade (novum) radical no âmbito da antiga ceia sacrificial hebraica. Uma tal ceia, nós, cristãos, já não temos necessidade de a repetir. Como justamente dizem os Padres, figura transit in veritatem: aquilo que anunciava as realidades futuras cedeu agora o lugar à própria Verdade. O antigo rito consumou-se e ficou definitivamente superado mediante o dom de amor do Filho de Deus encarnado. O alimento da verdade, Cristo imolado por nós, pôs termo às figuras (dat figuris terminum).[20] Com a sua ordem « Fazei isto em memória de Mim » (Lc 22, 19; 1 Cor 11, 25), pede-nos para corresponder ao seu dom e representá-Lo sacramentalmente; com tais palavras, o Senhor manifesta, por assim dizer, a esperança de que a Igreja, nascida do seu sacrifício, acolha este dom desenvolvendo, sob a guia do Espírito Santo, a forma litúrgica do sacramento. De fato, o memorial do seu dom perfeito não consiste na simples repetição da Última Ceia, mas propriamente na Eucaristia, ou seja, na novidade radical do culto cristão. Assim Jesus deixou-nos a missão de entrar na sua « hora »: « A Eucaristia arrasta-nos no ato oblativo de Jesus. Não é só de modo estático que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos envolvidos na dinâmica da sua doação ».[21] Ele « arrasta-nos para dentro de Si ».[22] A conversão substancial do pão e do vinho no seu corpo e no seu sangue insere dentro da criação o princípio duma mudança radical, como uma espécie de « fissão nuclear » (para utilizar uma imagem hoje bem conhecida de todos nós), verificada no mais íntimo do ser; uma mudança destinada a suscitar um processo de transformação da realidade, cujo termo último é a transfiguração do mundo inteiro, até chegar àquela condição em que Deus seja tudo em todos (1 Cor 15, 28).
O Espírito Santo e a Eucaristia
Jesus e o Espírito Santo
12. Com a sua palavra e com o pão e o vinho, o próprio Senhor nos ofereceu os elementos essenciais do culto novo. A Igreja, sua Esposa, é chamada a celebrar o banquete eucarístico dia após dia em memória d'Ele. Deste modo, ela insere o sacrifício redentor do seu Esposo na história dos homens e torna-o sacramentalmente presente em todas as culturas. Este grande mistério é celebrado nas formas litúrgicas que a Igreja, guiada pelo Espírito Santo, desenvolve no tempo e no espaço.[23] A propósito, é necessário despertar em nós a consciência da função decisiva que exerce o Espírito Santo no desenvolvimento da forma litúrgica e no aprofundamento dos mistérios divinos. O Paráclito, primeiro dom concedido aos crentes,[24] ativo já na criação (Gn 1, 2), está presente em plenitude na vida inteira do Verbo encarnado: com efeito, Jesus Cristo é concebido no seio da Virgem Maria por obra do Espírito Santo (Mt 1, 18; Lc 1, 35); no início da sua missão pública, nas margens do Jordão, vê-O descer sobre Si em forma de pomba (Mt 3, 16 e par.); neste mesmo Espírito, age, fala e exulta (Lc 10, 21); e é n'Ele que Jesus pode oferecer-Se a Si mesmo (Heb 9, 14). No chamado « discurso de despedida » referido por João, Jesus põe claramente em relação o dom da sua vida no mistério pascal com o dom do Espírito aos Seus (Jo 16, 7). Depois de ressuscitado, trazendo na sua carne os sinais da paixão, pode derramar o Espírito (Jo 20, 22), tornando os seus discípulos participantes da mesma missão d'Ele (Jo 20, 21). Em seguida, será o Espírito que ensina aos discípulos todas as coisas, recordando-lhes tudo o que Cristo tinha dito (Jo 14, 26), porque compete a Ele, enquanto Espírito da verdade (Jo 15, 26), introduzir os discípulos na verdade total (Jo 16, 13). Segundo narram os Atos, o Espírito desce sobre os Apóstolos reunidos em oração com Maria no dia de Pentecostes (2, 1-4), e impele-os para a missão de anunciar a boa nova a todos os povos. Portanto, é em virtude da ação do Espírito que o próprio Cristo continua presente e ativo na sua Igreja, a partir do seu centro vital que é a Eucaristia.
Espírito Santo e celebração eucarística
13. Neste horizonte, compreende-se a função decisiva que tem o Espírito Santo na celebração eucarística e, de modo particular, no que se refere à transubstanciação. É fácil de comprovar a consciência disto mesmo nos Padres da Igreja; nas suas Catequeses, São Cirilo de Jerusalém recorda que « invocamos Deus misericordioso para que envie o seu Santo Espírito sobre as oblações que apresentamos a fim de Ele transformar o pão em corpo de Cristo e o vinho em sangue de Cristo. O que o Espírito Santo toca, é santificado e transformado totalmente ».[25] Também São João Crisóstomo assinala que o sacerdote invoca o Espírito Santo quando celebra o Sacrifício: [26] à semelhança de Elias, o ministro atrai o Espírito Santo para que, « descendo a graça sobre a vítima, se incendeiem por meio dela as almas de todos ».[27] É extremamente necessária, para a vida espiritual dos fiéis, uma consciência mais clara da riqueza da anáfora: esta, juntamente com as palavras pronunciadas por Cristo na Última Ceia, contém a epiclese, que é invocação ao Pai para que faça descer o dom do Espírito a fim de o pão e o vinho se tornarem o corpo e o sangue de Jesus Cristo, e para que « a comunidade inteira se torne cada vez mais corpo de Cristo ».[28] O Espírito, invocado pelo celebrante sobre os dons do pão e do vinho colocados sobre o altar, é o mesmo que reúne os fiéis « num só corpo », tornando-os uma oferta espiritual agradável ao Pai.[29]
Eucaristia e Igreja
Eucaristia, princípio causal da Igreja
14. Através do sacramento eucarístico, Jesus compromete os fiéis na sua própria « hora »; mostra-nos assim a ligação que quis entre Ele mesmo e nós, entre a sua pessoa e a Igreja. De fato, o próprio Cristo, no sacrifício da cruz, gerou a Igreja como sua esposa e seu corpo. Os Padres da Igreja meditaram longamente sobre a semelhança que há entre a origem de Eva do lado de Adão adormecido (Gn 2, 21-23) e a da nova Eva, a Igreja, do lado aberto de Cristo mergulhado no sono da morte: do seu lado trespassado - narra João - saiu sangue e água (Jo 19, 34), símbolo dos sacramentos.[30] Um olhar contemplativo para « Aquele que trespassaram » (Jo 19, 37) leva-nos a considerar a ligação causal entre o sacrifício de Cristo, a Eucaristia e a Igreja. Com efeito, esta « vive da Eucaristia ».[31] Uma vez que nela se torna presente o sacrifício redentor de Cristo, temos de reconhecer antes de mais que « existe um influxo causal da Eucaristia nas próprias origens da Igreja ».[32] A Eucaristia é Cristo que Se dá a nós, edificando-nos continuamente como seu corpo. Portanto, na sugestiva circularidade entre a Eucaristia que edifica a Igreja e a própria Igreja que faz a Eucaristia,[33] a causalidade primária está expressa na primeira fórmula: a Igreja pode celebrar e adorar o mistério de Cristo presente na Eucaristia, precisamente porque o próprio Cristo Se deu primeiro a ela no sacrifício da Cruz. A possibilidade que a Igreja tem de « fazer » a Eucaristia está radicada totalmente na doação que Jesus lhe fez de Si mesmo. Também este aspecto nos persuade de quão verdadeira seja a frase de São João: « Ele amou-nos primeiro » (1 Jo 4, 19). Deste modo, também nós confessamos, em cada celebração, o primado do dom de Cristo; o influxo causal da Eucaristia, que está na origem da Igreja, revela em última análise a precedência não só cronológica mas também ontológica do amor de Jesus relativamente ao nosso: será, por toda a eternidade, Aquele que nos ama primeiro.
Eucaristia e comunhão eclesial
15. A Eucaristia é, pois, constitutiva do ser e do agir da Igreja. Por isso, a antiguidade cristã designava com as mesmas palavras - corpus Christi - o corpo nascido da Virgem Maria, o corpo eucarístico e o corpo eclesial de Cristo.[34] Bem atestado na tradição, este dado faz crescer em nós a consciência da indissolubilidade entre Cristo e a Igreja. Oferecendo-Se a Si mesmo em sacrifício por nós, o Senhor Jesus preanunciou de modo eficaz no seu dom o mistério da Igreja. É significativo o modo como a Oração Eucarística II, ao invocar o Paráclito, formula a prece pela unidade da Igreja: « ... participando no corpo e sangue de Cristo, sejamos reunidos, pelo Espírito Santo, num só corpo ». Esta passagem ajuda a compreender como a eficácia (res) do sacramento eucarístico seja a unidade dos fiéis na comunhão eclesial. Assim, a Eucaristia aparece na raiz da Igreja como mistério de comunhão.[35]
O servo de Deus João Paulo II, na sua Encíclica Ecclesia de Eucharistia, tinha já chamado a atenção para a relação entre Eucaristia e communio: falou do memorial de Cristo como sendo a « suprema manifestação sacramental da comunhão na Igreja ».[36] A unidade da comunhão eclesial revela-se, concretamente, nas comunidades cristãs e renova-se no ato eucarístico que as une e diferencia em Igrejas particulares, « in quibus et ex quibus una et unica Ecclesia catholica exsistit - nas quais e pelas quais existe a Igreja Católica, una e única ».[37] É precisamente a realidade da única Eucaristia celebrada em cada diocese ao redor do respectivo Bispo que nos faz compreender como as próprias Igrejas particulares subsistam in e ex Ecclesia. De fato, « a unicidade e indivisibilidade do corpo eucarístico do Senhor implicam a unicidade do seu corpo místico, que é a Igreja una e indivisível. Do centro eucarístico surge a necessária abertura de cada comunidade celebrante, de cada Igreja particular: ao deixar-se atrair pelos braços abertos do Senhor, consegue-se a inserção no seu corpo, único e indiviso ».(38) Por este motivo, na celebração da Eucaristia, cada fiel encontra-se na sua Igreja, isto é, na Igreja de Cristo. Nesta perspectiva eucarística, adequadamente entendida, a comunhão eclesial revela-se realidade católica por sua natureza.(39) O fato de sublinhar esta raiz eucarística da comunhão eclesial pode contribuir eficazmente também para o diálogo ecumênico com as Igrejas e com as Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Sé de Pedro. Na realidade, a Eucaristia estabelece objetivamente um forte vínculo de unidade entre a Igreja Católica e as Igrejas Ortodoxas, que conservaram genuína e integralmente a natureza do mistério da Eucaristia. Ao mesmo tempo, a relevância dada ao caráter eclesial da Eucaristia pode tornar-se elemento privilegiado também no diálogo com as Comunidades nascidas da Reforma.(40)
Eucaristia e Sacramentos
Sacramentalidade da Igreja
16. O Concílio Vaticano II lembrou que « os restantes sacramentos, assim como todos os ministérios eclesiásticos e obras de apostolado, estão vinculados com a sagrada Eucaristia e a ela se ordenam. Com efeito, na santíssima Eucaristia está contido todo o tesouro espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, a nossa Páscoa e o pão vivo que dá aos homens a vida mediante a sua carne vivificada e vivificadora pelo Espírito Santo: assim são eles convidados e levados a oferecer, juntamente com Ele, a si mesmos, os seus trabalhos e todas as coisas criadas ».(41) Esta relação íntima da Eucaristia com os demais sacramentos e com a existência cristã compreende-se, na sua raiz, quando se contempla o mistério da própria Igreja como sacramento.(42) A este respeito, o referido Concílio afirmou que « a Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano ».(43) Ela, enquanto « povo - como diz São Cipriano - reunido na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo »,(44) é sacramento da comunhão trinitária.
O fato de a Igreja ser « universal sacramento da salvação »(45) mostra que a « economia » sacramental determina, em última análise, o modo como Jesus Cristo único Salvador, por meio do Espírito, alcança a nossa vida na especificidade das suas circunstâncias. A Igreja recebe-se e simultaneamente exprime-se nos sete sacramentos, pelos quais a graça de Deus influencia concretamente a existência dos fiéis para que toda a sua vida, redimida por Cristo, se torne culto agradável a Deus. Nesta perspectiva, desejo sublinhar aqui alguns elementos, assinalados pelos padres sinodais, que podem ajudar a identificar a relação dos diversos sacramentos com o mistério eucarístico.
I. Eucaristia e iniciação cristã
Eucaristia, plenitude da iniciação cristã
17. Se verdadeiramente a Eucaristia é fonte e ápice da vida e da missão da Igreja, temos de concluir antes de mais que o caminho de iniciação cristã tem como ponto de referência tornar possível o acesso a tal sacramento. A propósito, devemos interrogar-nos - como sugeriram os padres sinodais - se as nossas comunidades cristãs têm suficiente noção do vínculo estreito que há entre Batismo, Confirmação e Eucaristia; (46) de fato, é preciso não esquecer jamais que somos batizados e crismados em ordem à Eucaristia. Este dado implica o compromisso de favorecer na ação pastoral uma compreensão mais unitária do percurso de iniciação cristã. O sacramento do batismo, pelo qual somos configurados a Cristo,(47) incorporados na Igreja e feitos filhos de Deus, constitui a porta de acesso a todos os sacramentos; através dele, somos inseridos no único corpo de Cristo (1 Cor 12, 13), povo sacerdotal. Mas é a participação no sacrifício eucarístico que aperfeiçoa, em nós, o que recebemos no batismo. Também os dons do Espírito são concedidos para a edificação do corpo de Cristo (1 Cor 12) e o crescimento do testemunho evangélico no mundo.(48) Portanto, a santíssima Eucaristia leva à plenitude a iniciação cristã e coloca-se como centro e termo de toda a vida sacramental.(49)
A ordem dos sacramentos da iniciação
18. A este respeito, é necessário prestar atenção ao tema da ordem dos sacramentos da iniciação. Na Igreja, há tradições diferentes; esta diversidade é patente nos costumes eclesiais do Oriente (50) e na prática ocidental para a iniciação dos adultos,(51) se comparada com a das crianças.(52) Contudo, tais diferenças não são propriamente de ordem dogmática, mas de caráter pastoral. Em concreto, é necessário verificar qual seja a prática que melhor pode, efetivamente, ajudar os fiéis a colocarem no centro o sacramento da Eucaristia, como realidade para qual tende toda a iniciação; em estreita colaboração com os Dicastérios competentes da Cúria Romana, as Conferências Episcopais verifiquem a eficácia dos percursos de iniciação atuais, para que o cristão seja ajudado, pela ação educativa das nossas comunidades, a maturar cada vez mais até chegar a assumir na sua vida uma orientação autenticamente eucarística, de tal modo que seja capaz de dar razão da própria esperança de maneira adequada ao nosso tempo (1 Pd 3, 15).
Iniciação, comunidade eclesial e família
19. É preciso ter sempre presente que toda a iniciação cristã é caminho de conversão que há de ser realizada com a ajuda de Deus e em constante referimento à comunidade eclesial, quer quando é o adulto que pede para entrar na Igreja, como acontece nos lugares de primeira evangelização e em muitas zonas secularizadas, quer quando são os pais a pedir os sacramentos para seus filhos. A este respeito, desejo chamar a atenção sobretudo para a relação entre iniciação cristã e família; na ação pastoral, sempre se deve associar a família cristã ao itinerário de iniciação. Receber o batismo, a Confirmação e abeirar-se pela primeira vez da Eucaristia são momentos decisivos não só para a pessoa que os recebe mas também para toda a sua família; esta deve ser sustentada, na sua tarefa educativa, pela comunidade eclesial em suas diversas componentes.(53) Quero sublinhar aqui a relevância da Primeira Comunhão; para inúmeros fiéis, este dia permanece, justamente, gravado na memória como o primeiro momento em que se percebeu, embora de forma ainda inicial, a importância do encontro pessoal com Jesus. A pastoral paroquial deve valorizar adequadamente esta ocasião tão significativa.
II. Eucaristia e sacramento da Reconciliação
Sua ligação intrínseca
20. Os padres sinodais afirmaram, justamente, que o amor à Eucaristia leva a apreciar cada vez mais também o sacramento da Reconciliação.(54) Por causa da ligação entre ambos os sacramentos, uma catequese autêntica acerca do sentido da Eucaristia não pode ser separada da proposta dum caminho penitencial (1 Cor 11, 27-29). Constatamos - é certo - que, no nosso tempo, os fiéis se encontram imersos numa cultura que tende a cancelar o sentido do pecado,(55) favorecendo um estado de espírito superficial que leva a esquecer a necessidade de estar na graça de Deus para se aproximar dignamente da comunhão sacramental.(56) Na realidade, a perda da consciência do pecado engloba sempre também uma certa superficialidade na compreensão do próprio amor de Deus. É muito útil para os fiéis recordar-lhes os elementos que, no rito da Santa Missa, explicitam a consciência do próprio pecado e, simultaneamente, da misericórdia de Deus.(57) Além disso, a relação entre a Eucaristia e a Reconciliação recorda-nos que o pecado nunca é uma realidade exclusivamente individual, mas inclui sempre também uma ferida no seio da comunhão eclesial, na qual nos encontramos inseridos pelo batismo. Por isso, como diziam os Padres da Igreja, a Reconciliação é um batismo laborioso (laboriosus quidam baptismus),(58) sublinhando assim que o resultado do caminho de conversão é também o restabelecimento da plena comunhão eclesial, que se exprime no abeirar-se novamente da Eucaristia.(59)
Alguns cuidados pastorais
21. O Sínodo lembrou que é dever pastoral do bispo promover na sua diocese uma decisiva recuperação da pedagogia da conversão que nasce da Eucaristia e favorecer entre os fiéis a confissão freqüente. Todos os sacerdotes se dediquem com generosidade, empenho e competência à administração do sacramento da Reconciliação.(60) A propósito, procure-se que, nas nossas igrejas, os confessionários sejam bem visíveis e expressivos do significado deste sacramento. Peço aos pastores que vigiem atentamente sobre a celebração do sacramento da Reconciliação, limitando a prática da absolvição geral exclusivamente aos casos previstos,(61) permanecendo como forma ordinária de absolvição apenas a pessoal.(62) Vista a necessidade de descobrir novamente o perdão sacramental, haja em todas as dioceses o Penitenciário.(63) Por último, pode servir de válida ajuda para a nova tomada de consciência desta relação entre a Eucaristia e a Reconciliação uma prática equilibrada e conscienciosa da indulgência, lucrada a favor de si mesmo ou dos defuntos. Com ela, obtém-se « a remissão, perante Deus, da pena temporal devida aos pecados, cuja culpa já foi apagada ».(64) O uso das indulgências ajuda-nos a compreender que não somos capazes, só com as nossas forças, de reparar o mal cometido e que os pecados de cada um causam dano a toda a comunidade; além disso, a prática da indulgência, implicando a doutrina dos méritos infinitos de Cristo bem como a da comunhão dos santos, mostra-nos « quanto estejamos, em Cristo, intimamente unidos uns aos outros e quanto a vida sobrenatural de cada um possa aproveitar aos outros ».(65) Dado que a forma própria da indulgência prevê, entre as condições requeridas, o abeirar-se da confissão e da comunhão sacramental, a sua prática pode sustentar eficazmente os fiéis no caminho da conversão e na descoberta da centralidade da Eucaristia na vida cristã.
III. Eucaristia e Unção dos Enfermos
22. Jesus não Se limitou a enviar os seus discípulos a curar os doentes (Mt 10, 8; Lc 9, 2; 10, 9), mas instituiu para eles também um sacramento específico: a Unção dos Enfermos.(66) A Carta de Tiago testemunha a presença deste gesto sacramental já na primitiva comunidade cristã (5, 14-16). Se a Eucaristia mostra como os sofrimentos e a morte de Cristo foram transformados em amor, a Unção dos Enfermos, por seu lado, associa o doente à oferta que Cristo fez de Si mesmo pela salvação de todos, de tal modo que possa também ele, no mistério da comunhão dos santos, participar na redenção do mundo. A relação entre ambos os sacramentos aparece ainda mais clara quando se agrava a doença: « Àqueles que vão deixar esta vida, a Igreja oferece-lhes, além da Unção dos Enfermos, a Eucaristia como viático ».(67) Nesta passagem para o Pai, a comunhão no corpo e sangue de Cristo aparece como semente de vida eterna e força de ressurreição: « Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna; e Eu o ressuscitarei no último dia » (Jo 6, 54). Uma vez que o sagrado Viático desvenda ao doente a plenitude do mistério pascal, é preciso assegurar a sua administração.(68) A atenção e o cuidado pastoral por aqueles que se encontram doentes redunda, seguramente, em benefício espiritual de toda a comunidade, sabendo que tudo o que fizermos ao mais pequenino, ao próprio Jesus o faremos (Mt 25, 40).
IV. Eucaristia e sacramento da Ordem
Na pessoa de Cristo cabeça
23. O vínculo intrínseco entre a Eucaristia e o sacramento da Ordem deduz-se das próprias palavras de Jesus no Cenáculo: « Fazei isto em memória de Mim » (Lc 22, 19). De fato, na vigília da sua morte, Ele instituiu a Eucaristia e ao mesmo tempo fundou o sacerdócio da Nova Aliança. Jesus é sacerdote, vítima e altar: mediador entre Deus Pai e o povo (Heb 5, 5-10), vítima de expiação (1 Jo 2, 2; 4, 10) que Se oferece a Si mesma no altar da cruz. Ninguém pode dizer « isto é o meu corpo » e « este é o cálice do meu sangue » senão em nome e na pessoa de Cristo, único sumo sacerdote da nova e eterna Aliança (Heb 8-9). O Sínodo dos Bispos já se ocupara, noutras assembléias, do sacerdócio ordenado tanto no que diz respeito à identidade do ministério,(69) como à formação dos candidatos.(70) Na presente circunstância importa-me, à luz do diálogo realizado no âmbito da última assembléia sinodal, sublinhar alguns valores que têm a ver com a relação entre o sacramento eucarístico e a Ordem. Antes de mais nada, é necessário reafirmar que a ligação entre a Ordem sacra e a Eucaristia é visível precisamente na Missa que o bispo ou o presbítero preside na pessoa de Cristo cabeça (in persona Christi capitis).
A doutrina da Igreja considera a ordenação sacerdotal condição indispensável para a celebração válida da Eucaristia.(71) De fato, « no serviço eclesial do ministro ordenado, é o próprio Cristo que está presente à sua Igreja, como cabeça do seu corpo, pastor do seu rebanho, sumo sacerdote do sacrifício redentor ».(72) Certamente o ministro ordenado « age também em nome de toda a Igreja, quando apresenta a Deus a oração da mesma Igreja e, sobretudo, quando oferece o sacrifício eucarístico ».(73) Por isso, é necessário que os sacerdotes tenham consciência de que, em todo o seu ministério, nunca devem colocar em primeiro plano a sua pessoa nem as suas opiniões, mas Jesus Cristo. Contradiz a identidade sacerdotal toda a tentativa de se colocarem a si mesmos como protagonistas da ação litúrgica. Aqui, mais do que nunca, o sacerdote é servo e deve continuamente empenhar-se por ser sinal que, como dócil instrumento nas mãos de Cristo, aponta para Ele. Isto exprime-se de modo particular na humildade com que o sacerdote conduz a ação litúrgica, obedecendo ao rito, aderindo ao mesmo com o coração e a mente, evitando tudo o que possa dar a sensação de um seu inoportuno protagonismo. Recomendo, pois, ao clero que não cesse de aprofundar a consciência do seu ministério eucarístico como um serviço humilde a Cristo e à sua Igreja. O sacerdócio, como dizia Santo Agostinho, é um serviço de amor (amoris officium),(74) é o serviço do bom pastor, que oferece a vida pelas ovelhas (Jo 10, 14-15).
Eucaristia e celibato sacerdotal
24. Os padres sinodais quiseram sublinhar como o sacerdócio ministerial requer, através da ordenação, a plena configuração a Cristo. Embora respeitando a prática e tradição oriental diferente, é necessário reiterar o sentido profundo do celibato sacerdotal, justamente considerado uma riqueza inestimável e confirmado também pela prática oriental de escolher os bispos apenas de entre aqueles que vivem no celibato, indício da grande honra em que ela tem a opção do celibato feita por numerosos presbíteros. Com efeito, nesta opção do sacerdote encontram expressão peculiar a dedicação que o conforma a Cristo e a oferta exclusiva de si mesmo pelo Reino de Deus.(75) O fato de o próprio Cristo, eterno sacerdote, ter vivido a sua missão até ao sacrifício da cruz no estado de virgindade constitui o ponto seguro de referência para perceber o sentido da tradição da Igreja Latina a tal respeito. Assim, não é suficiente compreender o celibato sacerdotal em termos meramente funcionais; na realidade, constitui uma especial conformação ao estilo de vida do próprio Cristo. Antes de mais, semelhante opção é esponsal: a identificação com o coração de Cristo Esposo que dá a vida pela sua Esposa. Em sintonia com a grande tradição eclesial, com o Concílio Vaticano II (76) e com os Sumos Pontífices (77) meus predecessores, corroboro a beleza e a importância duma vida sacerdotal vivida no celibato como sinal expressivo de dedicação total e exclusiva a Cristo, à Igreja e ao Reino de Deus, e, conseqüentemente, confirmo a sua obrigatoriedade para a tradição latina. O celibato sacerdotal, vivido com maturidade, alegria e dedicação, é uma bênção enorme para a Igreja e para a própria sociedade.
Escassez de clero e pastoral vocacional
25. A propósito da ligação entre o sacramento da Ordem e a Eucaristia, o Sínodo deteve-se sobre a dolorosa situação que se tem vindo a criar em diversas dioceses a braços com a escassez de sacerdotes. Isto acontece não só em algumas zonas de primeira evangelização, mas também em muitos países de longa tradição cristã. Para a solução do problema contribui certamente uma distribuição mais eqüitativa do clero; mas, para isso, é preciso um trabalho de sensibilização capilar. Os bispos empenhem nas necessidades pastorais os institutos de vida consagrada e as novas realidades eclesiais, no respeito do respectivo carisma, e solicitem todos os membros do clero a uma disponibilidade maior para irem servir a Igreja nos lugares onde houver necessidade, sem olhar a sacrifícios.(78) Além disso, o Sínodo debruçou-se também sobre os cuidados pastorais a ter principalmente com os jovens para favorecer a sua abertura interior à vocação sacerdotal. A solução para tal carestia não se pode encontrar em meros estratagemas pragmáticos; deve-se evitar que os bispos, levados por compreensíveis preocupações funcionais devido à falta de clero, acabem por não realizar um adequado discernimento vocacional, admitindo à formação específica e à ordenação candidatos que não possuam as características necessárias para o serviço sacerdotal.(79) Um clero insuficientemente formado e admitido à ordenação sem o necessário discernimento dificilmente poderá oferecer um testemunho capaz de suscitar noutros o desejo de generosa correspondência à vocação de Cristo. Na realidade, a pastoral vocacional deve empenhar a comunidade cristã em todos os seus âmbitos.(80) Obviamente, no referido trabalho pastoral capilar, está incluída também a obra de sensibilização das famílias, muitas vezes indiferentes se não mesmo contrárias à hipótese da vocação sacerdotal. Que elas se abram com generosidade ao dom da vida e eduquem os filhos para serem disponíveis à vontade de Deus! Em resumo, é preciso sobretudo ter a coragem de propor aos jovens o seguimento radical de Cristo, mostrando-lhes o seu encanto.
Gratidão e esperança
26. Enfim, é necessário ter maior fé e esperança na iniciativa divina. Apesar da escassez de clero que se verifica em algumas regiões, não deve esmorecer jamais a confiança de que Cristo continua a suscitar homens que não hesitam em abandonar qualquer outra ocupação para dedicar-se totalmente à celebração dos mistérios sagrados, à pregação do Evangelho e ao ministério pastoral. Nesta ocasião, desejo dar voz à gratidão da Igreja inteira por todos os bispos e presbíteros que cumprem, com fiel dedicação e empenho, a própria missão. Naturalmente, este agradecimento da Igreja estende-se também aos diáconos, a quem são impostas as mãos « não em ordem ao sacerdócio mas ao ministério ».(81) Como recomendou a assembléia do Sínodo, dirijo um obrigado especial aos presbíteros fidei donum que edificam a comunidade, com competência e generosa dedicação, anunciando-lhe a palavra de Deus e repartindo o pão da vida, sem pouparem as suas energias ao serviço da missão da Igreja.(82) Por fim, é preciso agradecer a Deus pelos numerosos sacerdotes que tiveram de sofrer até ao sacrifício da vida por servir a Cristo. Neles se manifesta, com a eloqüência dos fatos, o que significa ser sacerdote a fundo; trata-se de comoventes testemunhos que poderão inspirar muitos jovens a seguirem por sua vez a Cristo e gastarem a sua vida pelos outros, encontrando precisamente assim a vida verdadeira.
V. Eucaristia e matrimônio
Eucaristia, sacramento esponsal
27. A Eucaristia, sacramento da caridade, apresenta uma relação particular com o amor do homem e da mulher unidos em matrimônio. Aprofundar tal relação é uma necessidade do nosso tempo.(83) Várias vezes o Papa João Paulo II teve ocasião de afirmar o caráter esponsal da Eucaristia e a sua relação peculiar com o sacramento do matrimônio: « A Eucaristia é o sacramento da nossa redenção. É o sacramento do Esposo, da Esposa ».(84) Aliás, « toda a vida cristã tem a marca do amor esponsal entre Cristo e a Igreja. Já o batismo, entrada no povo de Deus, é um mistério nupcial; é, por assim dizer, o banho de núpcias que precede o banquete das bodas, a Eucaristia ».(85) Esta corrobora de forma inexaurível a unidade e o amor indissolúveis de cada matrimônio cristão. Neste, em virtude do sacramento, o vínculo conjugal está intrinsecamente ligado com a união eucarística entre Cristo esposo e a Igreja esposa (Ef 5, 31-32). O consentimento recíproco, que o marido e a esposa trocam entre si em Cristo constituindo-os em comunidade de vida e de amor, tem também uma dimensão eucarística; com efeito, na teologia paulina, o amor esponsal é sinal sacramental do amor de Cristo pela sua Igreja, um amor que tem o seu ponto culminante na cruz, expressão das suas « núpcias » com a humanidade e, ao mesmo tempo, origem e centro da Eucaristia. Por isso, a Igreja manifesta uma particular solidariedade espiritual a todos aqueles que fundaram a sua família sobre o sacramento do matrimônio.(86) A família - igreja doméstica (87) - é um âmbito primário da vida da Igreja, especialmente pelo papel decisivo que tem na educação cristã dos filhos.(88) Neste contexto, o Sínodo recomendou também o reconhecimento da missão singular que tem a mulher na família e na sociedade, missão esta que há de ser protegida, salvaguardada e promovida.(89) A sua dimensão de esposa e mãe constitui uma realidade imprescindível, que nunca deve ser desprezada.
Eucaristia e unidade do matrimônio
28. É precisamente à luz desta relação intrínseca entre matrimônio, família e Eucaristia que se podem considerar alguns problemas pastorais. O vínculo fiel, indissolúvel e exclusivo que une Cristo e a Igreja e tem expressão sacramental na Eucaristia, está de harmonia com o dado antropológico primordial segundo o qual o homem deve unir-se de modo definitivo com uma só mulher, e vice-versa (Gn 2, 24; Mt 19, 5). Nesta linha de pensamento, o Sínodo dos Bispos debruçou-se sobre a prática pastoral que deve ser seguida com as pessoas originárias de culturas onde é praticada a poligamia, que recebem o anúncio do Evangelho: quantos vivem em tal situação e se abrem à fé cristã devem ser ajudados a integrar o seu projeto humano na novidade radical de Cristo; no percurso do catecumenado, Cristo alcança-os na sua condição específica e chama-os à verdade plena do amor passando através das renúncias que são necessárias para chegarem à comunhão eclesial perfeita. A Igreja acompanha-os com uma pastoral imbuída simultaneamente de suavidade e de firmeza,(90) mostrando-lhes sobretudo a luz dos mistérios cristãos que se reflete sobre a natureza e os afetos humanos.
Eucaristia e indissolubilidade do matrimônio
29. Se a Eucaristia exprime a irreversibilidade do amor de Deus em Cristo pela sua Igreja, compreende-se por que motivo a mesma implique, relativamente ao sacramento do matrimônio, aquela indissolubilidade a que todo o amor verdadeiro não pode deixar de anelar.(91) Por isso, é mais que justificada a atenção pastoral que o Sínodo reservou às dolorosas situações em que se encontram não poucos fiéis que, depois de ter celebrado o sacramento do matrimônio, se divorciaram e contraíram novas núpcias. Trata-se dum problema pastoral espinhoso e complexo, uma verdadeira praga do ambiente social contemporâneo que vai progressivamente corroendo os próprios ambientes católicos. Os pastores, por amor da verdade, são obrigados a discernir bem as diferentes situações, para ajudar espiritualmente e de modo adequado os fiéis implicados.(92) O Sínodo dos Bispos confirmou a prática da Igreja, fundada na Sagrada Escritura (Mc 10, 2-12), de não admitir aos sacramentos os divorciados re-casados, porque o seu estado e condição de vida contradizem objetivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja que é significada e realizada na Eucaristia. Todavia os divorciados re-casados, não obstante a sua situação, continuam a pertencer à Igreja, que os acompanha com especial solicitude na esperança de que cultivem, quanto possível, um estilo cristão de vida, através da participação na Santa Missa ainda que sem receber a comunhão, da escuta da palavra de Deus, da adoração eucarística, da oração, da cooperação na vida comunitária, do diálogo franco com um sacerdote ou um mestre de vida espiritual, da dedicação ao serviço da caridade, das obras de penitência, do empenho na educação dos filhos.
Nos casos em que surjam legitimamente dúvidas sobre a validade do matrimônio sacramental contraído, deve fazer-se tudo o que for necessário para verificar o fundamento das mesmas. Há que assegurar, pois, no pleno respeito do direito canônico,(93) a presença no território dos tribunais eclesiásticos, o seu caráter pastoral, a sua atividade correta e pressurosa; (94) é necessário haver, em cada diocese, um número suficiente de pessoas preparadas para o solícito funcionamento dos tribunais eclesiásticos. Recordo que « é uma obrigação grave tornar a atuação institucional da Igreja nos tribunais cada vez mais acessível aos fiéis ».(95) No entanto, é preciso evitar que a preocupação pastoral seja vista como se estivesse em contraposição com o direito; ao contrário, deve-se partir do pressuposto que o ponto fundamental de encontro entre direito e pastoral é o amor pela verdade: com efeito, esta nunca é abstrata, mas « integra-se no itinerário humano e cristão de cada fiel ».(96) Enfim, caso não seja reconhecida a nulidade do vínculo matrimonial e se verifiquem condições objetivas que tornam realmente irreversível a convivência, a Igreja encoraja estes fiéis a esforçarem-se por viver a sua relação segundo as exigências da lei de Deus, como amigos, como irmão e irmã; deste modo poderão novamente abeirar-se da mesa eucarística, com os cuidados previstos por uma comprovada prática eclesial. Para que tal caminho se torne possível e dê frutos, deve ser apoiado pela ajuda dos pastores e por adequadas iniciativas eclesiais, evitando, em todo o caso, de abençoar estas relações para que não surjam entre os fiéis confusões acerca do valor do matrimônio.(97)
Vista a complexidade do contexto cultural em que vive a Igreja em muitos países, o Sínodo recomendou ainda que se tivesse o máximo cuidado pastoral com a formação dos nubentes e a verificação prévia das suas convicções sobre os compromissos irrenunciáveis para a validade do sacramento do matrimônio. Um sério discernimento a tal respeito poderá evitar que impulsos emotivos ou razões superficiais induzam os dois jovens a assumir responsabilidades que depois não poderão honrar.(98) Demasiado grande é o bem que a Igreja e a sociedade inteira esperam do matrimônio e da família fundada sobre o mesmo para não nos comprometermos a fundo neste âmbito pastoral específico; matrimônio e família são instituições cuja verdade deve ser promovida e defendida de qualquer equívoco, porque todo o dano a elas causado é realmente uma ferida que se inflige à convivência humana como tal.
Eucaristia e escatologia
Eucaristia, dom para o homem a caminho
30. Se é certo que os sacramentos são uma realidade que pertence à Igreja peregrina no tempo (99) rumo à plena manifestação da vitória de Cristo ressuscitado, é igualmente verdade que, sobretudo na liturgia eucarística, nos é dado saborear antecipadamente a consumação escatológica para a qual todo o homem e a criação inteira estão a caminho (Rm 8, 19s). O homem é criado para a felicidade verdadeira e eterna, que só o amor de Deus pode dar; mas a nossa liberdade ferida extraviar-se-ia se não lhe fosse possível experimentar, já desde agora, algo da consumação futura. Aliás, para poder caminhar na direção justa, o homem necessita de estar orientado para a meta final; esta, na realidade, é o próprio Cristo Senhor, vencedor do pecado e da morte, que Se torna presente para nós de maneira especial na celebração eucarística. Deste modo, embora sejamos ainda « estrangeiros e peregrinos » (1 Pd 2, 11) neste mundo, pela fé participamos já da plenitude da vida ressuscitada. O banquete eucarístico, ao revelar a sua dimensão intensamente escatológica, vem em ajuda da nossa liberdade a caminho.
O banquete escatológico
31. Refletindo sobre este mistério, podemos dizer que Cristo, com a sua vinda, Se colocou em sintonia com a expectativa presente no povo de Israel, na humanidade inteira e fundamentalmente na própria criação. Com o dom de Si mesmo, inaugurou objetivamente o tempo escatológico. Cristo veio chamar à unidade o povo de Deus que andava disperso (Jo 11, 52), manifestando claramente a intenção de congregar a comunidade da aliança para dar cumprimento às promessas feitas por Deus a nossos pais (Jer 23, 3; 31, 10; Lc 1, 55.70). Com o chamamento dos Doze - número que evoca as doze tribos de Israel - e o mandato que lhes confiou na Última Ceia, antes da sua paixão redentora, de celebrarem o seu memorial, Jesus manifestou que queria transferir, para a comunidade inteira por Ele fundada, a missão de ser, na história, sinal e instrumento da reunificação escatológica que n'Ele teve início. Por isso, em cada celebração eucarística, realiza-se sacramentalmente a unificação escatológica do povo de Deus. Para nós, o banquete eucarístico é uma antecipação real do banquete final, preanunciado pelos profetas (Is 25, 6-9) e descrito no Novo Testamento como « as núpcias do Cordeiro » (Ap 19, 7-9) q

IMPERDÍVEL!!!

EXORCISTA ESCLARECE O DOM DO DISCERNIMENTO