A INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA NA IGREJA
ÍNDICE
INTRODUÇÃO
I.
MÉTODOS E ABORDAGENS PARA A INTERPRETAÇÃO
II.
QUESTÕES DE HERMENÊUTICA
III.
DIMENSÕES CARACTERÍSTICAS DA INTERPRETAÇÃO CATÓLICA
IV.
INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA NA VIDA DA IGREJA
V. CONCLUSÃO
INTRODUÇÃO
A interpretação dos textos bíblicos continua a suscitar em nossos dias um vivo interesse e provoca importantes discussões. Elas adquiriram dimensões novas nestes últimos anos. Dado à importância fundamental da Bíblia para a fé cristã, para a vida da Igreja e para as relações dos cristãos com os fiéis das outras religiões, a Pontifícia Comissão Bíblica foi solicitada a se pronunciar a esse respeito.
O problema da interpretação da Bíblia não é uma invenção moderna como algumas vezes se quer fazer crer. A Bíblia mesma atesta que sua interpretação apresenta dificuldades. Ao lado de textos límpidos, ela comporta passagens obscuras. Lendo certos oráculos de Jeremias, Daniel se interrogava longamente sobre o sentido deles (Dn 9,2). Segundo os Atos dos Apóstolos, um etíope do primeiro século encontrava-se na mesma situação a propósito de uma passagem do livro de Isaías (Is 53,7-8) e reconhecia ter necessidade de um intérprete (At8,30-35). A segunda carta de Pedro declara que «nenhuma profecia da Escritura resulta de uma interpretação particular» (2 Pd 1,20) e ela observa, de outro lado, que as cartas do apóstolo Paulo contêm «alguns pontos difíceis de entender, que os ignorantes e vacilantes torcem, como fazem com as demais Escrituras, para sua própria perdição» (2 Pd 3,16).
O problema é, portanto, antigo, mas ele se acentuou com o desenrolar do tempo: doravante, para encontrar os fatos e palavras de que fala a Bíblia, os leitores devem voltar a quase vinte ou trinta séculos atrás, o que não deixa de levantar dificuldades. De outro lado, as questões de interpretação tornaram-se mais complexas nos tempos modernos devido aos progressos feitos pelas ciências humanas. Métodos científicos foram aperfeiçoados no estudo dos textos da antiguidade. Em que proporção esses métodos podem ser considerados apropriados à interpretação da Sagrada Escritura? A esta questão a prudência pastoral da Igreja durante muito tempo respondeu de maneira muito reticente, pois muitas vezes os métodos, apesar de seus elementos positivos, encontravam-se liga dos a opções opostas à fé cristã. Mas uma evolução positiva se produziu, marcada por uma série de documentos pontifícios, desde encíclica Providentissimus Deus de Leão XIII (18 novembro 1893 até a encíclica Divino afflante Spiritu de Pio XII (30 setembro 1943), e ela foi confirmada pela declaração Sancta Mater Ecclesie (21 abril 1964) da Pontifícia Comissão Bíblica e sobretudo pele Constituição Dogmática Dei Verbum do Concilio Vaticano II (18 novembro 1965).
A fecundidade desta atitude construtiva manifestou-se
de uma maneira inegável. Os estudos bíblicos tiveram um progresso notável na
Igreja católica e o valor científico deles foi cada vez mais reconhecido no
mundo dos estudiosos e entre os fiéis. O diálogo ecumênico foi
consideravelmente facilitado. A influência da Bíblia sobre a teologia se
aprofundou e contribuiu à renovação teológica. O interesse pela Bíblia aumentou
entre os católicos e favoreceu o progresso da vida cristã. Todos aqueles que
adquiriram uma formação séria nesse campo estimam doravante impossível retornar
a um estado de interpretação pré-crítica, pois o julgam, com razão, claramente
insuficiente.
Mas, ao mesmo tempo em que o método científico mais divulgado — o método
« histórico-crítico » — é praticado correntemente em exegese, inclusive na
exegese católica, ele mesmo encontra-se em discussão: de um lado, no próprio
mundo científico, pela aparição de outros métodos e abordagens, e, de outro
lado, pelas críticas de numerosos cristãos que o julgam deficiente do ponto de
vista da fé.
Particularmente atento, como seu nome o indica, à evolução
histórica dos textos ou das tradições através do tempo — ou diacronia —
o método histórico-crítico encontra-se atualmente em concorrência, em alguns
ambientes, com métodos que insistem na compreensão sincrônica dos
textos, tratando-se da língua, da composição, da trama narrativa ou do esforço
de persuasão deles. Além disso, o cuidado que os métodos diacrônicos têm em
reconstituir o passado, para muitos é substituído pela tendência de interrogar
os textos colocando-os em perspectivas do tempo presente, seja de ordem filosófica,
psicanalítica, sociológica, política, etc. Esse pluralismo de métodos e
abordagens é apreciado por alguns como um indício de riqueza, mas a outros ele
dá a impressão de uma grande confusão.
Real ou aparente, essa confusão traz novos argumentos aos adversários da
exegese científica. O conflito das interpretações manifesta, segundo eles, que
não se ganha nada submetendo os textos bíblicos às exigências dos métodos
científicos, mas, ao contrário, perde-se bastante. Eles sublinham que a exegese
científica obtém como resultado o provocar perplexidade e dúvida sobre
inumeráveis pontos que, até então, eram admitidos pacificamente; que ele força
alguns exegetas a tomar posições contrárias à fé da Igreja sobre questões de
grande importância, como a concepção virginal de Jesus e seus milagres, e até
mesmo sua ressurreição e sua divindade.
Mesmo quando não finaliza em tais negações, a exegese científica se
caracteriza, segundo eles, pela sua esterilidade no que concerne o progresso da
vida cristã. Ao invés de permitir um acesso mais fácil e mais seguro às fontes
vivas da Palavra de Deus, ela faz da Bíblia um livro fechado, cuja
interpretação sempre problemática exige técnicas refinadas fazendo dela um
domínio reservado a alguns especialistas. A estes, alguns aplicam a frase do
Evangelho: «Tomastes a chave da ciência! Vós mesmos não entrastes e impedistes
os que queriam entrar!» (Lc 11,52; cf Mt 23,13).
Em consequência, ao paciente labor do exegeta científico estima-se
necessário substituir abordagens mais simples, como uma ou outra prática de
leitura sincrônica que se considera como suficiente, ou mesmo, renunciando a
todo estudo, preconiza-se uma leitura da Bíblia dita « espiritual »,
entendendo-se pela expressão uma leitura unicamente guiada pela inspiração pessoal
subjetiva e destinada a alimentar esta inspiração. Alguns procuram na Bíblia
sobretudo o Cristo da visão pessoal deles e a satisfação da religiosidade
espontânea que têm. Outros pretendem encontrar nela respostas diretas a toda
sorte de questões, pessoais ou coletivas. Numerosas são as seitas que propõem
como única verdadeira uma interpretação da qual elas afirmam terem tido a
revelação.
B. O objetivo deste documento
Há de se considerar seriamente, portanto, os diversos aspectos da
situação atual em matéria de interpretação bíblica, de esta atento às críticas,
às queixas e às aspirações que se exprimem a esse respeito, de apreciar as
possibilidades abertas pelos novos métodos e abordagens e de procurar, enfim,
precisar a orientação que melhor corresponde à missão do exegeta na Igreja
católica.
Esta é a finalidade deste documento. A Pontifícia Comissão Bíblica
deseja indicar os caminhos que convém tomar para chegar a uma interpretação da
Bíblia que seja tão fiel quanto possível a seu caráter ao mesmo tempo humano e
divino. Ela não pretende tomar aqui posição sobre todas as questões que são
feitas a respeito da Bíblia, como por exemplo, a teologia da inspiração. O que
ela quer é examinar os métodos suscetíveis de contribuírem com eficácia a
valorizar todas as riquezas contidas nos textos bíblicos, a fim de que a
Palavra de Deus possa tornar-se sempre mais o alimento espiritual dos membros
de seu povo, a fonte para eles de uma vida de fé, de esperança e de amor, assim
como uma luz para toda a humanidade (cf Dei Verbum, 21).
Para alcançar este fim, o presente documento:
1. fará uma breve descrição dos diversos métodos e abordagens, (1) indicando suas possibilidades e seus limites;
2. examinará algumas questões de hermenêutica;
3. proporá uma reflexão sobre as dimensões características da
interpretação católica da Bíblia e sobre suas relações com as outras
disciplinas teológicas;
4. considerará, enfim, o lugar que ocupa a interpretação da Bíblia na
vida da Igreja.
I. MÉTODOS E ABORDAGENS PARA A
INTERPRETAÇÃO
A. Método histórico-crítico
O método histórico-crítico é o método indispensável para o estudo
científico do sentido dos textos antigos. Como a Santa Escritura, enquanto «Palavra de Deus em linguagem humana», foi composta por autores humanos em
todas as suas partes e todas as suas fontes, sua justa compreensão não só
admite como legítimo, mas pede a utilização deste método.
1. História do método
Para apreciar corretamente este método em seu estado atual, convém dar
uma olhada em sua história. Certos elementos deste método de interpretação são
muito antigos. Eles foram utilizados na antiguidade por comentadores gregos da
literatura clássica e, mais tarde, durante o período patrístico, por autores
como Orígenes, Jerônimo e Agostinho. O método era, então, menos elaborado. Suas
formas modernas são o resultado de aperfeiçoamentos, trazidos sobretudo desde
os humanistas da Renascença e o recursus ad fontes deles.
Enquanto que a crítica textual do Novo Testamento só pôde se desenvolver como
disciplina científica a partir de 1800, depois que se desligou do Textus
receptus, os primórdios da crítica literária remontam ao século XVII, com a
obra de Richard Simon, que chamou a atenção sobre as repetições, as
divergências no conteúdo e as diferenças de estilo observáveis no Pentatêuco,
constatações dificilmente conciliáveis com a atribuição de todo o texto a um
autor único, Moisés. No século XVIII, Jean Astruc contentou-se ainda em dar
como explicação que Moisés tinha se servido de várias fontes (sobretudo de duas
fontes principais) para compor o Livro do Gênesis, mas, em seguida, a crítica
contesta cada vez mais resolutamente a atribuição da composição do Pentatêuco a
Moisés. A crítica literária identificou-se muito tempo com um esforço para
discernir diversas fontes nos textos. É assim que se desenvolveu, no século
XIX, a hipótese dos «documentos», que procura explicar a redação do
Pentateuco. Quatro documentos, em parte paralelos entre si, mas provenientes de
épocas diferentes, teriam sido incorporados: o yahvista (J), o elohista (E), o
deuteronomista (D) e o sacerdotal (P: do alemão «Priester»); é deste último
que o redator final teria se servido para estruturar o conjunto. De maneira
análoga, para explicar ao mesmo tempo as convergências e as divergências
constatadas entre os três Evangelhos sinóticos, recorreram à hipótese das «duas fontes», segundo a qual os Evangelhos de Mateus e o de Lucas teriam sido
compostos a partir de duas fontes principais: o Evangelho de Marcos de um lado
e, de outro lado, uma compilação das palavras de Jesus (chamada Q, do alemão «
Quelle », «fonte »). Essencialmente estas duas hipóteses são ainda aceitas
atualmente na exegese científica, mas elas são objeto de contestações.
No desejo de estabelecer a cronologia dos textos bíblicos, esse gênero
de crítica literária se limitava a um trabalho de cortes e de decomposição para
distinguir as diversas fontes e não dava uma atenção suficiente à estrutura
final do texto bíblico e à mensagem que ele exprime em seu estado atual
(mostrava-se pouca estima pela obra dos redatores). Dessa maneira a exegese
histórico-crítica podia aparecer como fragmentária e destrutora, ainda mais que
certos exegetas sob a influência da história comparada das religiões, tal como
ela se praticava então, ou partindo de concepções filosóficas, emitiam contra a
Bíblia julgamentos negativos.
Hermann Gunkel fez o método sair do gueto da crítica literária entendida
desta maneira. Se bem tenha continuado a considerar os livros do Pentateuco
como compilações, ele aplicou sua atenção à textura particular das diferentes
partes. Ele procurou definir o gênero de cada uma (por exemplo, «legenda» ou
«hino») e seu ambiente de origem ou «Sitz im Lebem» ( por exemplo, situação
jurídica, liturgia, etc.). A esta pesquisa dos gêneros literários assemelha-se
o «estudo crítico das formas» («Formgeschichte») inaugurada na exegese dos
sinóticos por Martin Dibelius e Rudolf Bultmann. Este último misturou aos
estudos de « Formgeschichte » uma hermenêutica bíblica inspirada na filosofia
existencialista de Martin Heidegger. Em consequência, a Formgeschichte suscitou
muitas vezes sérias reservas. Mas este método, em si mesmo, teve como resultado
a declaração de que a tradição neo-testamentária obteve sua origem e tomou sua
forma na comunidade cristã, ou Igreja primitiva, passando da pregação do
próprio Jesus à pregação que proclama que Jesus é o Cristo. «Formgeschichte» aliou-se a «Redaktionsgeschichte», «estudo crítico da redação». Esta
última procura colocar em evidência a contribuição pessoal de cada evangelista
e as orientações teológicas que guiaram o trabalho de redação deles. Com a utilização
deste último método, a série das diferentes etapas do método histórico-crítico
tornou-se mais completa: da crítica textual passa-se a uma crítica literária
que decompõe (pesquisa das fontes), depois a um estudo crítico das formas,
enfim a uma análise da redação, que é atenta ao texto em sua composição. Desta
maneira tornou-se possível uma compreensão mais clara da intenção dos autores e
redatores da Bíblia, assim como da mensagem que eles dirigiram aos primeiros
destinatários. O método histórico-crítico adquiriu então uma importância de
primeiro plano.
2. Princípios
Os princípios fundamentais do método histórico-crítico em sua forma
clássica são os seguintes:
E um método histórico, não só porque ele se aplica a textos
antigos — no caso, aqueles da Bíblia — e estuda seu alcance histórico, mas
também e sobretudo porque ele procura elucidar os processos históricos de
produção dos textos bíblicos, processos diacrônicos algumas vezes complicados e
de longa duração. Em suas diferentes etapas de produção, os textos da Bíblia
são dirigidos a diversas categorias de ouvintes ou de leitores, que se
encontravam em situações de tempo e de espaço diferentes.
É um método crítico, porque ele opera com a ajuda de
critérios científicos tão objetivos quanto possíveis em cada uma de suas etapas
(da crítica textual ao estudo crítico da redação), de maneira a tornar
acessível ao leitor moderno o sentido dos textos bíblicos, muitas vezes difícil
de perceber.
Método analítico, ele estuda o texto bíblico da mesma maneira que qualquer
outro texto da antiguidade e o comenta enquanto linguagem humana. Entretanto,
ele permite ao exegeta, sobretudo no estudo crítico da redação dos textos,
perceber melhor o conteúdo da revelação divina.
3. Descrição
No estágio atual de seu desenvolvimento, o método histórico-crítico
percorre as seguintes etapas:
A crítica textual, praticada há muito mais tempo, abre a série das
operações científicas. Baseando-se no testemunho dos mais antigos e melhores
manuscritos, assim como dos papiros, das traduções antigas e da patrística, ela
procura, segundo regras determinadas, estabelecer um texto bíblico que seja tão
próximo quanto possível ao texto original.
O texto é em seguida submetido a uma análise linguística (morfologia e
sintaxe) e semântica, que utiliza os conhecimentos obtidos graças aos estudos
de filologia histórica. A crítica literária esforça-se então em discernir o
início e o fim das unidades textuais, grandes e pequenas, e em verificar a
coerência interna dos textos. A existência de repetições, de divergências
inconciliáveis e de outros indícios, manifesta o caráter compósito de certos
textos. Estes então são divididos em pequenas unidades, das quais estuda-se a
dependência possível a diversas fontes. A crítica dos gêneros procura
determinar os gêneros literários, ambiente de origem, traços específicos e
evolução desses textos. A crítica das tradições situa os textos em correntes de
tradição, das quais ela procura determinar a evolução no decorrer da história.
Enfim, a crítica da redação estuda as modificações que os textos sofreram antes
de terem um estado final fixado, esforçando-se em discernir as orientações que
lhes são próprias. Enquanto as etapas precedentes procuraram explicar o texto
pela sua gênese, em uma perspectiva diacrônica, esta última etapa termina com
um estudo sincrônico: explica-se aqui o texto em si, graças às relações mútuas
de seus diversos elementos e considerando-o sob seu aspecto de mensagem
comunicada pelo autor a seus contemporâneos. A função pragmática do texto pode
então ser levada em consideração.
Quando os textos estudados pertencem a um gênero literário histórico ou
estão em relação com acontecimentos da história, a crítica histórica completa a
crítica literária para determinar seu alcance histórico, no sentido moderno da
expressão.
É desta maneira que são colocadas em evidência as diferentes etapas do
desenrolar concreto da revelação bíblica.
4. Avaliação
Que valor dar ao método histórico-crítico, em particular no estágio
atual de sua evolução?
É um método que, utilizado de maneira objetiva, não implica em si
nenhum a priori: Se sua utilização é acompanhada de tais a
priori, isto não é devido ao método em si mas a opiniões hermenêuticas que
orientam a interpretação e podem ser tendenciosas.
Orientado, em seu início, como crítica das fontes e da história das
religiões, o método obteve como resultado a abertura de um novo acesso à
Bíblia, mostrando que ela é uma coleção de escritos que, muitas vezes,
sobretudo para o Antigo Testamento, não têm um autor único, mas tiveram uma
longa pré-história inextricavelmente ligada à história de Israel ou àquela da
Igreja primitiva. Precedentemente, a interpretação judaica ou cristã da Bíblia
não tinha uma consciência clara das condições históricas concretas e diversas
nas quais a Palavra de Deus se enraizou. Ela tinha disto um conhecimento global
e longínquo. O confronto da exegese tradicional com uma abordagem científica
que em seu início fazia conscientemente abstração da fé e algumas vezes mesmo
se opunha a ela, foi seguramente dolorosa; depois, no entanto, ela se revelou
salutar: uma vez que o método foi liberado dos preconceitos extrínsecos, ele
conduziu a uma compreensão mais exata da verdade da Santa Escritura (cf Dei Verbum, 12). Segundo
a Divino
afflante Spiritu, a procura do sentido literal da Escritura é uma tarefa essencial da
exegese e, para cumprir esta tarefa, é necessário determinar o gênero literário
dos textos (cf E.B., 560), o que se realiza com a ajuda do método
histórico-crítico.
Com certeza o uso clássico do método histórico-crítico manifesta
limites, pois ele se restringe à procura do sentido do texto bíblico nas
circunstâncias históricas de sua produção e não se interessa pelas outras
potencialidades de sentido que se manifestaram no decorrer das épocas
posteriores da revelação bíblica e da história da Igreja. No entanto, esse
método contribuiu à produção de obras de exegese e de teologia bíblica de
grande valor.
Renunciou-se há muito tempo a um amálgama do método com um sistema
filosófico. Recentemente uma tendência exegética orientou o método insistindo
predominantemente sobre a forma do texto, com menor atenção ao seu conteúdo,
mas esta tendência foi corrigida graças à contribuição de uma semântica
diferenciada (semântica das palavras, das frases, do texto) e ao estudo do
aspecto pragmático dos textos.
A respeito da inclusão no método, de uma análise sincrônica dos textos,
deve-se reconhecer que se trata de uma operação legítima, pois é o texto em seu
estado final, e não uma redação anterior, que é expressão da Palavra de Deus.
Mas o estudo diacrônico continua indispensável para o discernimento do
dinamismo histórico que anima a Santa Escritura e para manifestar sua rica
complexidade: por exemplo, o código da Aliança (Ex 21,23) reflete
um estado político, social e religioso da sociedade israelita diferente daquele
que refletem as outras legislações conservadas no Deuteronômio (Dt 12,26)
e no Levítico (código de santidade, Lv 17-26). À tendência de
reduzir tudo ao aspecto histórico, que se pôde repreender na antiga exegese
histórico-crítica, seria o caso que não sucedesse o excesso inverso: o de um
esquecimento da história, por parte de uma exegese exclusivamente sincrônica.
Em definitivo, o objetivo do método histórico-crítico é de colocar em
evidência, de maneira sobretudo diacrônica, o sentido expresso pelos autores e
redatores. Com a ajuda de outros métodos e abordagens, ele abre ao leitor
moderno o acesso ao significado do texto da Bíblia, tal como o temos.
B. Novos métodos de análise literária
Nenhum método científico para o estudo da Bíblia está à altura de
corresponder à riqueza total dos textos bíblicos. Qualquer que seja sua
validade, o método histórico-crítico não pode pretender ser suficiente a tudo.
Ele deixa forçosamente obscuros numerosos aspectos dos escritos que estuda. Que
não seja surpresa a constatação de que atualmente outros métodos e abordagens
são propostos para aprofundar um ou outro aspecto digno de atenção.
Neste parágrafo B apresentaremos alguns métodos de análise literária que
se desenvolveram recentemente. Nos parágrafos seguintes (C, D, E) examinaremos
brevemente diversas abordagens, das quais algumas estão em relação com o estudo
da tradição, outras com as « ciências humanas », outras ainda com situações '
contemporâneas particulares. Consideramos enfim (F) a leitura fundamentalista
da Bíblia, que recusa todo esforço metódico de interpretação.
Aproveitando os progressos realizados em nossa época pelos estudos
linguísticos e literários, a exegese bíblica utiliza cada vez mais métodos
novos de análise literária, em particular a análise retórica, a análise
narrativa e a análise semiótica.
1. Análise retórica
Na realidade, a análise retórica não é em si um método novo. O que é
novo, de um lado, é sua utilização sistemática para a interpretação da Bíblia
e, de outro lado, o nascimento e o desenvolvimento de uma «nova retórica».
A retórica é a arte de compor discursos persuasivos.
Pelo fato de que todos os textos bíblicos são em algum grau textos persuasivos,
um certo conhecimento da retórica faz parte do instrumental normal dos
exegetas. A análise retórica deve ser conduzida de maneira crítica, pois a
exegese científica é um trabalho que se submete necessariamente às exigências
do espírito crítico.
Muitos estudos bíblicos recentes deram uma grande atenção à presença da
retórica na Escritura. Podemos distinguir três abordagens diferentes. A
primeira se baseia na retórica clássica greco-latina; a segunda é atenta aos
procedimentos semíticos de composição; a terceira inspira-se nas pesquisas
modernas que chamamos «nova retórica».
Toda situação de discurso comporta a presença de três elementos: o
orador (ou o autor), o discurso (ou o texto) e o auditório (ou os
destinatários). A retórica clássica distingue,
consequentemente, três fatores de persuasão que contribuem à qualidade de um
discurso: a autoridade do orador, a argumentação do discurso e as emoções que
ele suscita no auditório. A diversidade de situações e de auditórios influencia
imensamente a maneira de falar. A retórica clássica, desde Aristóteles, admite
a distinção de três gêneros de eloquência: o gênero judiciário (diante dos
tribunais), o deliberativo (nas assembléias políticas), o demonstrativo (nas
celebrações).
Constatando a enorme influência da retórica na cultura helenística, um
número crescente de exegetas utiliza tratados de retórica clássica para melhor
analisar certos aspectos dos escritos bíblicos, sobretudo daqueles do Novo
Testamento.
Outros exegetas concentram a atenção sobre os traços específicos
da tradição literária bíblica. Enraizada na cultura semítica, ela
manifesta uma forte preferência pelas composições simétricas, graças às quais
as relações são estabelecidas entre os diversos elementos do texto. O estudo
das múltiplas formas de paralelismo e de outros procedimentos semíticos de
composição deve permitir um melhor discernimento da estrutura literária dos
textos e assim chegar a maior compreensão de sua mensagem.
Tomando um ponto de vista mais geral, a «nova retórica»
quer ser algo mais que um inventário de figuras de estilo, de artifícios
oratórios e de espécies de discurso. Ela busca o porquê tal uso específico da
linguagem é eficaz e chega a comunicar uma convicção. Ela se quer «realista»,
recusando de se limitar à simples análise formal. Ela dá à situação de debate a
atenção que lhe é devida. Ela estuda o estilo e a composição enquanto meios de
exercer uma ação sobre o auditório. Com esta finalidade ela aproveita as
contribuições recentes de disciplinas como a lingüística, a semiótica, a
antropologia e a sociologia.
Aplicada à Bíblia, a « nova retórica » quer penetrar no coração da
linguagem da revelação enquanto linguagem religiosa persuasiva e medir seu
impacto no contexto social da comunicação. Porque elas trazem um enriquecimento
ao estudo crítico dos textos, as análises retóricas merecem muita estima,
sobretudo em suas recentes pesquisas. Elas reparam uma negligência que durou
muito tempo e fazem descobrir ou colocam mais em evidência perspectivas
originais. A « nova retórica » tem razão de chamar a atenção para a capacidade
persuasiva e convincente da linguagem. A Bíblia não é simplesmente enunciação
de verdades. E uma mensagem dotada de uma função de comunicação em um certo
contexto, uma mensagem que comporta um dinamismo de argumentação e uma
estratégia retórica.
As análises retóricas têm, contudo, seus limites. Quando elas se
contentam em ser descritivas, seus resultados têm muitas vezes um interesse
unicamente estilístico.
Fundamentalmente sincrônicas, elas não podem pretender
constituir um método independente que seja autossuficiente. Sua aplicação aos
textos bíblicos levanta mais de uma questão: os autores destes textos
pertenciam aos ambientes mais cultos? Até que ponto eles seguiram as regras de
retórica para compor seus escritos? Qual retórica é mais pertinente para a
análise de tal escrito determinado: a greco-latina ou a semítica? Não se
arrisca em atribuir a certos textos bíblicos uma estrutura retórica elaborada
demais? Estas questões — e outras — não devem dissuadir o emprego deste tipo de
análise; elas convidam a não recorrer a ele sem discernimento.
2. Análise narrativa
A exegese narrativa propõe um método de compreensão e de comunicação da
mensagem bíblica que corresponde à forma de relato e de testemunho, modalidade
fundamental da comunicação entre pessoas humanas, característica também da
Santa Escritura. O Antigo Testamento, efetivamente, apresenta uma história da
salvação cujo relato eficaz torna-se substância da profissão de fé, da liturgia
e da catequese (cf Sal 78,3-4; Ex 12,24-27; Dt 6,20-25;
26,5-11). De seu lado, a proclamação do querigma cristão compreende a sequência
narrativa da vida, da morte e da ressurreição de Jesus Cristo, acontecimentos
dos quais os Evangelhos nos oferecem um relato detalhado. A catequese se
apresenta, ela também, sob a forma narrativa (cf 1 Co 11,23-25).
A respeito da abordagem narrativa, convém distinguir métodos de análise
e reflexão teológica.
Numerosos métodos de análise são atualmente propostos.
Alguns partem do estudo dos modelos narrativos antigos. Outros se baseiam sobre
um ou outro estudo atual da narrativa, que pode ter pontos comuns com a
semiótica. Particularmente atenta aos elementos do texto que dizem respeito ao
enredo, às características e ao ponto de vista tomado pelo narrador, a análise
narrativa estuda o jeito pelo qual a história é contada de maneira a envolver o
leitor no « mundo do relato » e seu sistema de valores.
Vários métodos introduzem uma distinção entre «autor real» e «autor
implícito», «leitor real» e «leitor implícito». O «autor real» é a
pessoa que compôs o relato. Por «autor implícito» é designada a imagem do
autor que o texto produz progressivamente no decorrer da leitura (com sua
cultura, seu temperamento, suas tendências, sua fé, etc.).
Chama-se «leitor
real» toda pessoa que tem acesso ao texto, desde os primeiros destinatários
que leram ou ouviram ler até os leitores ou ouvintes de hoje. Por «leitor
implícito» entende-se aquele que o texto pressupõe e produz, aquele que é
capaz de efetuar as operações mentais e afetivas exigidas para entrar no mundo
do relato e assim responder a ele da maneira visada pelo autor real através do
autor implícito.
Um texto continua a exercer sua influência na medida em que os leitores
reais (por exemplo, nós mesmos no fim do século XX) podem se identificar com o
leitor implícito.
Uma das maiores tarefas do exegeta é facilitar esta
identificação.
À análise narrativa liga-se uma nova maneira de apreciar o alcance dos
textos.
Enquanto o método histórico-crítico considera antes de tudo o texto
como uma «janela», que permite algumas observações sobre uma ou outra época
(não apenas sobre os fatos narrados, mas também sobre a situação da comunidade
para a qual eles foram contados), sublinha-se que o texto funciona igualmente
como um «espelho», no sentido de que ele estabelece uma certa imagem do mundo
— o «mundo do relato» que exerce sua influência sobre a maneira de ver do
leitor e o leva a adotar certos valores invés que outros.
A este gênero de estudo, tipicamente literário, associou-se a reflexão
teológica, que levando em consideração as consequências que a natureza de
relato e de testemunho da Santa Escritura representa para a adesão de fé, deduz
disso uma hermenêutica de tipo prático e pastoral. Reage-se desta maneira
contra a redução do texto inspirado a uma série de teses teológicas, formuladas
muitas vezes segundo categorias e linguagem não escriturísticas. Pede-se à
exegese narrativa de reabilitar, em contextos históricos novos, os modos de
comunicação e de significado próprios ao relato bíblico, afim de melhor abrir
caminho à sua eficácia para a salvação. Insiste-se na necessidade de «contar a
salvação» (aspecto «informativo» do relato) e de «contar em vista da
salvação» (aspecto de «desempenho»). O relato bíblico, efetivamente, contém
— explicitamente ou implicitamente, segundo o caso — um apelo existencial
dirigido ao leitor.
Para a exegese da Bíblia, a análise narrativa apresenta uma utilidade
evidente, pois ela corresponde à natureza narrativa de um grande número de
textos bíblicos. Ela pode contribuir a tornar fácil a passagem, muitas vezes
sofrida, entre o sentido do texto em seu contexto histórico — tal como o método
histórico-crítico procura defini-lo — e o alcance do texto para o leitor de
hoje. Em contraposição, a distinção entre « autor real » e « autor implicito »
aumenta a complexidade dos problemas de interpretação.
Aplicando-se aos textos da Bíblia, a análise narrativa não pode se
contentar de colar sobre eles modelos pré-estabelecidos. Ela deve ao contrário
esforçar-se em corresponder à sua especificidade. Sua abordagem sincrônica dos
textos pede para ser completada por estudos diacrônicos. Ela deve, de outro
lado, evitar uma possível tendência a excluir toda elaboração doutrinária dos
dados que contêm os relatos da Bíblia. Ela se encontraria, então, em desacordo
com a própria tradição bíblica que pratica esse gênero de elaboração, e com a
tradição eclesial que continuou nesta via. Convém, enfim, notar que não se pode
considerar a eficácia existencial subjetiva da Palavra de Deus transmitida
narrativamente, como um critério suficiente da verdade de sua compreensão.
3. Análise semiótica
Entre os métodos chamados sincrônicos, isto é, que se concentram sobre o
estudo do texto bíblico tal como ele se apresenta ao leitor em seu estado
final, coloca-se a análise semiótica que, há uns vinte anos, se desenvolveu
bastante em certos meios.
Primeiramente chamado pelo termo geral de «estruturalismo», este método pode se propor como descendente do linguista
suíço Ferdinand de Saussure que no início deste século elaborou a teoria
segundo a qual toda língua é um sistema de relações que obedece a regras
determinadas. Vários linguistas e literatos tiveram uma influência marcante na
evolução do método. A maior parte dos biblistas que utilizam a semiótica para o
estudo da Bíblia recorre a Algirdas J. Greimas e à Escola de Paris, da qual ele
é o fundador. Abordagens ou métodos análogos, fundados sobre a Linguística
moderna, se desenvolvem em outros lugares. É o método de Greimas que iremos apresentar
e analisar brevemente.
A semiótica repousa sobre três princípios ou pressupostos principais:
Princípio de imanência: cada texto forma um conjunto de
significados: a análise considera todo o texto, mas somente o texto; ela não
apela a dados «externos», tais como o autor, os destinatários, os
acontecimentos narrados, a história da redação.
Princípio de estrutura do sentido: só há sentido através da relação e no
interior dela, especialmente a relação de diferença; a análise de um texto
consiste assim em estabelecer a rede de relações (de oposição, de
homologação...) entre os elementos, a partir da qual o sentido do texto se
constrói.
Princípio da gramática do texto: cada texto respeita uma gramática,
isto é, um certo número de regras ou estruturas; em um conjunto de frases,
chamado discurso, há diferentes níveis, tendo cada um a sua gramática.
O conteúdo global de um texto pode ser analisado em três níveis
diferentes:
O nível narrativo. Estuda-se, no relato, as transformações que fazem
passar do estado inicial ao estado terminal. No interior de um percurso
narrativo, a análise procura retraçar as diversas fases, logicamente ligadas
entre elas, que marcam a transformação de um estado em um outro. Em cada uma
destas fases, apuram-se as relações entre os « papéis » exercidos por «
atuantes » que determinam os estados e produzem as transformações.
O nível discursivo. A análise consiste em três operações: a) a
identificação e a classificação das figuras, isto é, dos elementos de
significação de um texto (atores, tempos e lugares); b) o estabelecimento dos
percursos de cada figura em um texto para determinar a maneira como esse texto
o utiliza; c) a procura dos valores temáticos das figuras. Esta última operação
consiste em distinguir «em nome do que» (= valor) as figuras seguem, nesse
texto determinado, tal percurso.
O nível lógico-semântico. É o nível chamado profundo. Ele é
também o mais abstrato.
Ele procede do postulado que formas lógicas e
significantes são subjacentes às organizações narrativas e discursivas de todo
discurso. A análise a esse nível consiste –em precisar a lógica que gera as
articulações fundamentais dos percursos narrativos e figurativos de um texto.
Para isto um instrumento é muitas vezes empregado, chamado de «quadrado
semiótico», figura utilizando as relações entre dois termos «contrários» e
dois termos «contraditórios» (por exemplo, branco e negro; branco e
não-branco; negro e não-negro).
Os teóricos do método semiótico não cessam de apresentar
desenvolvimentos novos. As pesquisas atuais se referem notadamente a enunciação
e à intertextualidade.
Aplicado primeiramente aos textos narrativos da
Escritura, que se prestam mais facilmente a isso, o método é cada vez mais
utilizado para outros tipos de discursos bíblicos.
A descrição dada pela semiótica, e sobretudo o enunciado de seus
pressupostos, já deixam perceber as contribuições e os limites deste
método. Estando mais atenta ao fato de que cada texto bíblico é um todo
coerente que obedece a mecanismos linguísticos precisos, a semiótica contribui
à nossa compreensão da Bíblia, Palavra de Deus expressa em linguagem humana.
A semiótica pode ser utilizada para o estudo da Bíblia apenas quando
este método de análise é separado de certos pressupostos desenvolvidos na
filosofia estruturalista, isto é, a negação dos sujeitos e da referência
extratextual. A Bíblia é a Palavra sobre o real, que Deus pronunciou em uma
história e que ele nos dirige hoje por intermédio de autores humanos. A
abordagem semiótica deve ser aberta à história: primeiramente àquela dos atores
dos textos, em seguida àquela de seus autores e de seus leitores. O risco é
grande, entre os utilizadores da análise semiótica, de ficar em um estudo
formal do conteúdo e de não liberar a mensagem dos textos.
Se ela não se perde nos mistérios de uma linguagem complicada, mas é
ensinada em termos simples em seus elementos principais, a análise semiótica
pode dar aos cristãos o gosto de estudar o texto bíblico e de descobrir algumas
de suas dimensões de sentido; sem possuir todos os conhecimentos históricos que
se relacionam à produção do texto e a seu mundo sociocultural. Ela pode assim
mostrar-se útil na própria pastoral, para uma certa apropriação da Escritura em
ambientes não especializados.
C. Abordagens baseadas na Tradição
Mesmo que eles se diferenciem do método histórico-crítico por uma
atenção maior à unidade interna dos textos estudados, os métodos literários que
acabamos de apresentar permanecem insuficientes para a interpretação da Bíblia,
pois eles consideram cada escrito isoladamente. Ora, a Bíblia não se apresenta
como um conjunto de textos desprovidos de relações entre eles, mas como um
composto de testemunhos de uma mesma e grande Tradição. Para corresponder
plenamente ao objeto de seu estudo, a exegese bíblica deve levar em
consideração este fato. Tal é a perspectiva adotada por várias abordagens que
se desenvolvem atualmente.
1. Abordagem canônica
Constatando que o método histórico-crítico encontra algumas vezes
dificuldades em alcançar o nível teológico em suas conclusões, a abordagem «
canônica », nascida nos Estados Unidos há uns vinte anos, entende por bem
conduzir uma tarefa teológica de interpretação partindo do quadro especifico da
fé: a Bíblia em seu conjunto.
Para fazê-lo, ela interpreta cada texto bíblico à luz do Cânon das
Escrituras, isto é, da Bíblia enquanto recebida como norma de fé por uma
comunidade de fiéis. Ela procura situar cada texto no interior do único
desígnio de Deus, com o objetivo de chegar a uma
atualização da Escritura para
o nosso tempo. Ela não pretende substituir o método histórico-crítico, mas
deseja complementá-lo.
Dois pontos de vista diferentes foram propostos: Brevard S. Childs
centraliza seu interesse sobre a forma canônica final do texto (livro ou
coleção), forma aceita pela comunidade como tendo autoridade para expressar sua
fé e dirigir sua vida.
Mais do que sobre a forma final e estabilizada do texto, James A.
Sanders coloca sua atenção sobre o « processo canônico » ou desenvolvimento
progressivo das Escrituras às quais a comunidade dos fiéis reconheceu uma
autoridade normativa. O estudo crítico deste processo examina como as antigas
tradições foram reutilizadas em novos contextos antes de constituir um todo ao
mesmo tempo estável e adaptado, coerente e fazendo união de dados divergentes,
do qual a comunidade de fé tira sua identidade. Procedimentos hermenêuticos
foram acionados no decorrer desse processo e o são ainda após a fixação do
Cânon; eles são muitas vezes do gênero do Midrashim, servindo para atualizar o
texto bíblico Eles favorecem uma constante interação entre a comunidade e sua
Escrituras, fazendo apelo a uma interpretação que visa torna contemporânea a
tradição.
A abordagem canônica reage com razão contra a valorização exagerada
daquilo que é supostamente original e primitivo, como se somente isso fosse
autêntico. A Escritura inspirada é a Escritura tal como a Igreja a reconheceu
como regra de sua fé. Pode-se insistir a esse respeito, seja sobre a forma
final na qual se encontra atualmente cada um dos livros, seja sobre o conjunto
que eles constituem como Cânon. Um livro torna-se bíblico somente à luz do
Cânon inteiro.
A comunidade dos fiéis é efetivamente o contexto adequado para a
interpretação dos textos canônicos. A fé e o Espírito Santo enriquecem a
exegese; a autoridade eclesial, que se exerce a serviço da comunidade, deve
velar para que a interpretação permaneça fiel à grande Tradição que produziu os
textos (cf Dei
Verbum, 10).
A abordagem canônica encontra-se às voltas com mais de um problema,
sobretudo quando ela procura definir o «processo canônico». A partir de
quando pode-se dizer que um texto é canônico? Parece admissível dizer: desde
que a comunidade atribui a um texto uma autoridade normativa, mesmo antes da
fixação definitiva desse texto.
Pode-se falar de uma hermenêutica « canônica »
desde que a repetição das tradições, que se efetua levando-se em conta os
aspectos novos da situação (religiosa, cultural, teológica), mantém a
identidade da mensagem. Mas apresenta-se uma questão: o processo de
interpretação que conduziu à formação do Cânon deve ele ser reconhecido como
regra de interpretação da Escritura até nossos dias?
De outro lado, as relações complexas entre o Cânon judaico das
Escrituras e o Cânon cristão suscitam numerosos problemas para a interpretação.
A Igreja cristã recebeu como «Antigo Testamento» os escritos que tinham
autoridade na comunidade judaica helenística, mas alguns deles estão ausentes
da Bíblia hebraica ou se apresentam sob uma forma diferente. O corpus é,
então, diferente. Por isso a interpretação canônica não pode ser idêntica, pois
o texto deve ser lido em relação com o conjunto do corpus. Mas
sobretudo, a Igreja lê o Antigo Testamento à luz do acontecimento pascal —
morte e ressurreição de Cristo Jesus — que traz uma radical novidade e dá, com
uma autoridade soberana, um sentido decisivo e definitivo às Escrituras
(cf Dei
Verbum, 4).
Esta nova determinação de sentido faz parte integrante da fé
cristã. Ela não deve, portanto, tirar toda consistência à interpretação
canônica anterior, aquela que precedeu a Páscoa cristã, pois é preciso
respeitar cada etapa da história da salvação. Esvaziar da sus substância o
Antigo Testamento seria privar o Novo Testamento de sua raiz na história.
2. Abordagem com recurso às tradições judaicas de interpretação
O Antigo Testamento tomou sua forma final no judaísmo dos quatro ou
cinco últimos séculos que precederam a era cristã. Esse judaísmo foi também o
ambiente de origem do Novo Testamento e da Igreja nascente. Numerosos estudos
de história judaica antiga e principalmente as pesquisas suscitadas pelas
descobertas de Qumrân colocaram em relevo a complexidade do mundo judeu, em
terra de Israel e na diáspora, ao longo deste período.
É neste mundo que começou a interpretação da Escritura. Um dos mais
antigos testemunhos de interpretação judaica da Bíblia é a tradução grega dos
Setenta. Os Targumim aramaicos constituem um outro testemunho do mesmo esforço,
que continuou até nossos dias, acumulando uma soma prodigiosa de procedimentos
sábios. Para a conservação do texto do Antigo Testamento e para a explicação do
sentido dos textos bíblicos. Em todos os tempos, os melhores exegetas cristãos,
desde Orígenes e são Jerônimo, procuraram tirar proveito da erudição judaica
para uma melhor inteligência da Escritura. Numerosos exegetas modernos seguem
esse exemplo.
As tradições judaicas antigas permitem particularmente conhecer melhor a
Bíblia judaica dos Setenta, que em seguida tornou-se a primeira parte da Bíblia
cristã durante pelo menos os quatro primeiros séculos da Igreja, e no Oriente
até nossos dias. A literatura judaica extra canônica, chamada apócrifa ou intertestamentária,
abundante e diversificada, é uma fonte importante para a interpretação do Novo
Testamento. Os procedimentos variados de exegese praticados pelo judaísmo das
diferentes tendências reencontram-se no próprio Antigo Testamento, por exemplo
nas Crônicas em relação aos Livros dos Reis, e no Novo Testamento, por exemplo,
em certos raciocínios escriturísticos de são Paulo. A diversidade das formas (parábolas,
alegorias, antologia e florilégios, releituras, pesher, comparações
entre textos distantes, salmos e hinos, visões, revelações e sonhos,
composições sapienciais) é comum ao Antigo e ao Novo Testamento assim como à
literatura de todos os ambientes judaicos antes e após o tempo de Jesus. Os
Targumim e os Midrashim representam a homilética e a interpretação bíblica de
grandes setores do judaísmo dos primeiros séculos.
Além disso, numerosos exegetas do Antigo Testamento pedem aos
comentadores, gramáticos e lexicógrafos judeus medievais e mais recentes, luzes
para a inteligência de passagens obscuras ou de palavras raras e únicas. Mais
freqüentes que antigamente, aparecem hoje referências a essas obras judaicas na
discussão exegética.
A riqueza da erudição judaica colocada a serviço da Bíblia, desde suas
origens na antiguidade até nossos dias, é uma ajuda muito valiosa para o
exegeta dos dois Testamentos, à condição, no entanto, de empregá-la com
conhecimento de causa. O judaísmo antigo era de uma grande diversidade. A forma
farisaica, que prevaleceu em seguida no rabinismo, não era a única. Os textos
judeus antigos se escalonam por vários séculos; é importante situá-los
cronologicamente antes de fazer comparações.
Sobretudo, o quadro geral das
comunidades judaicas e cristãs é fundamentalmente diferente: do lado judeu,
segundo formas muito variadas, trata-se de uma religião que define um povo e
uma prática de vida a partir de um escrito revelado e de uma tradição oral,
enquanto que do lado cristão é a fé ao Senhor Jesus, morto, ressuscitado e
doravante vivo, Messias e Filho de Deus, que reúne uma comunidade. Esses dois
pontos de partida criam, para a interpretação das Escrituras, dois contextos
que, apesar de muitos contatos e semelhanças, são radicalmente diferentes.
3. Abordagem através da história dos efeitos do texto
Esta abordagem apoia-se sobre dois princípios: a) um
texto torna-se uma obra literária somente se ele encontra leitores que lhe dão
vida apropriando-se dele; b) essa apropriação do texto, que
pode se efetuar de maneira individual ou comunitária e toma forma em diferentes
domínios (literário, artístico, teológico, ascético e místico), contribui a
fazer compreender melhor o texto em si.
Sem ser totalmente desconhecida da antiguidade, esta abordagem se
desenvolveu entre 1960 e 1970 nos estudos literários, logo que a crítica se
interessou pelas relações entre o texto e seus leitores. A exegese bíblica só
podia obter benefícios com esta pesquisa, ainda mais que a hermenêutica
filosófica afirmava por seu lado a necessária distância entre a obra e seu
autor, assim como entre a obra e seus leitores. Nesta perspectiva, começou-se a
fazer entrar no trabalho de interpretação a história do efeito provocado por um
livro ou uma passagem da Escritura («Wirkungsgeschichte»).
Esforça-se em
medir a evolução da interpretação no decorrer do tempo em função das
preocupações dos leitores e em avaliar a importância do papel da tradição para
iluminar o sentido dos textos bíblicos.
Colocar-se em presença do texto e de seus leitores suscita uma dinâmica,
pois o texto exerce uma irradiação e provoca reações. Ele faz ressoar um apelo,
que é ouvido pelos leitores individualmente ou em grupos. O leitor, aliás, não
é nunca um sujeito isolado.
Ele pertence a um espaço social e se situa em uma
tradição. Ele vem ao texto com suas questões, opera uma seleção, propõe uma
interpretação e, finalmente, ele pode criar uma outra obra ou tomar iniciativas
que se inspiram diretamente na sua leitura da Escritura.
Os exemplos de uma tal abordagem já são numerosos. A história da leitura
do Cântico dos Cânticos oferece um excelente testemunho disso; ela mostra como
esse livro foi recebido na época dos Padres da Igreja, no ambiente monástico
latino da Idade Média ou ainda por um místico como são João da Cruz; assim ele
permite melhor descobrir todas as dimensões do sentido deste escrito. Da mesma
maneira no Novo Testamento é possível e útil esclarecer o sentido de uma
pericope (por exemplo, aquela do jovem rico em Mt 19,16-26)
mostrando sua fecundidade no curso da história da Igreja.
Mas a história atesta também a existência de correntes de interpretação
tendenciosas e falsas, com efeitos nefastos, levando, por exemplo, ao antissemitismo
ou a outras discriminações raciais ou ainda a ilusões milenaristas. Vê-se por
isso que esta abordagem não pode ser uma disciplina autônoma. Um discernimento
é necessário.
Deve-se evitar o privilégio de um ou outro momento da história
dos efeitos de um texto para fazer dele a única regra de sua interpretação.
D. Abordagens através das ciências humanas
Para se comunicar, a Palavra de Deus se enraizou na vida de grupos
humanos (cf Ecle 24,12) e ela traçou a si mesma um caminho
através dos condicionamentos psicológicos das diversas pessoas que compuseram
os escritos bíblicos. Resulta disso que as ciências humanas — em particular a
sociologia, a antropologia e a psicologia — podem contribuir a uma compreensão
melhor de certos aspectos dos textos. Convém, no entanto, notar que existem
várias escolas, com divergências notáveis sobre a própria natureza dessas
ciências. Dito isto, um bom número de exegetas tirou recentemente proveito
desse gênero de pesquisas.
1. Abordagem sociológica
Os textos religiosos estão unidos por uma conexão de relação recíproca
com as sociedades nas quais eles nascem. Esta constatação vale evidentemente
para os textos bíblicos. Consequentemente, o estudo crítico da Bíblia necessita
um conhecimento tão exato quanto possível dos comportamentos sociais que
caracterizam os diversos ambientes nos quais as tradições bíblicas se formaram.
Esse gênero de informação sócio histórica deve ser completado por uma
explicação sociológica correta, que interprete cientificamente, em cada caso, o
alcance das condições sociais de existência.
Na história da exegese, o ponto de vista sociológico encontrou seu lugar
há muito tempo. A atenção que a «Formgeschichte» deu ao ambiente de origem
dos textos («Sitz im Leben») é um testemunho disso: reconhece-se que as
tradições bíblicas levam a marca dos ambientes socioculturais que as
transmitiram. No primeiro terço do século XX a Escola de Chicago estudou a
situação sócio histórica da cristandade primitiva, dando assim à crítica
histórica um impulso apreciável nesta direção. Não decorrer dos vinte últimos
anos (1970-1990), a abordagem sociológica dos textos bíblicos tornou-se parte
integrante da exegese.
Numerosas são as questões feitas a esse respeito à exegese do Antigo
Testamento. Deve-se perguntar, por exemplo, quais são as diversas formas de
organização social e religiosa que Israel conheceu no decorrer de sua história.
Para o período anterior à formação de um Estado, o modelo etnológico de uma
sociedade acéfala segmentária forneceu uma base de partida suficiente? Como se
passou de uma liga de tribos, sem grande coesão, a um Estado organizado em
monarquia e, de lá, a uma comunidade baseada simplesmente sobre as ligações
religiosas e genealógicas? Quais transformações econômicas, militares e outras
foram provocadas na estrutura da sociedade pelo movimento de centralização política
e religiosa que conduziu à monarquia? O estudo das normas de comportamento no
Antigo Oriente e em Israel não contribui com mais eficácia à inteligência do
Decálogo do que as tentativas puramente literárias de reconstrução de um texto
primitivo?
Para a exegese do Novo Testamento, as questões são evidentemente
diferentes. Citemos algumas delas: para explicar o gênero de vida adotado antes
da Páscoa por Jesus e seus discípulos, qual valor pode-se dar à teoria de um
movimento de carismáticos itinerantes, vivendo sem domicilio, nem família, nem
bens? Foi mantida uma relação de continuidade, baseada sobre o chamado de Jesus
a segui-lo, entre a atitude de desprendimento radical adotado por Jesus e
aquela do movimento cristão após a Páscoa, nos mais diversos ambientes da
cristandade primitiva? O que sabemos da estrutura social das comunidades
paulinas, levando-se em conta, em cada caso, a cultura urbana correspondente?
Geralmente a abordagem sociológica dá uma abertura maior ao trabalho
exegético e comporta muitos aspectos positivos. O conhecimento dos dados
sociológicos que contribuem a fazer compreender o funcionamento econômico,
cultural e religioso do mundo bíblico é indispensável à crítica histórica. A
tarefa da exegese, de bem compreender o testemunho de fé da Igreja apostólica,
não pode ser levada a termo de maneira rigorosa sem uma pesquisa científica que
estude os estreitos relacionamentos dos textos do Novo Testamento com a
vivência social da Igreja primitiva. A utilização dos modelos fornecidos pela ciência
sociológica assegura às pesquisas dos historiadores das épocas bíblicas uma
notável capacidade de renovação, mas é preciso, naturalmente, que os modelos
sejam modificados em função da realidade estudada.
É o caso aqui de assinalar alguns riscos que a abordagem sociológica faz
correr a exegese. Efetivamente, se o trabalho da sociologia consiste em estudar
as sociedades vivas, é previsível encontrar algumas dificuldades logo que se
quer aplicar seus métodos a ambientes históricos que pertençam a um passado
longínquo. Os textos bíblicos e extra bíblicos não fornecem forçosamente uma
documentação suficiente para dar uma visão de conjunto da sociedade da época.
Aliás, o método sociológico tende a dar mais atenção aos aspectos econômicos e
institucionais da existência humana do que às suas dimensões pessoais e
religiosas.
2. Abordagem através da antropologia cultural
A abordagem dos textos bíblicos que utiliza as pesquisas de antropologia
cultural está em ligação estreita com a abordagem sociológica. A distinção
dessas duas abordagens situa-se ao mesmo tempo a nível da sensibilidade, do
método e dos aspectos da realidade que retêm a atenção. Enquanto que a
abordagem sociológica — acabamos de dizê-lo — estuda sobretudo os aspectos
econômicos e institucionais, a abordagem antropológica interessa-se por um
vasto conjunto de outros aspectos que se refletem na linguagem, arte, religião,
mas também nos vestuários, ornamentos, festas, danças, mitos, lendas e tudo o
que concerne a etnografia.
Geralmente a antropologia cultural procura definir as características
dos diferentes tipos de homens no ambiente social deles — como por exemplo, o
homem mediterrânico — com tudo o que isso implica de estudo do ambiente rural
ou urbano e de atenção voltada aos valores reconhecidos pela sociedade (honra e
desonra, segredo, fidelidade, tradição, gênero de educação e de escolas), à
maneira pela qual se exerce o controle social, às idéias que se tem da família,
da casa, do parentesco, à situação da mulher, dos binômios institucionais (patrão-cliente,
proprietário-locatário, benfeitor-beneficiário, homem livre-escravo), sem
esquecer a concepção do sagrado e do profano, os tabus, o ritual de passagem de
uma situação a uma outra, a magia, a origem dos recursos, do poder, da
informação, etc.
Tendo-se por base esses diversos elementos, constitui-se tipologias e «modelos» comuns a várias culturas.
Esse gênero de estudos pode evidentemente ser útil para a interpretação
dos textos bíblicos e ele é efetivamente utilizado para o estudo das concepções
de parentesco no Antigo Testamento, a posição da mulher na sociedade israelita,
a influência dos ritos agrários, etc. Nos textos que relatam o ensinamento de
Jesus, por exemplo as parábolas, muitos detalhes podem ser esclarecidos graças
a essa abordagem. Ocorre o mesmo para as concepções fundamentais, como aquela
do reino de Deus, ou para a maneira de conceber o tempo na história da
salvação, assim como para os processos de aglutinação das comunidades
primitivas. Esta abordagem permite distinguir melhor os elementos permanentes
da mensagem bíblica cujo fundamento está na natureza humana, e as determinações
contingentes segundo culturas particulares. Todavia, não mais que outras
abordagens particulares, esta não está em si à altura de levar em conta as contribuições
específicas da revelação. Convém estar ciente disso no momento de apreciar o
alcance de seus resultados.
3. Abordagens psicológicas e psicanalíticas
Psicologia e teologia não cessaram jamais de estar em diálogo uma com a
outra. A extensão moderna das pesquisas psicológicas ao estudo das estruturas
dinâmicas do inconsciente suscitou novas tentativas de interpretação dos textos
antigos, e assim também da Bíblia. Obras inteiras foram consagradas à
interpretação psicanalítica de textos bíblicos. Vivas discussões seguiram-nas:
em qual medida e em quais condições as pesquisas psicológicas e psicanalíticas
podem contribuir para uma compreensão mais profunda da Santa Escritura?
Os estudos de psicologia e de psicanálise trazem à exegese bíblica um
enriquecimento, pois, graças a eles os textos da Bíblia podem ser melhor
entendidos enquanto experiências de vida e regras de comportamento. A religião,
sabe-se, é sempre em uma situação de debate com o inconsciente. Ela participa,
em uma larga medida, à correta orientação das pulsões humanas. As etapas que a
crítica histórica percorre metodicamente precisam ser complementadas por um
estudo dos diversos níveis da realidade expressa nos textos. A psicologia e a
psicanálise esforçam-se em avançar nesta direção. Elas abrem a via para uma
compreensão pluridimensional da Escritura, e elas ajudam a decifrar a linguagem
humana da revelação.
A psicologia e, de outra maneira, a psicanálise deram particularmente
uma nova compreensão do símbolo. A linguagem simbólica permite exprimir zonas
da experiência religiosa que não são acessíveis ao raciocínio puramente
conceitual, mas têm valor para a questão da verdade. É por isso que um estudo
interdisciplinar conduzido em comum por exegetas e psicólogos ou psicanalistas
apresenta vantagens certas, fundadas objetivamente e confirmadas na pastoral.
Numerosos exemplos podem ser citados, que mostram a necessidade de um
esforço comum dos exegetas e dos psicólogos: para esclarecer o sentido dos
ritos do culto, dos sacrifícios, dos interditos, para explicar a linguagem
cheia de imagens da Bíblia, o alcance metafórico dos relatos de milagres, a
força dramática das visões e audições apocalípticas. Não se trata simplesmente
de descrever a linguagem simbólica da Bíblia, mas apreender sua função de
revelação e de interpelação: a realidade « luminosa » de Deus entra aqui em
contato com o homem.
O diálogo entre exegese e psicologia ou psicanálise em vista de uma
compreensão melhor da Bíblia deve evidentemente ser crítico e respeitar as
fronteiras de cada disciplina. Em todo caso, uma psicologia ou uma psicanálise
que fosse atéia se tornaria incapaz de considerar os dados da fé. Úteis para
definir a extensão da responsabilidade humana, psicologia e psicanálise não
devem eliminar a realidade do pecado e da salvação. Deve-se, aliás, evitar de
confundir religiosidade espontânea e revelação bíblica ou de prejudicar o
caráter histórico da mensagem da Bíblia, que lhe assegura um valor de
acontecimento único.
Notemos ainda que não se pode falar da «exegese psicanalítica» como se
houvesse apenas uma. Existe, em realidade, provenientes de diversos domínios da
psicologia e das diversas escolas, uma grande variedade de conhecimentos
suscetíveis de contribuir à interpretação humana e teológica da Bíblia. Considerar
absoluta uma ou outra posição de uma das escolas não favorece a fecundidade do
esforço comum, ao contrário lhe e nocivo.
As ciências humanas não se reduzem à sociologia, à antropologia cultural
e à psicologia. Outras disciplinas podem também ser úteis para a interpretação
da Bíblia. Em todos esses domínios é preciso respeitar as competências e
reconhecer que é pouco freqüente que uma mesma pessoa seja ao mesmo tempo
qualificada em exegese e em uma ou outra das ciências humanas.
E. Abordagens contextuais
A interpretação de um texto é sempre dependente da mentalidade e das
preocupações de seus leitores. Estes últimos dão uma atenção privilegiada a
certos aspectos e, sem mesmo pensar, negligenciam outros. É então inevitável
que exegetas adotem, em seus trabalhos, novos pontos de vista que correspondam
a correntes de pensamento contemporâneas que não obtiveram, até aqui, uma
importância suficiente. Convém que eles o faça m com discernimento crítico.
Atualmente os movimentos de libertação e o feminismo retêm particularmente a
atenção.
1. Abordagem da libertação
A teologia da libertação é um fenômeno complexo que é preciso não
simplificar indevidamente. Como movimento teológico ele se consolida no início
dos anos 70. Seu ponto de partida, além das circunstâncias econômicas, sociais
e políticas dos países da América Latina, encontra-se em dois grandes
acontecimentos eclesiais: o Concilio Vaticano II, com sua vontade declarada
de aggiornamento e de orientação do trabalho pastoral da
Igreja em direção às necessidades do mundo atual, e a 2ª Assembléia plenária do
CELAM (Conselho Episcopal Latino-americano) em Medellin em 1968, que aplicou os
ensinamentos do Concilio às necessidades da América Latina. O movimento se
propagou também em outras partes do mundo (África, Ásia, população negra dos
Estados Unidos).
É difícil discernir se existe « uma » teologia da libertação e definir
seu método. É tão difícil quanto determinar adequadamente sua maneira de ler a
Bíblia para indicar em seguida as contribuições e os limites. Pode-se dizer que
ela não adota um método especial. Mas, partindo de pontos de vista socioculturais
e políticos próprios, ela pratica uma leitura bíblica orientada em função das
necessidades do povo, que procura na Bíblia o alimento da sua fé e da sua vida.
Ao invés de se contentar com uma interpretação objetivante, que se
concentra sobre aquilo que diz o texto em seu contexto de origem, procura-se
uma leitura que nasça da situação vivida pelo povo. Se este último vive em
circunstâncias de opressão, é preciso recorrer à Bíblia para nela procurar o
alimento capaz de sustentá-lo em suas lutas e suas esperanças. A realidade
presente não deve ser ignorada, mas, ao contrário, afrontada em vista de
iluminá-la à luz da Palavra. Desta luz resultará a práxis cristã autêntica,
tendendo à transformação da sociedade por meio da justiça e do amor. Na fé, a
Escritura se transforma em fator de dinamismo de libertação integral.
Os princípios são os seguintes:
Deus está presente na história de seu povo para salvá-lo. Ele é o Deus
dos pobres, que não pode tolerar a opressão nem a injustiça.
É por isso que a exegese não pode ser neutra, mas deve tomar partido
pelos pobres no seguimento de Deus, e engajar-se no combate pela libertação dos
oprimidos.
A participação a esse combate permite, precisamente, de fazer aparecer
sentidos que se descobrem somente quando os textos bíblicos são lidos em um
contexto de solidariedade efetiva com os oprimidos.
Como a libertação dos oprimidos é um processo coletivo, a comunidade dos
pobres é a melhor destinatária para receber a Bíblia como palavra de
libertação. Além disso, os textos bíblicos tendo sido escritos para
comunidades, é a comunidades que em primeiro lugar a leitura da Bíblia é
confiada. A Palavra de Deus é plenamente atual, graças sobretudo à capacidade
que possuem os «acontecimentos fundadores» (a saída do Egito, a paixão e a
ressurreição de Jesus) de suscitar novas realizações no curso da história.
A teologia da libertação compreende elementos cujo valor é indubitável:
o sentido profundo da presença de Deus que salva; a insistência sobre a
dimensão comunitária da fé; a urgência de uma práxis libertadora enraizada na
justiça e no amor; uma releitura da Bíblia que procura fazer da Palavra de Deus
a luz e o alimento do povo de Deus em meio a suas lutas e suas esperanças.
Assim é sublinhada a plena atualidade do texto inspirado.
Mas a leitura tão engajada da Bíblia comporta riscos. Como ela é ligada
a um movimento em plena evolução, as observações que seguem não podem que ser
provisórias.
Essa leitura se concentra sobre textos narrativos e proféticos que
iluminam situações de opressão e que inspiram uma práxis tendendo a uma mudança
social: aqui ou lá ela pôde ser parcial, não dando tanta atenção a outros
textos da Bíblia. É certo que a exegese não pode ser neutra, mas ela deve
também evitar de ser unilateral. Aliás, o engajamento social e político não é a
tarefa direta do exegeta.
Querendo inserir a mensagem bíblica no contexto sócio-político, teólogos
e exegetas foram levados ao recurso de instrumentos de análise da realidade
social. Nesta perspectiva, algumas correntes da teologia da libertação fizeram
uma análise inspirada em doutrinas materialistas e é nesse quadro também que
elas leram a Bíblia, o que não deixou de provocar questões, notadamente no que
concerne o princípio marxista da luta de classes.
Sob a pressão de enormes problemas sociais, o acento foi colocado
principalmente sobre uma escatologia terrestre, muitas vezes em detrimento da
dimensão escatológica transcendente da Escritura.
As mudanças sociais e políticas conduzem esta abordagem a se propor
novas questões e a procurar novas orientações. Para seu desenvolvimento
ulterior e sua fecundidade na Igreja, um fator decisivo será o esclarecimento
de seus pressupostos hermenêuticos, de seus métodos e de sua coerência com a fé
e a Tradição do conjunto da Igreja.
2. Abordagem feminista
A hermenêutica bíblica feminista nasceu por volta do fim do século XIX
nos Estados Unidos, no contexto sociocultural da luta pelos direitos da mulher,
com o comitê de revisão da Bíblia. Este último produziu o «The Woman's Bible»
em dois volumes (New York 1885, 1898). Esta corrente se manifestou com grande
vigor e teve um enorme desenvolvimento a partir dos anos '70, em ligação com o
movimento de libertação da mulher, sobretudo na América do Norte. Melhor
dizendo, deve-se distinguir várias hermenêuticas bíblicas feministas, pois as
abordagens utilizadas são muito diversas. A unidade delas provém do tema comum,
isto é a mulher, e do fim perseguido: a libertação da mulher e a conquista de
direitos iguais aos do homem.
Deve-se mencionar aqui três formas principais da hermenêutica bíblica
feminista: a forma radical, a forma neo-ortodoxa e a forma crítica.
A forma radical recusa completamente a autoridade da Bíblia,
dizendo que ela foi produzida por homens em vista de assegurar a dominação do
homem sobre a mulher (androcentrismo).
A forma neo-ortodoxa aceita a Bíblia como profecia e
suscetível de servir, na medida em que ela toma partido pelos fracos e assim
também pela mulher; esta orientação é adotada como « cânon no cânon », para
colocar em relevo tudo aquilo que é em favor da libertação da mulher e de seus
direitos.
A forma crítica utiliza uma metodologia sutil e procura
redescobrir a posição e o papel da mulher cristã no movimento de Jesus e nas
Igrejas paulinas. Naquela época ter-se-ia adotado o igualitarismo. Mas esta
situação teria sido mascarada, em grande parte, nos escritos do Novo Testamento
e ainda mais na sua sequência, tendo progressivamente prevalecido o
patriarcalismo e o androcentrismo.
A hermenêutica feminista não elaborou um método novo. Ela se serve dos
métodos correntes em exegese, especialmente o método histórico-crítico. Mas ela
acrescenta dois critérios de investigação.
O primeiro é o critério feminista, tomado do movimento de libertação da
mulher, na linha do movimento mais geral da teologia da libertação. Ele utiliza
uma hermenêutica da suspeita: tendo a história sido regularmente escrita pelos
vencedores, para encontrar a verdade não se deve confiar nos textos, mas
procurar neles indícios que revelem outra coisa.
O segundo critério é sociológico; ele se baseia no estudo das sociedades
dos tempos bíblicos, de sua estratificação social e da posição que a mulher
ocupava.
No que concerne os escritos neo-testamentários, o objeto do estudo, em
definitivo, não é a concepção da mulher expressa no Novo Testamento, mas a
reconstrução histórica de duas situações diferentes da mulher no primeiro
século: aquela que era habitual na sociedade judaica e greco-romana e a outra,
inovadora, instituída no movimento de Jesus e nas Igrejas paulinas, onde
teria se formado «uma comunidade de discípulos de Jesus, todos iguais». Um
dos apoios invocados para sustentar esta visão das coisas é o texto de Gal 3,28.
O objetivo é redescobrir para o presente a história esquecida do papel da
mulher na Igreja das origens.
Numerosas são as contribuições positivas que provêm da exegese
feminista. As mulheres tomaram assim uma parte mais ativa na pesquisa
exegética. Elas conseguiram, muitas vezes melhor do que os homens, perceber a
presença, o significado e o papel da mulher na Bíblia, na história das origens
cristãs e na Igreja. O horizonte cultural moderno, graças à sua maior atenção à
dignidade da mulher e ao papel dela na sociedade e na Igreja, faz com que sejam
dirigidas ao texto bíblico interrogações novas, ocasiões de novas descobertas.
A sensibilidade feminina leva a revelar e a corrigir certas interpretações
correntes, que eram tendenciosas e visavam justificar a dominação do homem,
sobre a mulher.
No que concerne o Antigo Testamento, vários estudos esforçaram-se de
chegar a uma compreensão melhor da imagem de Deus. O Deus da Bíblia não é
projeção de uma mentalidade patriarcal. Ele é Pai, mas ele é também Deus de
ternura e de amor maternais.
Na medida em que a exegese feminista se fundamenta sobre uma idéia
preconcebida, ela se expõe a interpretar os textos bíblicos de maneira
tendenciosa e, portanto, contestável. Para provar suas teses ela deve muitas
vezes, na falta de melhor, recorrer a argumentos ex silentio. É
sabido que estes são geralmente duvidosos; eles não podem nunca bastar para
estabelecer solidamente uma conclusão. De outro lado, a tentativa feita para
reconstituir, graças a indícios fugitivos discernidos nos textos, uma situação
histórica que esses mesmos textos pretendem querer esconder, não corresponde
mais a um trabalho de exegese propriamente dito, pois ela conduz à rejeição dos
textos inspirados preferindo uma construção hipotética diferente.
A exegese feminista propõe muitas vezes questões de poder na Igreja que
são, sabe-se, objeto de discussões e mesmo de confrontos. Nesse domínio, a
exegese feminista só poderá ser útil à Igreja na medida em que ela não cair nas
armadilhas mesmas que denuncia e quando ela não perder de vista o ensinamento
evangélico sobre o poder como serviço, ensinamento endereçado por Jesus a todos
os seus discípulos, homens e mulheres. (2)
F. Leitura fundamentalista
A leitura fundamentalista parte do princípio de que a Bíblia, sendo Palavra
de Deus inspirada e isenta de erro, deve ser lida e interpretada literalmente
em todos os seus detalhes. Mas por « interpretação literal » ela entende uma
interpretação primária, literalista, isto é, excluindo todo esforço de
compreensão da Bíblia que leve em conta seu crescimento histórico e seu
desenvolvimento. Ela se opõe assim à utilização do método histórico-crítico,
como de qualquer outro método científico, para a interpretação da Escritura.
A leitura fundamentalista teve sua origem na época da Reforma, com uma
preocupação de fidelidade ao sentido literal da Escritura. Após o século das
Luzes, ela se apresentou no protestantismo como uma proteção contra a exegese
liberal. O termo «fundamentalista» é ligado diretamente ao Congresso Bíblico
Americano realizado em Niágara, Estado de New York, em 1895. Os exegetas
protestantes conservadores definiram nele «cinco pontos de fundamentalismo»:
a inerrância verbal da Escritura, a divindade de Cristo, seu nascimento
virginal, a doutrina da expiação vicária e a ressurreição corporal quando da
segunda vinda de Cristo. Logo que a leitura fundamentalista da Bíblia se
propagou em outras partes do mundo ela fez nascer outras espécies de leituras,
igualmente « literalistas », na Europa, Ásia, África e América do Sul. Esse
gênero de leitura encontra cada vez mais adeptos, no decorrer da última parte
do século XX, em grupos religiosos e seitas assim como também entre os
católicos.
Se bem que o fundamentalismo tenha razão em insistir sobre a inspiração
divina da Bíblia, a inerrância da Palavra de Deus e as outras verdades bíblicas
inclusas nos cinco pontos fundamentais, sua maneira de apresentar essas
verdades está enraizada em uma ideologia que não é bíblica, apesar do que dizem
seus representantes. Ela exige uma forte adesão a atitudes doutrinárias rígidas
e impõe, como fonte única de ensinamento a respeito da vida cristã e da
salvação, uma leitura da Bíblia que recusa todo questionamento e toda pesquisa
crítica.
O problema de base dessa leitura fundamentalista é que recusando de
levar em consideração o caráter histórico da revelação bíblica, ela se torna
incapaz de aceitar plenamente a verdade da própria Encarnação. O
fundamentalismo foge da estreita relação do divino e do humano no
relacionamento com Deus. Ele se recusa em admitir que a Palavra de Deus
inspirada foi expressa em linguagem humana e que ela foi redigida, sob a
inspiração divina, por autores humanos cujas capacidades e recursos eram
limitados. Por esta razão, ele tende a tratar o texto bíblico como se ele
tivesse sido ditado palavra por palavra pelo Espírito e não chega a reconhecer
que a Palavra de Deus foi formulada em uma linguagem e uma fraseologia
condicionadas por uma ou outra época. Ele não dá nenhuma atenção às formas
literárias e às maneiras humanas de pensar presentes nos textos bíblicos,
muitos dos quais são fruto de uma elaboração que se estendeu por longos
períodos de tempo e leva a marca de situações históricas muito diversas.
O fundamentalismo insiste também de uma maneira indevida sobre a
inerrância dos detalhes nos textos bíblicos, especialmente em matéria de fatos
históricos ou de pretensas verdades científicas. Muitas vezes ele torna
histórico aquilo que não tinha a pretensão de historicidade, pois ele considera
como histórico tudo aquilo que é reportado ou contado com os verbos em um tempo
passado, sem a necessária atenção à possibilidade de um sentido simbólico ou
figurativo.
O fundamentalismo tem muitas vezes tendência a ignorar ou a negar os
problemas que o texto bíblico comporta na sua formulação hebraica, aramaica ou
grega. Ele é muitas vezes estreitamente ligado a uma tradição determinada,
antiga ou moderna. Ele se omite igualmente de considerar as « releituras » de
certas passagens no interior da própria Bíblia.
No que concerne os Evangelhos, o fundamentalismo não leva em
consideração o crescimento da tradição evangélica, mas confunde ingenuamente o
estágio final desta tradição (o que os evangelistas escreveram) com o estágio
inicial (as ações e as palavras do Jesus da história). Ele negligencia assim um
dado importante: a maneira com a qual as próprias primeiras comunidades cristãs
compreenderam o impacto produzido por Jesus de Nazaré e sua mensagem. Ora, aqui
está um testemunho da origem apostólica da fé cristã e sua expressão direta. O
fundamentalismo desnatura assim o apelo lançado pelo próprio Evangelho.
O fundamentalismo tem igualmente tendência a uma grande estreiteza de
visão, pois ele considera conforme à realidade uma antiga cosmologia já
ultrapassada, só porque encontra-se expressa na Bíblia; isso impede o diálogo
com uma concepção mais ampla das relações entre a cultura e a fé. Ele se apóia
sobre uma leitura não-crítica de certos textos da Bíblia para confirmar idéias
políticas e atitudes sociais marcadas por preconceitos, racistas, por exemplo,
simplesmente contrários ao Evangelho cristão.
Enfim, em sua adesão ao princípio do «sola Scriptura», o
fundamentalismo separa a interpretação da Bíblia da Tradição guiada pelo
Espírito, que se desenvolve autenticamente em ligação com a Escritura no seio
da comunidade de fé. Falta-lhe entender que o Novo Testamento tomou forma no
interior da Igreja cristã e que ele é Escritura Santa desta Igreja, cuja
existência precedeu a composição de seus textos.
Assim, o fundamentalismo é
muitas vezes ante eclesial; ele considera negligenciáveis os credos, os dogmas
e as práticas litúrgicas que se tornam parte da tradição eclesiástica, como
também a função de ensinamento da própria Igreja. Ele se apresenta como uma
forma de interpretação privada, que não reconhece que a Igreja é fundada sobre
a Bíblia e tira sua vida e sua inspiração das Escrituras.
A abordagem fundamentalista é perigosa, pois ela é atraente para as
pessoas que procuram respostas bíblicas para seus problemas da vida. Ela pode
enganá-las oferecendo-lhes interpretações piedosas mas ilusórias, ao invés de
lhes dizer que a Bíblia não contém necessariamente uma resposta imediata a cada
um desses problemas. O fundamentalismo convida, sem dizê-lo, a uma forma de
suicídio do pensamento. Ele coloca na vida uma falsa certeza, pois ele confunde
inconscientemente as limitações humanas da mensagem bíblica com a substancia
divina dessa mensagem.
II. QUESTÕES DE HERMENÊUTICA
A. Hermenêuticas filosóficas
A atividade da exegese é chamada a ser repensada levando-se em
consideração a hermenêutica filosófica contemporânea, que colocou em evidência
a implicação da subjetividade no conhecimento, especialmente no conhecimento
histórico. A reflexão hermenêutica teve nova força com a publicação dos trabalhos
de Friedrich Schleiermacher, Wilhelm Dilthey e, sobretudo, Martin Heidegger. Na
trilha destes filósofos, mas também se distanciando deles, diversos autores
aprofundaram a teoria hermenêutica contemporânea e suas aplicações à Escritura.
Entre eles mencionaremos especialmente Rudolf Bultmann, Hans Georg Gadamer e
Paul Ricceur. Não se pode aqui resumir-lhes o pensamento. Será suficiente
indicar algumas idéias centrais da filosofia deles, aquelas que têm uma
incidência sobre a interpretação dos textos bíblicos. (3)
1. Perspectivas modernas
Constatando a distância cultural entre o mundo do primeiro século e
aquele do século XX, e preocupado em obter que a realidade da qual trata a
Escritura fale ao homem contemporâneo, Bultmann insistiu na
pré-compreensão necessária a toda compreensão e elaborou a teoria da
interpretação existencial dos escritos do Novo Testamento. Apoiando-se no
pensamento de Heidegger, ele afirma que a exegese de um texto bíblico não é
possível sem pressupostos que dirigem a compreensão. A pré-compreensão («Vorverständnis») é fundamentada na relação vital («Lebensverhältnis») do
intérprete com a coisa da qual fala o texto. Para evitar o subjetivismo, é
preciso no entanto que a pré-compreensão se deixe aprofundar e enriquecer, até
mesmo se modificar e se corrigir, por aquilo do qual fala o texto.
Interrogando-se sobre a conceituação justa que definirá o questionamento
a partir do qual os textos da Escritura poderão ser entendidos pelo homem de
hoje, Bultmann pretende encontrar a resposta na analítica existencial de
Heidegger. Os existenciais heideggerianos teriam um alcance universal e
ofereceriam as estruturas e os conceitos mais apropriados para a compreensão da
existência humana revelada na mensagem do Novo Testamento.
Gadamer sublinha igualmente a distância histórica entre o texto e seu
intérprete. Ele retoma e desenvolve a teoria do círculo hermenêutico. As
antecipações e as preconcepções que marcam nossa compreensão provêm da tradição
que nos sustenta. Esta consiste em um conjunto de dados históricos e culturais,
que constituem nosso contexto vital, nosso horizonte de compreensão. O
intérprete deve entrar em diálogo com a realidade à qual se refere o texto. A
compreensão se opera na fusão dos horizontes diferentes do texto e de seu
leitor («Horizontverschmelzung»). Ela só é possível se há uma dependência («Zugehörigkeit»), isto é, uma afinidade fundamental entre o intérprete e seu
objeto. A hermenêutica é um processo dialético: a compreensão de um texto é
sempre uma compreensão mais ampla de si mesmo.
Do pensamento hermenêutico de Ricoeur retém-se primeiramente o relevo
dado à função de distanciação como condição necessária a uma justa apropriação
do texto. Uma primeira distância existe entre o texto e seu autor, pois, uma
vez produzido, o texto adquire uma certa autonomia em relação a seu autor; ele
começa uma carreira de sentidos. Uma outra distancia existe entre o texto e
seus leitores sucessivos; estes devem respeitar o mundo do texto em sua
alteridade. Os métodos de análise literária e histórica são assim necessários à
interpretação. No entanto, o sentido de um texto só pode ser dado plenamente se
ele é atualizado na vida de leitores que se apropriam dele. A partir da própria
situação, os leitores são chamados a realçar significados novos, na linha do
sentido fundamental indicado pelo texto. O conhecimento bíblico não deve se
fixar só na linguagem; ele procura atingir a realidade da qual fala o texto. A
linguagem religiosa da Bíblia é uma linguagem simbólica que « faz pensar », uma
linguagem da qual não se cessa de descobrir as riquezas de sentido, uma
linguagem que visa uma realidade transcendente e que, ao mesmo tempo, desperta
a pessoa humana à dimensão profunda de seu ser.
2. Utilidade para a exegese
O que dizer dessas teorias contemporâneas de interpretação dos textos? A
Bíblia é Palavra de Deus para todas as épocas que se sucedem. Consequentemente
não se poderia dispensar uma teoria hermenêutica que permite incorporar os
métodos de crítica literária e histórica em um modelo de interpretação mais
amplo. Trata-se de ultrapassar a distância entre o tempo dos autores e
primeiros destinatários dos textos bíblicos e nossa época contemporânea, de
modo a atualizar corretamente a mensagem dos textos para alimentar a vida de fé
dos cristãos. Toda exegese dos textos é chamada a ser completada por uma «
hermenêutica », no sentido recente do termo.
A necessidade de uma hermenêutica, isto é, de uma interpretação no hoje
do nosso mundo, encontra um fundamento na própria Bíblia e na história de sua interpretação.
O conjunto dos escritos do Antigo e do Novo Testamento apresenta-se como o
produto de um longo processo de reinterpretação dos acontecimentos fundadores,
ligado com a vida das comunidades de fiéis. Na tradição eclesial, os primeiros
intérpretes da Escritura, os Padres da Igreja, consideravam que a exegese que
faziam dos textos só era completa quando eles evidenciavam o sentido para os
cristãos do tempo deles e na situação em que viviam. Só se é fiel à
intencionalidade dos textos bíblicos na medida que se tenta reencontrar no
coração de sua formulação a realidade de fé que eles exprimem, e se esta se
liga à experiência dos fiéis do nosso mundo.
A hermenêutica contemporânea é uma reação sadia ao positivismo histórico
e à tentação de aplicar ao estudo da Bíblia os critérios de objetividade
utilizados nas ciências naturais. De um lado, os acontecimentos narrados na
Bíblia são acontecimentos interpretados. De outro lado, toda exegese dos
relatos desses acontecimentos implica necessariamente a subjetividade do
exegeta. O conhecimento justo do texto bíblico só é acessível àquele que tem
uma afinidade viva com aquilo do qual fala o texto. A pergunta que se faz a
todo intérprete é a seguinte: qual teoria hermenêutica torna possível a justa
apreensão da realidade profunda da qual fala a Escritura e sua expressão
significativa para o homem de hoje?
É preciso reconhecer, efetivamente, que certas teorias hermenêuticas são
inadequadas para interpretar a Escritura. Por exemplo, a interpretação
existencial de Bultmann conduz ao aprisionamento da mensagem cristã na argola
de uma filosofia particular. Além disso, em virtude dos pressupostos que
comandam esta hermenêutica, a mensagem religiosa da Bíblia é esvaziada em
grande parte de sua realidade objetiva (na sequência de uma excessiva «demitização») e tende a se subordinar a uma mensagem antropológica. A
filosofia torna-se norma de interpretação invés de ser instrumento de
compreensão daquilo que é o objeto central de toda interpretação: a pessoa de
Jesus Cristo e os acontecimentos da salvação realizados em nossa história. Uma
autêntica interpretação da Escritura é primeiramente acolhida de um sentido
dado nos acontecimentos e, de maneira suprema, na pessoa de Jesus Cristo.
Este sentido é expresso nos textos. Para evitar o subjetivismo, uma boa
atualização deve então ser fundada sobre o estudo do texto e os pressupostos de
leitura devem ser constantemente submetidos à verificação através do texto.
A hermenêutica bíblica, se ela é da competência da hermenêutica geral de
todo texto literário e histórico, é ao mesmo tempo um caso único dentro dela.
Suas características específicas vêm-lhe de seu objeto. Os acontecimentos da
salvação e sua realização na pessoa de Jesus Cristo dão sentido a toda a
história humana. As novas interpretações históricas só poderão ser descoberta e
desdobramento dessas riquezas de sentido. O relato bíblico desses
acontecimentos não pode ser plenamente entendido só pela razão. Pressupostos
particulares comandam sua interpretação, como a fé vivida na comunidade
eclesial e à luz do Espírito. Com o crescimento da vida no Espírito cresce, no
leitor, a compreensão das realidades das quais fala o texto bíblico.
B. Sentido da Escritura inspirada
A contribuição moderna das hermenêuticas filosóficas e os desenvolvimentos
recentes do estudo científico das literaturas, permitem à exegese bíblica de
aprofundar a compreensão de sua tarefa, cuja complexidade tornou-se mais
evidente. A exegese antiga, que evidentemente não podia levar em consideração
as exigências científicas modernas, atribuía a todo texto da Escritura sentidos
de vários níveis. A distinção mais corrente se fazia entre sentido literal e
sentido espiritual. A exegese medieval distinguiu no sentido espiritual três
aspectos diferentes que se relacionam, respectivamente, à verdade revelada, à
conduta a ser mantida e à realização final. Daí o célebre dístico de Agostinho
da Dinamarca (século XIII): «Littera gesta docet, quid credas allegoria,
moralis quid agas, quid speres anagogia».
Como reação a esta multiplicidade de sentidos, a exegese
histórico-crítica adotou, mais ou menos abertamente, a tese da unicidade de
sentidos, segundo a qual um texto não pode ter simultaneamente vários
significados. Todo esforço da exegese histórico-crítica é de definir «o»
sentido preciso de um ou outro texto bíblico nas circunstâncias de sua
produção.
Mas esta tese choca-se agora com as conclusões das ciências da linguagem
e das hermenêuticas filosóficas, que afirmam a polissemia dos textos escritos.
O problema não é simples e ele não se apresenta da mesma maneira para
todos os gêneros de textos: relatos históricos, parábolas, oráculos, leis,
provérbios, orações, hinos, etc. Pode-se, entretanto, dar alguns princípios
gerais, levando-se em conta a diversidade das opiniões.
1. Sentido literal
É não apenas legítimo mas indispensável procurar definir o sentido
preciso dos textos tais como foram produzidos por seus autores, sentido chamado
de « literal ». Já são Tomás de Aquino afirmava sua importância fundamental
( S. Th., I, q.l, a. 10, ad. 1).
O sentido literal não deve ser confundido com o sentido « literalista »
ao qual aderem os fundamentalistas. Não é suficiente traduzir um texto palavra
por palavra para obter seu sentido literal. É preciso compreendê-lo segundo as
convenções literárias da época. Quando um texto é metafórico, seu sentido
literal não é aquele que resulta imediatamente do palavra por palavra (por
exemplo: «Tende os rins cingidos», Lc 12,35), mas aquele que
corresponde ao uso metafórico dos termos («Tende uma atitude de
disponibilidade»). Quando se trata de um relato, o sentido literal não
comporta necessariamente a afirmação de que os fatos contados tenham
efetivamente acontecido, pois um relato pode não pertencer ao gênero histórico,
mas ser uma obra de imaginação.
O sentido literal da Escritura é aquele que foi expresso diretamente
pelos autores humanos inspirados. Sendo o fruto da inspiração, este sentido é
também desejado por Deus, autor principal. Ele é discernido graças a uma
análise precisa do texto, situado em seu contexto literário e histórico. A
tarefa principal da exegese é de bem conduzir esta análise, utilizando todas as
possibilidades das pesquisas literárias e históricas, em vista de definir o
sentido literal dos textos bíblicos com a maior exatidão possível (cf. Divino afflante Spiritu: E. B., 550). Para
esta finalidade, o estudo dos gêneros literários antigos é particularmente
necessário (ibid. 560).
O sentido literal de um texto é único? Geralmente sim; mas
não se trata aqui de um princípio absoluto, e isso por duas razões. De um lado,
um autor humano pode querer se referir ao mesmo tempo a vários níveis de
realidade. O caso é comum em poesia. A inspiração bíblica não desdenha esta
possibilidade da psicologia e da linguagem humana; o IV Evangelho fornece
numerosos exemplos disto. De outro lado, mesmo quando uma expressão humana
parece ter um único significado, a inspiração divina pode guiar a expressão de
maneira a produzir urna ambivalência. Este é o caso da palavra de Caifás em Jo
11,50. Ela exprime ao mesmo tempo um cálculo político imoral e uma revelação
divina. Estes dois aspectos pertencem um e outro ao sentido literal, pois eles
são, os dois, colocados em evidência pelo contexto. Se bem que ele seja
extremo, este caso é significativo; ele deve advertir contra uma concepção
muito estrita do sentido literal dos textos inspirados.
Convém particularmente estar atento ao aspecto dinâmico de
muitos textos. O sentido dos Salmos reais, por exemplo, não deve estar limitado
estritamente às circunstâncias históricas da produção deles. Falando do rei, o
salmista evocava ao mesmo tempo uma instituição verdadeira e uma visão ideal da
realeza, conforme ao plano de Deus, de maneira que seu texto ultrapassava a
instituição real tal como ela tinha se manifestado na história. A exegese
histórico-crítica teve muitas vezes a tendência de fixar o sentido dos textos,
ligando-o exclusivamente a circunstâncias históricas precisas. Ela deve antes
de tudo procurar determinar a direção do pensamento expresso pelo texto,
direção que, ao invés de convidar o exegeta a fixar o sentido, sugere-lhe, ao
contrário, de perceber seu desenvolvimento mais ou menos previsível.
Uma corrente da hermenêutica moderna sublinhou a diferença de estatuto
que afeta a palavra humana logo que ela é colocada por escrito. Um texto
escrito tem a capacidade de ser colocado em circunstancias novas, que o iluminam
de maneiras diferentes, acrescentando ao seu sentido novas determinações. Esta
capacidade do texto escrito é especialmente efetiva no caso dos textos
bíblicos, reconhecidos como Palavra de Deus. Efetivamente, o que levou a
comunidade de fiéis a conservá-los foi a convicção que eles continuariam a ser
portadores de luz e de vida para as gerações vindouras. O sentido literal é,
desde o início, aberto a desenvolvimentos ulteriores, que se produzem graças a
«releituras» em contextos novos.
Não se deve concluir que se possa atribuir a um texto bíblico qualquer
sentido, interpretando-o de maneira subjetiva. E preciso, ao contrário,
rejeitar como inautêntica toda interpretação que seja heterogênea ao sentido
expresso pelos autores humanos e no texto escrito por eles. Admitir sentidos
heterogêneos equivaleria a cortar a mensagem bíblica de sua raiz, que é a
Palavra de Deus comunicada historicamente, e a abrir a porta a um subjetivismo
incontrolável.
2. Sentido espiritual
Não é o caso, no entanto, de tomar « heterogêneo » em um sentido
estrito, contrário a toda possibilidade de realização superior. O acontecimento
pascal, morte e ressurreição de Jesus, deu origem a um contexto histórico
radicalmente novo, que ilumina de maneira nova os textos antigos e os faz sofrer
uma mutação de sentido. Particularmente certos textos que nas antigas
circunstancias deveriam ser considerados como hipérboles (por exemplo, o
oráculo onde Deus, falando de um filho de Davi, prometia afirmar «para
sempre» seu trono: 2 Sam7,12-13; 1 Cron 17,11-14),
doravante esses textos devem ser tomados ao pé da letra, porque o «Cristo,
tendo ressuscitado dentre os mortos, já não morre» (Rom 6,9). Os
exegetas que têm uma noção limitada, «histórica», do sentido literal
estimarão que aqui há heterogeneidade. Aqueles que são abertos ao aspecto
dinâmico dos textos reconhecerão uma continuidade profunda ao mesmo tempo que
uma passagem a um nível diferente: o Cristo reina para sempre, mas não sobre o
trono terrestre de Davi (cf também Sal 2,7-8; 110,1.4).
Nos casos desse gênero, fala-se de «sentido espiritual». Em regra
geral, pode-se definir o sentido espiritual, entendido segundo a fé cristã,
como o sentido expresso pelos textos bíblicos, logo que são lidos sob
influência do Espírito Santo no contexto do mistério pascal do Cristo e da vida
nova que resulta dele. Esse contexto existe efetivamente. O Novo Testamento
reconhece nele a realização das Escrituras. É, assim, normal reler as
Escrituras à luz deste novo contexto, que é aquele da vida no Espírito.
Da definição dada pode-se fazer várias precisões úteis sobre as relações
entre sentido espiritual e sentido literal:
Em sentido contrário a uma opinião corrente, não há necessariamente
distinção entre esses dois sentidos. Quando um texto bíblico se refere
diretamente ao mistério pascal do Cristo ou à vida nova que resulta dele, seu
sentido literal é um sentido espiritual.
Este é o caso habitual no Novo
Testamento. Conclui-se que é a respeito do Antigo Testamento que a exegese
cristã fala muitas vezes de sentido espiritual. Mas já no Antigo Testamento, os
textos têm em vários casos como sentido literal um sentido religioso e
espiritual. A fé cristã reconhece aqui uma relação antecipada com a vida nova
trazida pelo Cristo.
Quando há distinção, o sentido espiritual não pode jamais ser privado de
relações com o sentido literal. Este último permanece a base indispensável. De
outra maneira não se poderia falar de « realização » da Escritura. Para que
haja realização efetiva, é essencial uma relação de continuidade e de
conformidade. Mas é preciso também que haja passagem a um nível superior de
realidade.
O sentido espiritual não pode ser confundido com as interpretações
subjetivas ditadas pela imaginação ou a especulação intelectual. Ele resulta da
relação do texto com dados reais que não lhe são estranhos, como o
acontecimento pascal e sua fecundidade inesgotável que constitui o grau supremo
da intervenção divina na história de Israel em proveito da humanidade inteira.
A leitura espiritual, feita em comunidade ou individualmente, descobre
um sentido espiritual autêntico somente se ela se mantém nessas perspectivas.
Entram assim em relação três níveis de realidade: o texto bíblico, o mistério
pascal e as circunstâncias presentes de vida no Espírito.
Convencida de que o mistério de Cristo dá a chave de interpretação a
todas as Escrituras, a exegese antiga se esforçou de encontrar um sentido
espiritual nos menores detalhes dos textos bíblicos — por exemplo, em cada
prescrição das leis rituais — servindo-se de métodos rabínicos ou inspirando-se
no alegorismo helenístico. A exegese moderna não pode dar um verdadeiro valor
de interpretação a esse gênero de tentativa, qualquer que tenha sido no passado
sua utilidade pastoral (cf Divino afflante Spiritu, E. B.,
553).
Um dos aspectos possíveis do sentido espiritual é o aspecto tipológico,
do qual se diz habitualmente que pertence não à Escritura em si, mas às
realidades expressas por ela: Adão figura de Cristo (cf Rm 5,14),
o dilúvio figura do batismo (1 Pd 3,20-21), etc. De fato, a
relação de tipologia é ordinariamente baseada sobre a maneira pela qual a
Escritura descreve a realidade antiga (cf a voz de Abel: Gn 4,10; He 11,4;
12,24) e não simplesmente sobre esta realidade. Consequentemente, trata-se de
um sentido da Escritura.
3. Sentido pleno
Relativamente recente, a denominação de « sentido pleno » suscita
discussões. Define-se o sentido pleno como um sentido mais profundo do texto,
desejado por Deus, mas não claramente expresso pelo autor humano. Descobre-se
sua existência em um texto bíblico quando se estuda esse texto à luz de outros
textos bíblicos que o utilizam ou em sua relação com o desenvolvimento interno
da revelação.
Trata-se, então, ou do significado que um autor bíblico atribui a um
texto bíblico que lhe é anterior, quando ele o retoma em um contexto que lhe
confere um sentido literal novo, ou ainda do significado que a tradição
doutrinal autêntica ou uma definição conciliar dão a um texto da Bíblia. Por
exemplo, o contexto de Mt 1,23 dá um sentido pleno ao oráculo
de Is7,14 sobre a alma que conceberá, utilizando a tradução dos
Setenta (parthenos): «A virgem conceberá». O ensinamento patrístico e
conciliar sobre a Trindade expressa o sentido pleno do ensinamento do Novo
Testamento sobre Deus Pai, Filho e Espírito. A definição do pecado original
pelo Concilio de Trento fornece o sentido pleno do ensinamento de Paulo
em Rm5,12-21 a respeito das consequências do pecado de Adão para a
humanidade. Mas, quando falta um controle desse gênero — por um texto bíblico
explicito ou por uma tradição doutrinal autêntica — o recurso a um pretenso
sentido pleno poderia conduzir a interpretações subjetivas desprovidas de toda
validade.
Em definitivo, poder-se-ia considerar o «sentido pleno» como uma outra
maneira de designar o sentido espiritual de um texto bíblico, no caso onde o
sentido espiritual se distingue do sentido literal. Seu fundamento é o fato de
que o Espírito Santo, autor principal da Bíblia, pode guiar o autor humano na
escolha de suas expressões de tal forma que estas últimas expressem uma verdade
da qual ele não percebe toda a profundidade. Esta é revelada mais completamente
no decorrer do tempo, graças, de um lado, a realizações divinas ulteriores que
manifestem melhor o alcance dos textos e graças também, de outro lado, à
inserção dos textos no Cânon das Escrituras. Assim é constituído um novo
contexto, que faz aparecer potencialidades de sentido que o contexto primitivo
deixava na obscuridade.
III. DIMENSÕES CARACTERÍSTICAS DA
INTERPRETAÇÃO CATÓLICA
A exegese católica não procura se diferenciar por um método científico
particular. Ela reconhece que um dos aspectos dos textos bíblicos é o de ser a
obra de autores humanos, que se serviram de suas próprias capacidades de
expressão e meios que a época e o ambiente deles colocavam-lhes à disposição.
Consequentemente, ela utiliza sem subentendidos todos os métodos e abordagens
científicos que permitem melhor apreender o sentido dos textos no contexto
linguístico, literário, sócio-cultural, religioso e histórico deles, iluminando-os
também pelo estudo de suas fontes e levando em conta a personalidade de cada
autor (cf Divino
afflante Spiritu, E. B., 557). Ela contribui ativamente ao desenvolvimento
dos métodos e ao progresso da pesquisa.
O que a caracteriza é que ela se situa conscientemente na tradição viva
da Igreja, cuja primeira preocupação é a fidelidade à revelação atestada pela
Bíblia. As hermenêuticas modernas colocaram em destaque, lembremo-nos, a
impossibilidade de interpretar um texto sem partir de uma « pré-compreensão »
de um gênero ou de um outro. A exegese católica aborda os escritos bíblicos com
uma pré-compreensão que une estreitamente a cultura moderna científica e a
tradição religiosa proveniente de Israel e da comunidade cristã primitiva. Sua
interpretação encontra-se, assim, em continuidade com o dinamismo de
interpretação que se manifesta no interior da própria Bíblia e que se prolonga
em seguida na vida da Igreja. Ela corresponde à exigência de afinidade vital
entre o intérprete e seu objeto, afinidade que constitui uma das condições de
possibilidade do trabalho exegético.
Toda pré-compreensão comporta, entretanto, seus perigos. No caso da
exegese católica o risco existe de atribuir a textos bíblicos um sentido que
eles não exprimem, mas que é o fruto de um desenvolvimento ulterior da
tradição. A exegese deve evitar este perigo.
A. A interpretação na Tradição bíblica
Os textos da Bíblia são a expressão de tradições religiosas que existiam
antes deles. A maneira pela qual eles se ligam a essas tradições é diferente
segundo o caso, a criatividade dos autores manifestando-se em graus diversos.
No decorrer dos tempos, múltiplas tradições convergiram pouco a pouco para
formar uma grande tradição comum. A Bíblia é urna manifestação privilegiada
desse processo, que ela contribuiu a realizar e do qual ela continua a ser
reguladora.
«A interpretação na Tradição bíblica» comporta uma grande variedade de
aspectos. Pode-se entender por esta expressão a maneira com a qual a Bíblia
interpreta as experiências humanas fundamentais ou os acontecimentos
particulares da história de Israel, ou ainda a maneira com a qual os textos
bíblicos utilizam fontes, escritas ou orais — algumas das quais podem provenir
de outras religiões ou culturas — reinterpretando-as. Mas sendo nosso assunto a
interpretação da Bíblia, nós não queremos tratar aqui destas
questões tão vastas, mas simplesmente propor algumas observações sobre a
interpretação dos textos bíblicos no interior da própria Bíblia.
1. Releituras
O que contribui a dar à Bíblia sua unidade interna, única em seu gênero,
é o fato de que os escritos bíblicos posteriores apoiam-se muitas vezes sobre
os escritos anteriores.
Fazem alusão a eles, propõem « releituras » que
desenvolvem novos aspectos de sentido, algumas vezes muito diferentes do
sentido primitivo, ou ainda se referem a eles explicitamente, seja para
aprofundar-lhes o significado, seja para afirmar-lhes a realização.
É assim que a herança de uma terra, prometida por Deus a Abrahão para a
sua descendência (Gn 15,7.18), torna-se a entrada no santuário de
Deus (Ex 15,17), uma participação ao repouso de Deus (Sal 132,7-8)
reservada aos verdadeiros fiéis (Sal 95,8-11; He 3,7-4,11)
e, finalmente, a entrada no santuário celeste (He 6,12.18-20),
«herança eterna» (He 9,15).
O oráculo do profeta Natã, que promete a Davi uma «casa», isto é, uma
sucessão dinástica, «estável para sempre» (2 Sam 7,12-16), é
lembrado em numerosas ocasiões (2 Sam 23,5; 1Re 2,4;
3,6; 1 Cron 17,11-14), especialmente nos tempos de aflição (Sal 89,20-38),
não sem variações significativas, e ele é desenvolvido por outros oráculos (Sal 2,7-8;
110,1.4; Am9,11; Is 7,13-14; Jer 23,5-6;
etc.), alguns dos quais anunciam o retorno do próprio reino de Davi (Os 3,5; Jer 30,9; Ez 34,24;
37,24-25; cf Mc 11,10). O reino prometido torna-se universal (Sal 2,8; Dn 2,35.44;
7,14; cf Mt 28,18). Ele realiza plenamente a vocação do homem
(Gn 1,28; Sal 8,6-9; Sab 9,2-3;
10,2).
O oráculo de Jeremias sobre os 70 anos de castigo merecidos por Jerusalém
e Judá (Jer25,11-12; 29,10) é lembrado em 2 Cron 25,20-23,
que constata sua realização. Mas, no entanto, ele é remeditado após muito tempo
pelo autor de Daniel na convicção de que esta palavra de Deus guarda ainda um
sentido escondido, que deve iluminar a situação presente (Dn 9,24-27).
A afirmação fundamental da justiça retributiva de Deus, que recompensa
os bons e pune os maus (Sal 1,1-6; 112,1-10; Lv 26,3-33;
etc.), choca-se com a experiência imediata, que muitas vezes não corresponde a
ela. A Escritura deixa, então, o protesto e a contestação exprimirem-se com
vigor (Sal 44; Jó 10,1-7; 13,3-28; 23-24) e aprofunda
progressivamente o mistério (Sal 37; Jó 38-42; Is 53; Sab 3-5).
2. Relações entre o Antigo e Novo Testamento
As relações intertextuais assumem uma densidade extrema nos escritos do
Novo Testamento, todo formado de alusões ao Antigo Testamento e de citações
explicitas. Os autores do Novo Testamento reconhecem no Antigo um valor de
revelação divina. Eles proclamam que esta revelação encontrou sua realização na
vida, no ensinamento e sobretudo na morte e ressurreição de Jesus, fonte de
perdão e de vida eterna. «Cristo morreu por nossos pecados, segundo as
Escrituras. Foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, segundo as
Escrituras. Apareceu...» (1 Co 15,3-5): este é o núcleo central
da pregação apostólica (1 Co15,11).
Como sempre, entre as Escrituras e os acontecimentos que as realizam, as
relações não são de simples correspondência material, mas de iluminação
recíproca e de progresso dialético: constata-se ao mesmo tempo que as
Escrituras revelam o sentido dos acontecimentos e que os acontecimentos revelam
o sentido das Escrituras, isto é, que eles obrigam a renunciar a certos
aspectos da interpretação recebida para adotar uma interpretação nova.
Desde o tempo de seu ministério público, Jesus tinha tomado uma posição
pessoal original, diferente da interpretação recebida em sua época, que era
aquela «dos escribas e dos fariseus» (Mt 5,20). Numerosos são os
testemunhos disso: as antíteses do Sermão da montanha (Mt5,21-48), a liberdade
soberana de Jesus na observância do sábado (Mc 2, 27-28 e paral.),
sua maneira de tornar relativos os preceitos de pureza ritual (Mc 7,1-23
e paral.), ao contrário, sua exigência radical em outros domínios (Mt 10,2-12
e paral.; 10,17-27 e paral.) e sobretudo sua atitude de receptividade em
relação «aos publicanos e pecadores» (Mc 2,15-17 e paral.). De
sua parte não era capricho de contestador mas, ao contrário, fidelidade mais
profunda à vontade de Deus expressa na Escritura (cf Mt 5,17;
9,13; Mc 7,8-13 e paral.; 10,5-9 e paral.).
A morte e ressurreição de Jesus forçaram ao extremo a evolução começada,
provocando em alguns pontos um rompimento completo, ao mesmo tempo que uma
abertura inesperada. A morte do Messias, «rei dos Judeus» (Mc 15,26
e paral.), provocou uma transformação na interpretação terrestre dos Salmos
reais e dos oráculos messiânicos. Sua ressurreição e sua glorificação celeste
como Filho de Deus deram a esses mesmos textos uma plenitude de sentido
inconcebível anteriormente. Expressões que pareciam hiperbólicas devem
doravante ser tomadas ao pé da letra. Elas aparecem como que preparadas por
Deus para expressar a glória do Cristo Jesus, pois Jesus é realmente «Senhor»
(Sal 110,1) no sentido mais forte do termo (At 2,36; Fil 2,10-11; He 1,10-12);
ele é o Filho de Deus (Sal 2,7; Mc 14,62; Rm 1,3-4),
Deus com Deus (Sal 45,7; He 1,8; Jo 1,1;
20,28); «seu reino não terá fim» (Lc 1,32-33; cf 1 Cron 17,11-14; Sal 45,7; He 1,8)
e ele é ao mesmo tempo «sacerdote eternamente» (Sal110,4; He 5,6-10;
7,23-24).
Foi à luz dos acontecimentos da Páscoa que os autores do Novo Testamento
releram o Antigo Testamento. O Espírito Santo enviado pelo Cristo glorificado
(cf Jo 15,26; 16,7) os fez descobrir nele o sentido
espiritual. Foram assim conduzidos a afirmar mais do que nunca o valor
profético do Antigo Testamento, mas também a tornar fortemente relativo seu
valor de instituição salvífica. Esse segundo ponto de vista, que aparece já nos
Evangelhos (cf Mt11,11-13 e paral.; 12,41-42 e paral.; Jo 4,12-14;
5,37; 6,32) aparece com vigor em certas cartas paulinas assim como na Carta aos
Hebreus. Paulo e o autor da Carta aos Hebreus demonstram que a Torá, enquanto
revelação, anuncia ela mesma seu próprio fim como sistema legislativo (cf Gal 2,15-5,1; Rm 3,20-21;
6,14; He 7,11-19; 10,8-9). Conclui-se que os pagãos que aderem
à fé no Cristo não têm que ser submetidos a todos os preceitos da legislação
bíblica, doravante reduzida, em seu conjunto, ao estatuto de instituição legal
de um povo particular. Mas eles têm que se alimentar do Antigo Testamento como
Palavra de Deus, que lhes permite de melhor descobrir todas as dimensões do
mistério pascal do qual eles vivem (cf Lc 24,25-27.44-45; Rm 1,1-2).
No interior da Bíblia cristã as relações entre Novo e Antigo Testamento
não deixam de ser complexas. Quando se trata da utilização de textos
particulares, os autores do Novo Testamento recorrem naturalmente aos
conhecimentos e aos procedimentos de interpretação da época deles. Exigir que
se conformem aos métodos científicos modernos seria um anacronismo. O exegeta
deve antes de tudo adquirir o conhecimento dos procedimentos antigos para poder
interpretar corretamente o uso que é feito deles. É verdade, de outro lado, que
ele não deve dar um valor absoluto àquilo que é conhecimento humano limitado.
Convém, enfim, acrescentar que no interior do Novo Testamento, como já
no interior do Antigo, observa-se a justaposição de perspectivas diferentes e
algumas vezes em tensão umas com as outras, por exemplo, sobre a situação de
Jesus (Jo 8,29; 16,32 e Mc 15,34) ou sobre o valor
da Lei mosaica (Mt 5,17-19 e Rm 6,14) ou sobre a
necessidade das obras para ser justificado (Tg 2,24 e Rm 3,28; Ef 2,8-9).
Uma das características da Bíblia é precisamente a ausência do espírito de sistema
e a presença, ao contrário, de tensões dinamizantes. A Bíblia acolheu várias
maneiras de interpretar os mesmos acontecimentos ou de pensar os mesmos
problemas. Assim ela convida a recusar o simplismo e a estreiteza de espírito.
3. Algumas conclusões
Disto que foi dito pode-se concluir que a Bíblia contém numerosas
indicações e sugestões sobre a arte de interpretar. A Bíblia é efetivamente,
desde o início, ela mesma uma interpretação. Seus textos foram reconhecidos
pelas comunidades da Antiga Aliança e do tempo apostólico como expressão válida
da fé que elas tinham. É segundo a interpretação das comunidades e em relação
àquela que foram reconhecidos como Santa Escritura (assim, por exemplo, o
Cântico dos Cânticos foi reconhecido como Santa Escritura enquanto aplicado à
relação entre Deus e Israel). No decorrer da formação da Bíblia, os escritos
que a compõem foram, em muitos casos, retrabalhados e reinterpretados para
responderem a situações novas, desconhecidas anteriormente.
A maneira de interpretar os textos que se manifesta na Santa Escritura
sugere as seguintes observações:
Dado que a Santa Escritura nasceu sobre a base de um consenso de
comunidades de fiéis que reconheceram em seu texto a expressão da fé revelada,
sua própria interpretação deve ser, para a fé viva das comunidades eclesiais,
fonte de consenso sobre os pontos essenciais.
Dado que a expressão da fé, tal como se encontrava reconhecida por todos
na Santa Escritura, teve que se renovar continuamente para fazer face a
situações novas — o que explicam as « releituras » de muitos textos bíblicos —
a interpretação da Bíblia deve igualmente ter um aspecto de criatividade e
afrontar as questões novas, para respondê-las partindo da Bíblia.
Dado que os textos da Santa Escritura têm algumas vezes relações de
tensão entre eles, a interpretação deve necessariamente ser múltipla. Nenhuma
interpretação particular pode esgotar o sentido do conjunto, que é uma sinfonia
a várias vozes. A interpretação de um texto particular deve assim evitar de ser
exclusivista.
A Santa Escritura está em diálogo com as comunidades dos fiéis: ela saiu
de suas tradições de fé. Seus textos se desenvolveram em relação com essas
tradições e contribuíram, reciprocamente, ao desenvolvimento delas. Conclui-se
que a interpretação da Escritura faz-se no seio da Igreja, em sua pluralidade,
em sua unidade e em sua tradição de fé.
As tradições de fé formavam o ambiente vital no qual inseriu-se a
atividade literária dos autores da Santa Escritura. Esta inserção compreendia
também a participação à vida litúrgica e à atividade externa das comunidades;
ao mundo espiritual, à cultura e às peripécias do destino histórico delas.
Assim, de maneira semelhante, a interpretação da Santa Escritura exige a
participação dos exegetas em toda a vida e em toda a fé da comunidade crente do
tempo deles.
O diálogo com a Santa Escritura em seu conjunto, e, assim, com a
compreensão da fé própria a épocas anteriores, é acompanhado necessariamente de
um diálogo com a geração presente. Isso provoca o estabelecimento de uma
relação de continuidade, mas também a constatação de diferenças. Conclui-se que
a interpretação da Escritura comporta um trabalho de verificação e de triagem;
ele permanece em continuidade com as tradições exegéticas anteriores, das quais
conserva e toma para si muitos elementos, mas em outros pontos ela se separa
delas para poder progredir.
B. A interpretação na Tradição da Igreja
A Igreja, povo de Deus, tem consciência de ser ajudada pelo Espírito
Santo em sua compreensão e sua interpretação das Escrituras. Os primeiros
discípulos de Jesus sabiam que não estavam à altura de compreender
imediatamente em todos os seus aspectos a totalidade do que tinham recebido.
Faziam a experiência, na vida de comunidade conduzida com perseverança, de um
aprofundamento e de uma explicitação progressiva da revelação recebida. Eles
reconheciam nisso a influência e a ação do «Espírito da verdade», que o
Cristo lhes havia prometido para guiá-los em direção à plenitude da verdade (Jo 16,12-13).
É assim igualmente que a Igreja prossegue seu caminho, sustentada pela promessa
do Cristo: «O Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, vos
ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos disse» (Jo 14,26).
1. Formação do Cânon
Guiada pelo Espírito Santo à luz da Tradição viva que ela recebeu, a
Igreja discerniu os escritos que devem ser olhados como Santa Escritura no
sentido de que, «tendo sido escritos sob a inspiração do Espírito Santo, eles
têm Deus por autor, foram transmitidos como tais à Igreja» (Dei Verbum, 11) e contêm «a
verdade que Deus, para nossa salvação, quis ver consignada nas Letras sagradas» (ibid.).
O discernimento de um «cânon» das Santas Escrituras foi a conclusão de
um longo processo. As comunidades da Antiga Aliança (de grupos particulares,
como os círculos proféticos ou o ambiente sacerdotal, até o conjunto do povo)
reconheceram em um certo número de textos a Palavra de Deus que lhes suscitava
a fé e os guiava na vida; elas receberam esses textos como um patrimônio a ser
guardado e transmitido. Assim, esses textos cessaram de ser simplesmente a
expressão da inspiração de autores particulares; eles se tornaram propriedade
comum do povo de Deus. O Novo Testamento atesta sua veneração por esses textos
sagrados, que ele recebe como uma preciosa herança transmitida pelo povo judeu.
Ele os olha como as «Escrituras Santas» (Rm 1,2), «inspiradas»
pelo Espírito de Deus (2 Tim 3,16; cf 2 Pd 1,20-
21), que «não podem ser abolidas» (Jo 10,35).
A esses textos que formam o «Antigo Testamento» (cf 2 Co 3,14),
a Igreja uniu estreitamente os escritos onde ela reconheceu, de um lado o
testemunho autêntico proveniente dos apóstolos (cf Lc 1,2;
1 Jo 1,1-3) e garantido pelo Espírito Santo (cf 1 Pd1,12),
sobre «todas as coisas que Jesus fez e ensinou» (At 1,1), e de
outro lado instruções dadas pelos apóstolos mesmos e outros discípulos para
constituir a comunidade de fiéis. Esta dupla série de escritos recebeu depois o
nome de «Novo Testamento».
Nesse processo, numerosos fatores tiveram um papel: a certeza de que
Jesus — e os apóstolos com ele — tinha reconhecido o Antigo Testamento como
Escritura inspirada e que esta recebia sua realização em seu mistério pascal; a
convicção de que os escritos do Novo Testamento provêm autenticamente da
pregação apostólica (o que não implica que eles tenham sido todos compostos
pelos próprios apóstolos); a constatação da sua conformidade com a regra da fé
e da sua utilização na liturgia cristã; enfim, a experiência da conformidade
deles com a vida eclesial das comunidades e da capacidade de alimentar esta
vida.
Discernindo o Cânon das Escrituras, a Igreja discernia e definia sua
própria identidade, de maneira que as Escrituras são doravante um espelho no
qual a Igreja pode constantemente redescobrir sua identidade e verificar,
século após século, a maneira com a qual ela responde sem cessar ao Evangelho e
se dispõe ela mesma a ser o meio de transmissão dele (cf Dei Verbum, 7). Isso confere
aos escritos canônicos um valor salvífico e teológico completamente diferente
daquele de outros textos antigos. Se esses últimos podem dar muita luz sobre as
origens da fé, eles não podem jamais substituir a autoridade dos escritos
considerados como canônicos e, assim, fundamentais para a inteligência da fé
cristã.
2. Exegese patrística
Desde os primórdios compreendeu-se que o mesmo Espírito Santo, que levou
os autores do Novo Testamento a colocar por escrito a mensagem da salvação (Dei Verbum, 7, 18), traz
igualmente à Igreja uma assistência continua para a interpretação de seus
escritos inspirados (cf Irineu, Adv. Haer. 3.24.1; cf 3.1.1;
4.33.8; Orígenes, De Princ., 2.7.2; Tertuliano, De Praescr.,
22).
Os Padres da Igreja, que tiveram um papel particular no processo de
formação do Cânon, tiveram igualmente um papel fundador em relação à tradição
viva que sem cessar acompanha e guia a leitura e a interpretação que a Igreja
faz das Escrituras (cf Providentissimus Deus, E. B., 110-111; Divino afflante Spiritu, 28-30, E. B.,
554; Dei
Verbum, 23; PCB, Instr. de Evang. histor., 1). No decorrer da
grande Tradição, a contribuição particular da exegese patrística consiste
nisto: ela tirou do conjunto da Escritura as orientações de base que deram
forma à tradição doutrinal da Igreja e ela forneceu um rico ensinamento
teológico para a instrução e o alimento espiritual dos fiéis.
Nos Padres da Igreja, a leitura da Escritura e sua interpretação ocupam
um lugar considerável. Testemunhas disso são, primeiramente, as obras
diretamente ligadas à inteligência das Escrituras, isto é, as homilias e os
comentários, mas também as obras de controvérsia e de teologia, onde o apelo à
Escritura serve de argumento principal.
O lugar habitual da leitura bíblica é a igreja, no decorrer da liturgia.
É por isso que a interpretação proposta é sempre de natureza teológica,
pastoral e teologal, a serviço das comunidades e dos fiéis individuais.
Os Padres consideram a Bíblia antes de tudo como Livro de Deus, obra
única de um único autor. Mesmo assim eles não reduzem os autores humanos a
meros instrumentos passivos e eles sabem atribuir a um ou outro livro tomado
individualmente uma finalidade singular. Mas o tipo de abordagem deles dá
apenas uma pequena atenção ao desenvolvimento histórico da revelação. Numerosos
Padres da Igreja apresentam o Logos, Verbo de Deus, como autor do
Antigo Testamento e afirmam assim que toda a Escritura tem um alcance
cristológico.
Com exceção de certos exegetas da Escola Antioquense (Teodoro de
Mopsuesta particularmente), os Padres sentem-se autorizados a tomar uma frase
fora de seu contexto para reconhecer nela uma verdade revelada por Deus. Na
apologética diante dos Judeus ou na controvérsia dogmática com outros teólogos
eles não hesitam em se apoiar sobre interpretações desse gênero.
Preocupados antes de tudo em viver da Bíblia em comunhão com seus
irmãos, os Padres contentam-se muitas vezes em utilizar o texto bíblico mais
comum no meio deles. Interessando-se metodicamente pela Bíblia hebraica,
Orígenes é animado sobretudo pelo cuidado de argumentar face aos Judeus a
partir de textos aceitáveis por esses últimos. Exaltando a hebraica
veritas, são Jerônimo figura como exceção.
Os Padres praticam de maneira mais ou menos freqüente o método alegórico
afim de dissipar o escândalo que poderia ser provocado em certos cristãos e nos
adversários pagãos do cristianismo diante de uma ou outra passagem da Bíblia.
Mas a literalidade e a historicidade dos textos são muito raramente esvaziadas.
O recurso dos Padres à alegoria ultrapassa geralmente o fenômeno de uma
adaptação ao método alegórico dos autores pagãos.
O recurso à alegoria deriva também da convicção de que a Bíblia, livro
de Deus, foi dado por ele a seu povo, a Igreja. Em princípio nada deve ser
deixado de lado como antiquado ou definitivamente caduco. Deus dirige uma
mensagem sempre de atualidade a seu povo cristão. Em suas explicações da
Bíblia, os Padres misturam e entrelaçam as interpretações tipológicas e
alegóricas de uma maneira mais ou menos inextricável, sempre com finalidade
pastoral e pedagógica. Tudo o que está escrito o foi para nossa instrução (cf
1 Co 10,11).
Persuadidos de que se trata do livro de Deus, portanto inesgotável, os
Padres crêem poder interpretar uma passagem segundo um determinado esquema
alegórico, mas eles estimam que cada um permanece livre para propor outra
coisa, contanto que respeite a analogia da fé.
A interpretação alegórica das Escrituras, que caracteriza a exegese
patrística, corre o risco de desorientar o homem moderno, mas a experiência de
Igreja que esta exegese exprime oferece uma contribuição sempre útil (cf , Divino afflante Spiritu 31-32; Dei Verbum, 23). Os Padres
ensinam a ler teologicamente a Bíblia no seio de uma Tradição viva com um
autêntico espírito cristão.
3. Papel dos diversos membros da Igreja na interpretação
Enquanto dadas à Igreja, as Escrituras são um tesouro comum do corpo
completo formado pelos fiéis: «A Santa Tradição e a Santa Escritura constituem
um único depósito sagrado da Palavra de Deus, confiado à Igreja. Ligando-se a
ele, todo o povo santo unido a seus pastores permanece assiduamente fiel ao
ensinamento dos apóstolos...» (Dei Verbum, 10; cf também 21). É bem verdade que
a familiaridade com o texto das Escrituras foi, entre c fiéis, mais notável em
certas épocas da história do que em outras Mas as Escrituras ocuparam uma
posição de primeiro plano em ta dos os momentos importantes de renovação na
vida da Igreja, desde o movimento monástico dos primeiros séculos até a época
recente do Concilio Vaticano II.
Este mesmo Concilio ensina que todos os batizados, quando tomam parte,
na fé ao Cristo, da celebração da Eucaristia, reconhecem a presença do Cristo
também em sua palavra, «pois é ele mesmo que fala quando as Santas Escrituras
são lidas na igreja» (Sacrosanctum
Concilium, 7). A esta escuta da palavra eles contribuem com o «sentido da fé» (sensus
fidei) que caracteriza o Povo (de Deus) inteiro. (...) Graças a esse
sentido da fé que é desperta do e sustentado pelo Espírito de verdade, o Povo
de Deus, sob direção do magistério sagrado, que ele segue fielmente, recebe,
não uma palavra humana, mas verdadeiramente a Palavra de Deu: (cf 1 Tess 2,13).
Ele se une indefectivelmente à fé transmitida ao: santos uma vez por todas
(cf Jud 3), «ele a aprofunda corretamente e a aplica à sua vida
da maneira mais completa» (Lumen gentium, 12) .
Assim, todos os membros da Igreja têm um papel na interpretação das
Escrituras. No exercício de seus ministérios pastorais, oi bispos, enquanto
sucessores dos apóstolos, são as primeiras testemunhas e garantias da tradição
viva na qual as Escrituras sãc interpretadas em cada época. «Iluminados pelo
Espírito da verdade, devem guardar fielmente a Palavra de Deus, explicá-la e
propagá-la pela pregação» (Dei Verbum, 9; cf Lumen
gentium, 25). Enquanto colaboradores dos bispos, os padres têm como primeiro
dever a proclamação da Palavra (Presbyterorum ordinis, 4). Eles são
dotados de um carisma particular para a interpretação da Escritura quando,
transmitindo não suas idéias pessoais, mas a Palavra de Deus, eles aplicam a
verdade eterna do Evangelho às circunstâncias concretas da vida (ibid.).
Cabe aos padres e aos diáconos, sobretudo quando
eles administram os sacramentos, de colocar em evidência a unidade que Palavra
e Sacramento formam no ministério da Igreja.
Enquanto presidentes da comunidade eucarística e educadores da fé, os
ministros da Palavra têm como tarefa principal não apenas dar um ensinamento
mas ajudar os fiéis a entender e discernir o que a Palavra de Deus lhes diz ao
coração quando eles escutam e meditam as Escrituras. É assim que o conjunto
da Igreja local, segundo o modelo de Israel, povo de Deus (Ex 19,5-6),
torna-se uma comunidade que sabe que Deus lhe fala (cf Jo 6,45)
e que se empenha em escutá-lo com fé, amor e docilidade para com sua Palavra (Dt 6,4-6).
Tais comunidades, que escutam verdadeiramente e à condição de permanecerem
sempre unidas na fé e no amor com a Igreja inteira, tornam-se vigorosos focos
de evangelização e de diálogo, assim como agentes de transformação social (Evangelii nuntiandi, 57-58; CDF, Instrução
sobre a liberdade cristã e a libertação, 69-70).
O Espírito é dado também, claro, aos cristãos individualmente,
de maneira que seus corações possam tornar-se « ardentes dentro deles »
(cf Lc 24,32) quando rezam e fazem um estudo em oração das
Escrituras no contexto da vida pessoal deles. É por isso que o Concilio
Vaticano II pediu com insistência que o acesso às Escrituras seja facilitado de
todas as maneiras possíveis (Dei Verbum, 22, 25). Esse gênero de leitura,
note-se, não é nunca completamente privado pois, aquele que crê, também lê e
interpreta a Escritura sempre na fé da Igreja e traz em seguida à comunidade o
fruto de sua leitura, para enriquecer a fé comum.
Toda a tradição bíblica e, de uma maneira mais notável, o ensinamento de
Jesus nos Evangelhos indicam como ouvintes privilegiados da Palavra de Deus
aqueles que o mundo considera como gente de condição humilde. Jesus
reconheceu que coisas escondidas aos sábios e doutores foram reveladas aos
simples (Mt 11,25; Lc 10,21) e que o Reino de Deus
pertence àqueles que se parecem com as crianças (Mc 10,14 e
paral.).
Na mesma linha, Jesus proclamou: «Bem aventurados vós, os pobres,
porque vosso é o Reino de Deus» (Lc 6,20; cf Mt 5,3).
Entre os sinais dos tempos messiânicos encontra-se a proclamação da boa nova
aos pobres (Lc 4,18; 7,22; Mt 11,5; cf CDF, Instrução
sobre a liberdade cristã e a libertação, 47-48 ). Aqueles que, na
incapacidade e na privação de seus recursos humanos, encontram-se forçados a
colocar a única esperança deles em Deus e sua justiça, têm uma capacidade de
escutar e interpretar a Palavra de Deus que deve ser levada em conta pela
Igreja inteira e pede também uma resposta a nível social.
Reconhecendo a diversidade de dons e de funções que o Espírito coloca a
serviço da comunidade, particularmente o dom de ensinar (1 Co 12,28-30; Rm 12,6-7; Ef 4,11-16),
a Igreja concede sua estima àqueles que manifestam uma capacidade particular de
contribuir à construção do Corpo do Cristo pela competência que têm na
interpretação da Escritura (Divino afflante Spiritu, 46-48, E. B., 564-565; Dei Verbum, 23; PCB, Instrução
sobre a historicidade dos Evangelhos, Introd.). Se bem que seus trabalhos
não tenham sempre obtido o encorajamento que se lhes dá agora, os exegetas que
colocam seu saber a serviço da Igreja encontram-se situados em uma rica
tradição que se estende desde os primeiros séculos, com Orígenes e Jerônimo,
até os tempos mais recentes, com o padre Lagrange e outros, e prolonga-se até
nossos dias. Particularmente a pesquisa do sentido literal da Escritura, sobre
o qual doravante insiste-se tanto, requer os esforços conjugados daqueles que
têm competências em matéria de línguas antigas, de história e de cultura, de
crítica textual e de análise de formas literárias, e que sabem utilizar os
métodos da crítica científica. Além desta atenção ao texto em seu contexto
histórico original, a Igreja confia em exegetas animados pelo mesmo Espírito
que inspirou a Escritura para assegurar que «um maior número possível de
servidores da Palavra de Deus esteja à altura de oferecer efetivamente ao povo
de Deus o alimento das Escrituras» (Divino afflante Spiritu, 24; 53-55; E.
B., 551, 567; Dei Verbum, 23; Paulo VI, Sedula cura [1971]). Um motivo de
satisfação é dado à nossa época pelo número crescente de mulheres
exegetas, que trazem mais de uma vez à interpretação da Escritura novas
visões mais penetrantes e colocam em evidência aspectos que tinham caído no
esquecimento.
Se as Escrituras, como se lembrou acima, são o bem da Igreja inteira e
fazem parte da «herança da fé» que todos, pastores e fiéis, «conservam,
professam e colocam em prática em um esforço comum», é bem verdade no entanto
que a «tarefa de interpretar de maneira autêntica a Palavra de Deus,
transmitida pela Escritura ou pela Tradição, foi confiada unicamente ao
Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade exerce-se em nome de Jesus Cristo»
(Dei
Verbum, 10). Assim, em última análise, é o Magistério que tem a tarefa de
garantir a autenticidade de interpretação e de indicar, quando ocorre, que uma
ou outra interpretação particular é incompatível com o autêntico Evangelho. Ele
desempenha encargo no interior da koinônia do Corpo,
exprimindo oficialmente a fé da Igreja para servir a Igreja; para este efeito
ele consulta teólogos, exegetas e outros expertos, dos quais reconhece a legítima
liberdade e com os quais permanece ligado por uma relação recíproca com o fim
comum de «conservar o povo de Deus na verdade que torna livre» (CDF, Instrução
sobre a vocação eclesial do teólogo, 21).
C. A tarefa do exegeta
A tarefa dos exegetas católicos comporta vários aspectos. É uma tarefa
de Igreja, pois ela consiste em estudar e explicar a Santa Escritura de maneira
a colocar todas as riquezas à disposição dos pastores e dos fiéis. Mas é ao
mesmo tempo uma tarefa científica que coloca o exegeta católico em relação com
seus colegas não católicos e com vários setores da pesquisa científica. De
outro lado, esta tarefa compreende ao mesmo tempo o trabalho de pesquisa e
aquele de ensinamento. Tanto um como outro concluem normalmente em publicações.
1. Orientações principais
Aplicando-se às suas tarefas, os exegetas católicos devem levai em séria
consideração o caráter histórico da revelação bíblica. Pois os
dois Testamentos exprimem em palavras humanas, que levam a marca do tempo
delas, a revelação histórica que Deus fez, por diversos meios, dele mesmo e de
seu piano de salvação. Consequentemente, os exegetas devem se servir do método
histórico-crítico. Eles não podem, no entanto, atribuir-lhe a exclusividade.
Todos o; métodos pertinentes de interpretação dos textos são habilitados a dar
sua contribuição à exegese da Bíblia.
No trabalho de interpretação que fazem, os exegetas católicos não devem
nunca esquecer que o que eles interpretam é a Palavra de Deus. A
tarefa comum que têm não está terminada após terem distinguido as fontes,
definido as formas ou explicado os procedimentos literários. A finalidade do
trabalho deles só é atingida quando tiverem esclarecido o sentido do texto
bíblico como palavra atual de Deus. A esse efeito devem levar em consideração as
diversas perspectivas hermenêuticas que ajudam a perceber a atualidade da
mensagem bíblica e lhes permitem de responder às necessidades dos leitores
modernos das Escrituras.
Os exegetas têm também que explicar o alcance cristológico, canônico e
eclesial dos escritos bíblicos.
O alcance cristológico dos textos bíblicos não é sempre
evidente; deve ser colocado em evidência cada vez que seja possível. Se bem que
o Cristo tenha estabelecido a Nova Aliança em seu sangue, os livros da Primeira
Aliança não perderam seu valor. Assumidos na proclamação do Evangelho, adquirem
e manifestam seu pleno significado no « mistério do Cristo » (Ef 3,4),
do qual eles iluminam os múltiplos aspectos ao mesmo tempo que são iluminados
por ele. Esses livros, efetivamente, preparavam o povo de Deus à sua vinda
(cf Dei
Verbum, 14-16).
Se bem que cada livro da Bíblia tenha sido escrito com uma finalidade
distinta e que tenha o seu significado específico, ele se manifesta portador de
um sentido ulterior quando se torna uma parte do conjunto canônico.
A tarefa dos exegetas inclui, então, a explicação da afirmação agostiniana: «Novum Testamentum in Vetere latet, et in Novo Vestus patet» (cf s.
Agostinho, Quaest. in Hept., 2, 73: CSEL 28, III,
3, p.141).
Os exegetas devem explicar também a relação que existe entre a Bíblia e
a Igreja. A Bíblia veio à luz em comunidades de fiéis. Ela exprime a fé de
Israel e aquela das comunidades cristãs primitivas. Unida à Tradição viva que a
precedeu, a acompanha e da qual se alimenta (cf Dei Verbum, 21), ela é o meio
privilegiado do qual Deus se serve para guiar, ainda hoje, a construção e o
crescimento da Igreja enquanto Povo de Deus. Inseparável da dimensão eclesial
está a abertura ecumênica.
Pelo fato de que a Bíblia exprime uma oferta de salvação apresentada por
Deus a todos os homens, a tarefa dos exegetas comporta uma dimensão universal,
que requer uma atenção às outras religiões e aos anseios do mundo atual.
2. Pesquisa
A tarefa exegética é vasta demais para poder ser bem conduzida por um
único indivíduo. Impõe-se uma divisão de trabalho, especialmente para a pesquisa,
que requer especialistas em diferentes domínios. Os inconvenientes possíveis da
especialização serão evitados graças a esforços interdisciplinares.
É muito importante para o bem da Igreja inteira e para sua irradiação no
mundo moderno que um número suficiente de pessoas bem formadas sejam
consagradas à pesquisa em diferentes setores da ciência exegética. Preocupados
com as necessidades mais imediatas do ministério, os bispos e os superiores
religiosos são muitas vezes tentados a não levar suficientemente a sério a
responsabilidade que lhes incumbe de prover a esta necessidade fundamental. Mas
uma carência neste ponto expõe a Igreja a graves inconvenientes, pois pastores
e fiéis arriscam de estarem à mercê de uma ciência exegética estranha à Igreja
e privada de relações com a vida da fé. Declarando que «o estudo da Santa
Escritura» deve ser «como a alma da teologia» (Dei Verbum, 24), o II Concílio
do Vaticano mostrou toda a importância da pesquisa exegética. Ao mesmo tempo
também lembrou implicitamente aos exegetas católicos que suas pesquisas têm uma
relação essencial com a teologia, da qual eles devem se mostrar conscientes.
3. Ensinamento
A declaração do Concilio faz igualmente compreender o papel fundamental
que é dado ao ensinamento da exegese nas Faculdades de Teologia,
Seminários e Escolasticados.
É evidente que o nível dos estudos não será
uniforme nestes diferentes casos. É desejável que o ensinamento da exegese seja
dado por homens e por mulheres. Mais técnico nas Faculdades, esse ensinamento
terá uma orientação mais diretamente pastoral nos Seminários. Mas ele não
poderá nunca esquecer uma dimensão intelectual séria. Proceder de outra maneira
seria faltar de respeito com a Palavra de Deus.
Os professores de exegese devem comunicar aos estudantes uma profunda
estima pela Santa Escritura, mostrando o quanto ela merece um estudo atento e
objetivo que permita apreciar melhor seu valor literário, histórico, social e
teológico. Eles não podem se contentar em transmitir uma série de conhecimentos
a serem registrados passivamente mas devem dar uma iniciação aos métodos
exegéticos, explicando suas principais operações para tornar os estudantes
capazes de julgamento pessoal. Visto o tempo limitado que se dispõe, convém
utilizar alternativamente duas maneiras de ensinar: de um lado, por meio de
exposições sintéticas, que introduzem ao estudo de livros bíblicos inteiros e
não deixam de lado nenhum setor importante do Antigo Testamento nem do Novo; de
outro lado, por meio de análises aprofundadas de alguns textos bem escolhidos,
que sejam ao mesmo tempo uma iniciação à prática da exegese.
Tanto em um como
em outro caso é preciso cuidar para não ser unilateral, isto é, de não se
limitar nem a um comentário espiritual desprovido de base histórico-crítica,
nem a um comentário histórico-crítico desprovido de conteúdo doutrinal e
espiritual (cf Divino
afflante Spiritu; E. B., 551-552;
PC, De Sacra Scriptura recte docenda, E. B., 598). O
ensinamento deve mostrar ao mesmo tempo as raízes históricas dos escritos
bíblicos, o aspecto deles enquanto palavra pessoal do Pai celeste que se dirige
com amor a seus filhos (cf Dei Verbum, 21) e o papel indispensável que têm no ministério pastoral (cf 2 Tim 3,16).
4. Publicações
Como fruto da pesquisa e complemento do ensinamento, as publicações têm
uma função de grande importância para o progresso e a difusão da exegese. Em
nossos dias, a publicação não se realiza mais somente pelos textos impressos,
mas também por outros meios, mais rápidos e mais potentes (rádio, televisão,
técnicas eletrônicas), dos quais convém aprender a se servir.
As publicações de alto nível científico são o instrumento principal de
diálogo, de discussão e de cooperação entre os pesquisadores. Graças a elas a
exegese católica pode se manter em relação recíproca com outros ambientes da
pesquisa exegética e também com o mundo dos estudiosos em geral.
A curto prazo, são as outras publicações que prestam grandes serviços
pois se adaptam a diversas categorias de leitores, desde o público cultivado
até às crianças dos catecismos, passando pelos grupos bíblicos, os movimentos
apostólicos e as congregações religiosas. Os exegetas dotados para a divulgação
fazem uma obra extremamente útil e fecunda, indispensável para assegurar aos
estudos exegéticos a irradiação que devem ter. Neste setor, a necessidade de
atualização da mensagem bíblica faz-se sentir de maneira mais premente. Isso
significa que os exegetas levem em consideração as legítimas exigências das
pessoas instruídas e cultas de nosso tempo e distingam claramente, para o bem
delas, o que deve ser olhado como detalhe secundário condicionado pela época, o
que é preciso interpretar com linguagem mítica e o que é preciso apreciar como
sentido próprio, histórico e inspirado. Os escritos bíblicos não foram
compostos em linguagem moderna, nem em estilo do século XX. As formas de
expressão e os gêneros literários que eles utilizam no texto hebreu, aramaico
ou grego devem ser tornados inteligíveis aos homens e mulheres de hoje que, de
outra maneira, seriam tentados ou a perder o interesse pela Bíblia, ou a
interpretá-la de maneira simplista: literalista ou fantasiosa.
Em toda a diversidade de suas tarefas, o exegeta católico não tem outra
finalidade senão o serviço da Palavra de Deus. Sua ambição não é substituir aos
textos bíblicos os resultados de seu trabalho, que se trate de reconstituição
de documentos antigos utilizados pelos autores inspirados ou de uma
apresentação moderna das últimas conclusões da ciência exegética. Sua ambição
é, ao contrário, colocar em maior evidência os próprios textos bíblicos,
ajudando a apreciá-los melhor e a compreendê-los com sempre mais exatidão
histórica e profundidade espiritual.
D. As relações com as outras disciplinas teológicas
Sendo ela mesma uma disciplina teológica, «fides quaerens intellectum», a exegese mantém relações estreitas e complexas com as outras disciplinas da
teologia. De um lado, efetivamente, a teologia sistemática tem uma influência
sobre a pré-compreensão com a qual os exegetas abordam os textos bíblicos. Mas,
de outro lado, a exegese fornece às outras disciplinas teológicas dados que
lhes são fundamentais. São estabelecidas, então, relações de diálogo entre a
exegese e as outras disciplinas teológicas, no respeito mútuo à especificidade
de cada uma delas.
1. Teologia e pré-compreensão dos textos bíblicos
Quando fazem a abordagem dos escritos bíblicos, os exegetas têm
necessariamente uma pré-compreensão. No caso da exegese católica, trata-se de uma
pré-compreensão baseada nas certezas de fé: a Bíblia é um texto inspirado por
Deus e confiado à Igreja para suscitar a fé e guiar a vida cristã. As certezas
de fé não chegam aos exegetas em estado bruto, mas depois de terem sido
elaboradas na comunidade eclesial pela reflexão teológica. Os exegetas são,
assim, orientados em suas pesquisas pela reflexão dos dogmáticos sobre a
inspiração da Escritura e a função desta na vida eclesial.
Mas, reciprocamente, o trabalho dos exegetas sobre os textos inspirados traz-lhes
uma experiência da qual os dogmáticos devem levar em conta para melhor elucidar
a teologia da inspiração escriturária e da interpretação eclesial da Bíblia. A
exegese suscita particularmente uma consciência mais viva e mais precisa do
caráter histórico da inspiração bíblica. Ela mostra que o processo da
inspiração é histórico não apenas porque ele teve seu lugar no decorrer da
história de Israel e da Igreja primitiva, mas também porque ele se realizou
através da mediação de pessoas humanas marcadas cada uma pela sua época e que,
sob a guia do Espírito, tiveram um papel ativo na vida do povo de Deus.
Aliás, a afirmação teológica da relação estreita entre Escritura
inspirada e Tradição da Igreja viu-se confirmada e precisada graças ao
desenvolvimento dos estudos exegéticos, que levou os exegetas a dar uma atenção
maior à influência que teve sobre os textos o ambiente vital onde eles se
formaram (« Sitz im Leben »).
2. Exegese e teologia dogmática
Sem ser seu único locus theologicus, a Santa Escritura constitui
a base privilegiada dos estudos teológicos. Para interpretar a Escritura com
exatidão científica e precisão, os teólogos necessitam do trabalho dos
exegetas. De outro lado, os exegetas devem orientar suas pesquisas de tal
maneira que o «estudo da Santa Escritura» possa efetivamente ser «como a
alma da Teologia» (Dei
Verbum, 24). A este efeito, é preciso dar uma atenção particular ao conteúdo
religioso dos escritos bíblicos.
Os exegetas podem ajudar os dogmáticos a evitar dois extremos: de um lado
o dualismo, que separa completamente uma verdade doutrinal de sua expressão
lingüística, considerada como sem importância; de outro lado o fundamentalismo
que, confundindo o humano e o divino, considera como verdade revelada mesmo os
aspectos contingentes das expressões humanas.
Para evitar esses dois extremos é preciso distinguir sem separar, e
assim aceitar uma tensão persistente. A Palavra de Deus exprimiu-se na obra de
autores humanos.
Pensamento e palavras são ao mesmo tempo de Deus e do homem,
de maneira que tudo na Bíblia vem ao mesmo tempo de Deus e do autor inspirado.
Não se conclui, no entanto, que Deus tenha dado um valor absoluto ao
condicionamento histórico de sua mensagem. Esta é suscetível de ser
interpretada e atualizada, isto é, de ser separada, pelo menos parcialmente, de
seu condicionamento histórico passado para ser transplantada no condicionamento
histórico presente. O exegeta estabelece as bases desta operação que o
dogmático continua, levando em consideração os outros loci theologici que
contribuem ao desenvolvimento do dogma.
3. Exegese e teologia moral
Observações análogas podem ser feitas sobre as relações entre exegese e
teologia moral. Aos relatos concernentes à história da salvação, a Bíblia une
estreitamente múltiplas instruções sobre a conduta a ser mantida: mandamentos,
interdições, prescrições jurídicas, exortações, invectivas proféticas,
conselhos de sábios. Uma das tarefas da exegese consiste em precisar o alcance
deste abundante material e em preparar, assim, o trabalho dos moralistas.
Esta tarefa não é simples pois muitas vezes os textos bíblicos não se
preocupam em distinguir preceitos morais universais, prescrições de pureza
ritual e ordens jurídicas particulares. Tudo é posto junto. De outro lado, a
Bíblia reflete uma evolução moral considerável, que encontra sua perfeição no
Novo Testamento. Não é suficiente que uma certa posição em matéria de moral
seja atestada no Antigo Testamento (por exemplo, a prática da escravidão ou do
divórcio, ou aquela das exterminações em caso de guerra), para que esta posição
continue a ser válida. Um discernimento deve ser feito, levando em conta o
necessário progresso da consciência moral. Os escritos do Antigo Testamento
contêm elementos «imperfeitos e caducos» (Dei Verbum, 15), que a pedagogia divina não podia
eliminar de uma só vez. O Novo Testamento mesmo não é fácil de interpretar no
domínio da moral, pois muitas vezes ele se exprime através de imagem, ou de
maneira paradoxal, ou mesmo provocadora, e a relação dos cristãos com a Lei
judaica é objeto aqui de ásperas controvérsias.
Os moralistas são, assim, levados a apresentar aos exegetas muitas
questões importantes que estimularão suas pesquisas. Em mais de um caso, a
resposta poderá ser que nenhum texto bíblico trata explicitamente do problema
considerado. Mas mesmo assim o testemunho da Bíblia, compreendido em seu
vigoroso dinamismo de conjunto, não pode deixar de ajudar a definir uma
orientação fecunda. Sobre os pontos mais importantes, a moral do Decálogo
permanece fundamental. O Antigo Testamento contém já os princípios e os valores
que comandam um agir plenamente conforme à dignidade da pessoa humana, criada «
à imagem de Deus » (Gn 1,27). 0 Novo Testamento coloca esses
princípios e esses valores em grande evidência, graças à revelação do amor de
Deus no Cristo.
4. Pontos de vista diferentes e interação necessária
Em seu documento de 1988 sobre a interpretação dos dogmas, a Comissão
Teológica Internacional lembrou que, nos tempos modernos, um conflito surgiu
entre a exegese e a teologia dogmática; ela observa em seguida as contribuições
da exegese moderna à teologia sistemática (A interpretação dos dogmas,
1988, C.I, 2). Para maior precisão, é útil acrescentar que o conflito foi
provocado pela exegese liberal. Entre a exegese católica e a teologia dogmática
não houve conflito generalizado, mas apenas momentos de forte tensão. É bem
verdade, no entanto, que a tensão pode degenerar em conflito se de um lado e de
outro endurecem-se legítimas diferenças de pontos de vista até transformá-las
em oposições irredutíveis.
Os pontos de vista, efetivamente, são diferentes e devem sê-lo. A
primeira tarefa da exegese é discernir com precisão o sentido dos textos
bíblicos no próprio contexto deles, isto é, primeiramente no contexto literário
e histórico particular desses mesmos textos e em seguida no contexto do Cânon
das Escrituras. Realizando esta tarefa, o exegeta coloca em evidência o sentido
teológico dos textos, desde que eles tenham um alcance dessa natureza. Uma
relação de continuidade é, assim, feita possível entre a exegese e a reflexão
teológica ulterior. Mas o ponto de vista não é o mesmo, pois a tarefa da
exegese é fundamentalmente histórica e descritiva e limita-se à interpretação
da Bíblia.
O dogmático realiza uma obra mais especulativa e mais sistemática. Por
esta razão ele só se interessa verdadeiramente por certos textos e por certos
aspectos da Bíblia e, aliás, ele leva em consideração muitos outros dados que
não são bíblicos — escritos patrísticos, definições conciliares, outros documentos
do Magistério, liturgia — assim como sistemas filosóficos e a situação
cultural, social e política contemporânea. Sua tarefa não é simplesmente
interpretar a Bíblia, mas visar uma compreensão plenamente refletida da fé
cristã em todas as suas dimensões e especialmente em sua relação decisiva com a
existência humana.
Por causa de sua orientação especulativa e sistemática, a teologia
muitas vezes cedeu à tentação de considerar a Bíblia como um reservatório
de dicta probantia destinado a confirmar teses doutrinárias.
Em nossos dias, os dogmáticos adquiriram uma viva consciência da importância do
contexto literário e histórico para a correta interpretação dos textos antigos
e eles recorrem muito mais à colaboração dos exegetas.
Enquanto Palavra de Deus colocada por escrito, a Bíblia tem uma riqueza
de significado que não pode ser completamente captado nem emprisionado em
nenhuma teologia sistemática. Uma das funções principais da Bíblia é aquela de
lançar sérios desafios aos sistemas teológicos e de lembrar continuamente a
existência de importantes aspectos da revelação divina e da realidade humana
que algumas vezes foram esquecidos ou negligenciados nos esforços de reflexão
sistemática. A renovação da metodologia exegética pode contribuir a esta tomada
de consciência.
Reciprocamente, a exegese deve se deixar iluminar pela pesquisa
teológica. Esta a estimulará a apresentar aos textos questões importantes e
descobrir melhor todo o alcance e a fecundidade deles. O estudo científico da
Bíblia não pode se isolar da pesquisa teológica, nem da experiência espiritual
e do discernimento da Igreja. A exegese produz seus melhores frutos quando ela
se realiza no contexto da fé viva da comunidade cristã, que é orientada em
direção da salvação do mundo inteiro.
IV. INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA NA VIDA DA
IGREJA
Tarefa particular dos exegetas, a interpretação da Bíblia mesmo assim
não lhes pertence como um monopólio, pois na Igreja essa interpretação
apresenta aspectos que vão além da análise científica dos textos. A Igreja,
efetivamente, não considera a Bíblia simplesmente como um conjunto de
documentos históricos concernentes às suas origens; acolhe-a como Palavra de
Deus que se dirige a ela e ao mundo inteiro no tempo presente. Esta convicção
de fé tem como consequência a prática da atualização e da inculturação da
mensagem bíblica, assim como os diversos modos de utilização dos textos
inspirados, na liturgia, a «lectio divina», o ministério pastoral e o
movimento ecumênico.
A. Atualização
Já no interior da própria Bíblia — havíamos notado no capítulo
precedente — pode-se constatar a prática da atualização: textos mais antigos
foram relidos à luz de circunstâncias novas e aplicados à situação presente do
Povo de Deus. Baseada sobre as mesmas convicções, a atualização continua
necessariamente a ser praticada nas comunidades dos fiéis.
1. Princípios
Os princípios que fundamentam a prática da atualização são os seguintes:
A atualização é possível, pois a plenitude do sentido do texto bíblico dá-lhe
valor para todas as épocas e todas as culturas (cf Is 40,8;
66,18-21; Mt 28,19-20). A mensagem bíblica pode ao mesmo tempo
tornar relativos e fecundar os sistemas de valores e as normas de comportamento
de cada geração.
A atualização é necessária, pois, se bem que a mensagem dos textos da
Bíblia tenha um valor durável, estes foram redigidos em função de
circunstâncias passadas e em uma linguagem condicionada por diversas épocas.
Para manifestar o alcance que eles têm para os homens e as mulheres de hoje, é
necessário aplicar a mensagem desses textos às circunstâncias presentes e
exprimi-la em uma linguagem adaptada à época atual. Isso pressupõe um esforço
hermenêutico que visa discernir através do condicionamento histórico os pontos
essenciais da mensagem.
A atualização deve constantemente levar em consideração as relações
complexas que existem na Bíblia cristã entre o Novo Testamento e o Antigo, pelo
fato de que o Novo se apresenta ao mesmo tempo como realização e ultrapassagem
do Antigo. A atualização efetua-se em conformidade com a unidade dinâmica assim
constituída.
A atualização realiza-se graças ao dinamismo da tradição viva da
comunidade de fé. Esta situa-se explicitamente no prolongamento das comunidades
onde a Escritura nasceu e foi conservada e transmitida. Na atualização, a
tradição tem um papel duplo: ela procura, de um lado uma proteção contra as
interpretações aberrantes; ela assegura de outro lado a transmissão do
dinamismo original.
Atualização não significa assim a manipulação dos textos. Não se trata
de projetar sobre os escritos bíblicos opiniões ou ideologias novas, mas de
procurar sinceramente a luz que eles contêm para o tempo presente. O texto da
Bíblia tem autoridade em todos os tempos sobre a Igreja cristã e, se bem que
passaram-se séculos desde os tempos de sua composição, ele conserva seu papel
de guia privilegiado que não se pode manipular. O Magistério da Igreja «não
está acima da Palavra de Deus, mas ele a serve, ensinando somente aquilo que
foi transmitido; por mandato de Deus, com a assistência do Espírito Santo, ele
a escuta com amor, conserva-a santamente e explica-a com fidelidade» (Dei Verbum, 10).
2. Métodos
Partindo destes princípios, pode-se utilizar diversos métodos de
atualização.
A atualização, já praticada no interior da Bíblia, prosseguiu em seguida
na Tradição judaica através de procedimentos que podem ser observados nos
Targumim e Midrashim: procura de passagens paralelas (gézérah shawah),
modificação na leitura do texto ('al tiqerey), adoção de um segundo
sentido (tartey mishma'), etc.
Enquanto isso, os Padres da Igreja serviram-se da tipologia e da
alegoria para atualizar os textos bíblicos de uma maneira adaptada à situação
dos cristãos do tempo deles.
Em nossa época, a atualização deve levar em conta a evolução das
mentalidades e o progresso dos métodos de interpretação.
A atualização pressupõe uma exegese correta do texto, que determina
o sentido literal dele. Se a pessoa que atualiza não tem ela
mesma uma formação exegética, deve recorrer a bons guias de leitura que
permitam de bem orientar a interpretação.
Para bem conduzir a atualização, a interpretação da Escritura pela
Escritura é o método mais seguro e o mais fecundo, especialmente no caso dos
textos do Antigo Testamento que foram relidos no próprio Antigo Testamento (por
exemplo, o maná de Ex 16 em Sab 16,20-29)
e/ou no Novo Testamento (Jo 6). A atualização de um texto bíblico
na existência cristã não pode ser feito corretamente sem se colocar em relação
com o mistério do Cristo e da Igreja. Não seria normal, por exemplo, propor a
cristãos, como modelos para uma luta de libertação, unicamente episódios do
Antigo Testamento (Êxodo; 1-2 Macabeus).
Inspirada nas filosofias hermenêuticas, a operação hermenêutica vem em
seguida e comporta três etapas: 1) escutar a Palavra a partir da situação
presente; 2) discernir os aspectos da situação presente que o texto bíblico
ilumina ou coloca em questão; 3) tirar da plenitude de sentido do texto bíblico
os elementos suscetíveis de fazer evoluir a situação presente de uma maneira
fecunda, conforme à vontade salvífica de Deus no Cristo.
Graças à atualização, a Bíblia vem iluminar inúmeros problemas atuais,
por exemplo: a questão dos ministérios, a dimensão comunitária da Igreja, a
opção preferencial pelos pobres, a teologia da libertação, a condição da
mulher. A atualização pode também estar atenta a valores cada vez mais
reconhecidos pela consciência moderna como os direitos da pessoa, a proteção da
vida humana, a preservação da natureza, a aspiração à paz universal.
3. Limites
Para permanecer de acordo com a verdade salvífica expressa na Bíblia, a
atualização deve respeitar certos limites e evitar possíveis desvios.
Se bem que toda leitura da Bíblia seja forçosamente seletiva, as leituras
tendenciosas devem ser descartadas, isto é, aquelas que ao invés de
serem dóceis ao texto só os utilizam para fins limitados (como é o caso na
atualização feita pelas seitas, a dos Testemunhas de Jeová, por exemplo).
A atualização perde toda validade se ela se baseia em princípios
teóricos que estão em desacordo com as orientações
fundamentais do texto da Bíblia, como por exemplo, o racionalismo oposto à fé
ou o materialismo ateu.
É preciso eliminar também, evidentemente, toda atualização orientada no
sentido contrário à justiça e à caridade evangélicas, as mesmas
que, por exemplo, queriam basear a segregação racial, o antisemitismo ou o
sexismo, masculino ou feminino, sobre textos bíblicos. Uma atenção especial é
necessária, segundo o espírito do Concílio Vaticano II (Nostra aetate, 4), para evitar
absolutamente de atualizar certos textos do Novo Testamento em um sentido que
poderia provocar ou reforçar atitudes desfavoráveis em relação aos judeus. Os
acontecimentos trágicos do passado devem forçar, ao contrário, a lembrar sem
cessar que segundo o Novo Testamento os judeus permanecem «amados» por Deus,
«porque os dons e a vocação de Deus são sem arrependimento» (Rm 11,28-29).
Os desvios serão evitados se a atualização parte de uma correta
interpretação do texto e é feita no decorrer da Tradição viva, sob a guia do
Magistério eclesial.
De toda maneira, os riscos de desvios não podem constituir uma objeção
válida contra a realização de uma tarefa necessária, isto é, a de fazer chegar
a mensagem da Bíblia até os ouvidos e o coração de nossa geração.
B. Inculturação
Ao esforço de atualização, que permite à Bíblia de permanecer fecunda
através da diversidade dos tempos, corresponde, no que concerne a diversidade
dos lugares, ao esforço de inculturação que assegura o enraizamento da mensagem
bíblica em terrenos os mais diversos. Esta diversidade, aliás, nunca é total.
Toda cultura autêntica é portadora, à sua maneira, de valores universais
fundados por Deus.
O fundamento teológico da inculturação é a convicção de fé que a Palavra
de Deus transcende as culturas nas quais ela foi expressa e tem a capacidade de
se propagar em outras culturas, de maneira a atingir todas as pessoas humanas
no contexto cultural onde elas vivem. Esta convicção decorre da própria Bíblia
que, desde o livro do Gênesis, toma uma orientação universal (Gn 1,27-28),
a mantém em seguida na bênção prometida a todos os povos graças a Abraão e à
sua descendência (Gn 12,3; 18,18) e a confirma definitivamente
estendendo a « todas as nações » a evangelização cristã (Mt 28,18-20; Rm 4,16-17; Ef 3,6).
A primeira etapa da inculturação consiste em traduzir em
uma outra língua a Escritura inspirada. Este primeiro passo foi dado desde os
tempos do Antigo Testamento quando se traduziu oralmente o texto hebreu da
Bíblia em aramaico (Ne 8,8.12) e, mais tarde, por escrito em grego.
Uma tradução, efetivamente, é sempre mais que uma simples transcrição do texto
original. A passagem de uma língua a uma outra comporta necessariamente uma
mudança de contexto cultural: os conceitos não são idênticos e o alcance dos
símbolos é diferente, pois eles colocam em relação com outras tradições de
pensamento e outras maneiras de viver.
Escrito em grego, o Novo Testamento é inteiramente marcado por um
dinamismo de inculturação, pois ele transpõe na cultura judeo-helenística a
mensagem palestina de Jesus, manifestando desta maneira uma clara vontade de
ultrapassar os limites de um ambiente cultural único.
Etapa fundamental, a tradução dos textos bíblicos não pode, no entanto,
ser suficiente a assegurar uma verdadeira inculturação. Esta deve continuar
graças a uma interpretação que coloque a mensagem bíblica em
relação mais explícita com as maneiras de sentir, de pensar, de viver e de se
exprimir próprias à cultura local. Da interpretação passa-se em seguida a
outras etapas da inculturação que terminam na formação de uma cultura local
cristã, estendendo-se a todas as dimensões da existência (oração, trabalho,
vida social, costumes, legislação, ciências e artes, reflexão filosófica e
teológica). A Palavra de Deus é, efetivamente, uma semente que tira da terra,
onde ela se encontra, os elementos úteis ao seu crescimento e à sua fecundidade
(cf Ad Gentes, 22).
Consequentemente, os cristãos devem procurar discernir « quais riquezas Deus,
em sua generosidade, dispensou às nações; eles devem ao mesmo tempo fazer um
esforço para iluminar essas riquezas com a luz evangélica, de libertá-las, de
trazê-las sob a autoridade do Deus Salvador » (Ad Gentes, 11).
Não se trata, pode-se ver, de um processo com sentido único, mas de uma
«mútua fecundação» . De um lado as riquezas contidas nas diversas culturas
permitem à Palavra de Deus de produzir novos frutos e de outro lado a luz da
Palavra de Deus permite de fazer uma triagem naquilo que trazem as culturas,
para rejeitar os elementos nocivos e favorecer o desenvolvimento dos elementos
válidos. A total fidelidade à pessoa do Cristo, ao dinamismo de seu mistério
pascal e a seu amor pela Igreja faz evitar duas soluções falsas: aquela da «adaptação» superficial da mensagem e aquela da confusão sincretista (cf Ad Gentes, 22).
No Oriente e no Ocidente cristãos a inculturação da Bíblia efetuou-se
desde os primeiros séculos e manifestou uma grande fecundidade. Não se pode, no
entanto, nunca considerá-la como terminada. Ela deve ser retomada
constantemente, em relação com a continua evolução das culturas. Nos países de
evangelização mais recente, o problema coloca-se em termos diferentes. Os
missionários, efetivamente, levam necessariamente a Palavra de Deus sob a forma
na qual ela se inculturou no país de origem deles. Grandes esforços devem ser
realizados pelas novas Igrejas locais para passar desta forma estrangeira de
inculturação da Bíblia a uma outra forma, que corresponda à cultura do próprio
país.
C. Uso da Bíblia
1. Na liturgia
Desde os primórdios da Igreja, a leitura das Escrituras fez parte
integrante da liturgia cristã, por um lado herdeira da liturgia sinagogal. Hoje
ainda, é principalmente pela liturgia que os cristãos entram em contato com as
Escrituras, particularmente durante a celebração eucarística do domingo.
Em princípio, a liturgia, e especialmente a liturgia sacramental, onde a
celebração eucarística constitui o grau máximo, realiza a atualização mais
perfeita dos textos bíblicos, pois ela situa a proclamação no meio da
comunidade dos fiéis reunida em torno de Cristo a fim de se aproximar de Deus.
Cristo é então «presente em sua palavra, pois é ele mesmo quem fala quando as
Santas Escrituras são lidas na igreja» (Sacrosanctum Concilium, 7). O texto escrito
volta assim a ser palavra viva.
A reforma litúrgica decidida pelo Concilio Vaticano II esforçou-se em
apresentar aos católicos um alimento bíblico mais rico. Os três ciclos de
leituras das missas dominicais dão um lugar privilegiado aos Evangelhos, de
maneira a colocar bem em evidência o mistério de Cristo como princípio de nossa
salvação. Colocando regularmente um texto do Antigo Testamento em relação com o
texto do Evangelho, este ciclo muitas vezes sugere o caminho da tipologia para
a interpretação escriturária. Esta, sabe-se, não é a única leitura possível.
A homilia, que atualiza mais explicitamente a Palavra de Deus, faz parte
integrante da liturgia. Falaremos mais adiante a propósito do ministério
pastoral.
O lecionário, saído das diretivas do Concilio (Sacrosanctum Concilium, 35), deveria
permitir uma leitura da Santa Escritura «mais abundante, mais variada e mais
adaptada». Em seu estado atual ele responde somente em parte a esta
orientação. No entanto, sua existência teve felizes efeitos ecumênicos. Em
alguns países ele mediu a falta de familiaridade dos católicos com a Escritura.
A liturgia da Palavra é um elemento decisivo na celebração de cada um
dos sacramentos da Igreja; ela não consiste em uma simples sucessão de
leituras, pois deve comportar igualmente tempos de silêncio e de oração. Esta liturgia,
em particular a Liturgia das Horas, recorre ao livro dos Salmos para colocar em
oração a comunidade cristã. Hinos e orações são todos impregnados da linguagem
bíblica e de seu simbolismo. Isto para dizer o quanto é necessário que a
participação à liturgia seja preparada e acompanhada por uma prática da leitura
da Escritura.
Se nas leituras «Deus dirige a palavra a seu povo» (Missal romano,
n. 33), a liturgia da Palavra exige um grande cuidado tanto para a proclamação
das leituras como para a interpretação delas. Assim, é desejável que a formação
dos futuros presidentes de assembléias e daqueles que os circundam leve em
conta as exigências de uma liturgia da Palavra de Deus fortemente renovada.
Assim, graças aos esforços de todos, a Igreja continuará a missão que lhe foi
confiada « de tomar o pão da vida sobre a mesa da Palavra de Deus bem como
sobre a mesa do Corpo do Cristo para oferecê-lo aos fiéis» (Dei Verbum, 21).
2. A lectio divina
A lectio divina é uma leitura, individual ou
comunitária, de uma passagem mais ou menos longa da Escritura acolhida como
Palavra de Deus e que se desenvolve sob a moção do Espírito em meditação,
oração e contemplação.
O cuidado de se fazer uma leitura regular, e mesmo cotidiana, da
Escritura corresponde a uma prática antiga na Igreja. Como prática coletiva,
ela é atestada no século III, na época de Orígenes; este fazia a homilia a
partir de um texto da Escritura lido continuadamente durante a semana. Havia
então assembléias cotidianas consagradas à leitura e à explicação da Escritura.
Esta prática, que foi abandonada posteriormente, não encontrava sempre um
grande sucesso junto aos cristãos (Orígenes, Hom. Gen. X,1).
A lectio divina como prática sobretudo individual é
atestada no ambiente monástico em seu auge. No período contemporâneo, uma
Instrução da Comissão Bíblica aprovada pelo papa Pio XII recomendou-a a todos
os clérigos, tanto seculares como regulares (De Scriptura Sacra,
1950; E. B., 592). A insistência sobre a lectio divina sob
seu duplo aspecto, individual e comunitário, voltou assim a ser atual. A
finalidade que se procura é a de suscitar e de alimentar « um amor efetivo e
constante » à Santa Escritura, fonte de vida interior e de fecundidade
apostólica (E. B., 591 e 567), de favorecer também uma melhor inteligência
da liturgia e de assegurar à Bíblia um lugar mais importante nos estudos
teológicos e na oração.
A Constituição conciliar Dei Verbum (n. 25) insiste igualmente sobre
a leitura assídua das Escrituras para os padres e religiosos. Além disso — e é uma
novidade — ela convida também «todos os fiéis do Cristo» a adquirir «por uma
frequente leitura das Escrituras divinas "a eminente ciência de Jesus
Cristo" (Fil 3,8)». Diversos meios são propostos. Ao lado de
uma leitura individual é sugerida uma leitura em grupo. O texto conciliar
sublinha que a oração deve acompanhar a leitura da Escritura, pois ela é a
resposta à Palavra de Deus encontrada na Escritura sob a inspiração do
Espírito. Numerosas iniciativas foram tomadas no povo cristão para uma leitura
comunitária e só se pode encorajar esse desejo de um melhor conhecimento de
Deus e de seu plano de salvação em Jesus Cristo através das Escrituras.
3. No ministério pastoral
Recomendado pela Dei Verbum (n. 24), o freqüente recurso à
Bíblia no ministério pastoral toma diversas formas dependendo do gênero de
hermenêutica da qual se servem os pastores e que os fiéis podem compreender.
Pode-se distinguir três situações principais: a catequese, a pregação e o
apostolado bíblico. Numerosos fatores intervêm, no que se refere ao nível geral
de vida cristã.
A explicação da Palavra de Deus na catequese — Sacros. Conc.,
35; Direct. catéch. gén., 1971, 16 — tem como primeira fonte a
Santa Escritura que, explicada no contexto da Tradição, fornece o ponto de
partida, o fundamento e a norma de ensinamento catequético. Uma das finalidades
da catequese deveria ser a de introduzir a uma justa compreensão da Bíblia e à
sua leitura frutuosa, que permitam descobrir a verdade divina que ela contém e
que suscitem uma resposta, a mais generosa possível, à mensagem que Deus dirige
por sua palavra à humanidade.
A catequese deve partir do contexto histórico da revelação divina para
apresentar personagens e acontecimentos do Antigo e do Novo Testamento à luz do
plano de Deus.
Para passar do texto bíblico ao suo significado de salvação para o tempo
presente, utiliza-se hermenêuticas variadas que inspiram diversos gêneros de
comentários. A fecundidade da catequese depende do valor da hermenêutica
empregada. O perigo consiste em se contentar de um comentário superficial que
permaneça em uma consideração cronológica sobre a sucessão dos acontecimentos e
dos personagens da Bíblia.
A catequese pode evidentemente explorar apenas uma pequena parte dos
textos bíblicos. Geralmente ela utiliza sobretudo os relatos, tanto no Novo
como no Antigo Testamento. Ela insiste sobre o Decálogo. Ela deve cuidar em
empregar igualmente os oráculos dos profetas, o ensinamento sapiencial e os
grandes discursos evangélicos como o Sermão da montanha.
A apresentação dos Evangelhos deve ser feita de maneira a provocar um
encontro com o Cristo, que dá a chave de toda a revelação bíblica e transmite o
apelo de Deus, ao qual cada um deve responder. A palavra dos profetas e aquela
dos «ministros da Palavra» (Lc 1,2) devem aparecer como dirigidas
agora aos cristãos.
Observações análogas aplicam-se ao ministério da pregação,
que deve tirar dos textos antigos um alimento espiritual adaptado às
necessidades atuais da comunidade cristã.
Atualmente esse ministério exerce-se sobretudo no fim da primeira parte
da celebração eucarística, pela homilia que segue à proclamação da Palavra de
Deus.
A explicação que se dá dos textos bíblicos no decorrer da homilia não
pode entrar em muitos detalhes. Convém, então, colocar em evidência as
contribuições principais desses textos, aqueles que são os mais esclarecedores
para a fé e os mais estimulantes para o progresso da vida cristã, comunitária
ou pessoal. Apresentando essas contribuições, é preciso fazer uma atualização e
uma inculturação, segundo o que foi dito acima. A este efeito são necessários
princípios hermenêuticos válidos. Uma falta de preparação neste domínio provoca
uma tentativa de renúncia a um aprofundamento das leituras bíblicas e
contenta-se em moralizar ou em falar de questões atuais sem iluminá-las pela
Palavra de Deus.
Em diversos países, publicações foram feitas com o auxílio de exegetas
para ajudar os responsáveis pastorais a interpretar corretamente as leituras
bíblicas da liturgia e a atualizá-las de maneira válida. É desejável que
esforços semelhantes sejam generalizados.
Uma insistência unilateral sobre as obrigações que se impõem aos fiéis
deve seguramente ser evitada. A mensagem bíblica deve conservar seu caráter
principal de boa nova da salvação oferecida por Deus. A pregação fará trabalho
mais útil e mais conforme à Bíblia se ele ajudar primeiramente os fiéis a «conhecer o dom de Deus» (Jo 4,10), tal como ele é revelado na
Escritura, e a compreender de maneira positiva as exigências que decorrem
disso.
O apostolado bíblico tem como objetivo fazer conhecer a
Bíblia como Palavra de Deus e fonte de vida. Em primeiro lugar ele favorece a
tradução da Bíblia nas línguas mais diversas e a difusão dessas traduções. Ele
suscita e sustenta numerosas iniciativas: formação de grupos bíblicos,
conferências sobre a Bíblia, semanas bíblicas, publicação de revistas e de
livros, etc.
Uma importante contribuição é trazida por associações e movimentos
eclesiais, que colocam em primeiro plano a leitura da Bíblia em uma perspectiva
de fé e de engajamento cristão. Numerosas « comunidades de base » centralizam
suas reuniões sobre a Bíblia e se propõem um triplo objetivo: conhecer a
Bíblia, construir a comunidade e servir o povo. Aqui também a ajuda de exegetas
é útil para evitar atualizações mal fundadas. Mas deve-se alegrar em ver a
Bíblia tomada por mãos de gente humilde, dos pobres, que podem trazer à sua
interpretação e à sua atualização uma luz mais penetrante do ponto de vista
espiritual e existencial do que aquela que vem de uma ciência segura dela mesma
(cf Mt 11,25).
A importância sempre crescente dos meios de comunicação de massa («mass-media»), imprensa, rádio, televisão, exige que o anúncio da Palavra de
Deus e o conhecimento da Bíblia sejam propagados ativamente por estes meios.
Seus aspectos bem particulares e, de outro lado, a influência sobre públicos
muito vastos, requerem para a utilização desses meios uma preparação específica
que permita evitar as improvisações lamentáveis assim como os efeitos
espetaculares de má qualidade.
Que se trate de catequese, de pregação ou de apostolado bíblico, o texto
da Bíblia deve sempre ser apresentado com o respeito que ele merece.
4. No ecumenismo
Se o ecumenismo, enquanto movimento específico e organizado, é
relativamente recente, a idéia de unidade do povo de Deus, que esse movimento
se propõe de restaurar, é profundamente enraizado na Escritura. Tal objetivo
era a preocupação constante do Senhor (Jo 10,16; 17,11.20-23). Ele
supõe a união dos cristãos na fé, na esperança e na caridade (Ef4,2-5),
no respeito mútuo (Fil 2,1-5) e a solidariedade (1 Co 12,14-27; Rm 12,4-5)
mas também e sobretudo a união orgânica ao Cristo, à maneira dos sarmentos e da
vinha (Jo 15,4-5), dos membros e da cabeça (Ef 1,22-23;
4,12-16). Esta união deve ser perfeita, à imagem daquela do Pai e do Filho (Jo 17,11.22);
a Escritura define seu fundamento teológico (Ef 4,4-6; Gal 3,27-28).
A primeira comunidade apostólica é um modelo concreto e vivo dessa união (At 2,44;
4,32).
A maior parte dos problemas que enfrenta o diálogo ecumênico tem relação
com a interpretação de textos bíblicos. Alguns desses problemas são de ordem
teológica: a escatologia, a estrutura da Igreja, o primado e a colegialidade, o
casamento e o divórcio, a atribuição do sacerdócio ministerial às mulheres,
etc. Outros são de ordem canônica e jurisdicional; eles concernem à
administração da Igreja universal e das Igrejas locais. Outros, enfim, são de
ordem estritamente bíblica: a lista dos livros canônicos, algumas questões
hermenêuticas, etc.
Se bem que ela não possa ter a pretensão de resolver sozinha todos esses
problemas, a exegese bíblica é chamada a trazer ao ecumenismo uma importante
contribuição.
Progressos notáveis já foram realizados. Graças à adoção dos
mesmos métodos e de metas hermenêuticas análogas, os exegetas de diversas
confissões cristãs chegaram a uma grande convergência na interpretação das
Escrituras, como o mostram o texto e as notas de diversas traduções ecumênicas
da Bíblia, assim como em outras publicações.
Deve-se reconhecer, aliás, que em pontos particulares as divergências na
interpretação das Escrituras são muitas vezes estimulantes e podem se revelar
complementares e enriquecedoras. É o caso quando elas exprimem os valores das
tradições particulares de diversas comunidades cristãs e traduzem assim os
múltiplos aspectos do Mistério de Cristo.
Como a Bíblia é a base comum da regra de fé, o imperativo ecumênico
comporta para todos os cristãos um apelo premente a reler os textos inspirados
na docilidade ao Espírito Santo, na caridade, na sinceridade, na humildade, a
meditar esses textos e a vivê-los de maneira a chegar à conversão do coração e
à santidade de vida, as quais, unidas à oração para a unidade dos cristãos, são
a alma de todo o movimento ecumênico (cf. Unitatis redintegratio, 8). Seria preciso
para isso tornar acessível ao maior número possível de cristãos a aquisição da
Bíblia, encorajar as traduções ecumênicas — pois um texto comum ajuda uma
leitura e uma compreensão comuns — promover grupos de oração ecumênicos afim de
contribuir com um testemunho autêntico e vivo à realização da unidade na
diversidade (cf Rm 12,4-5).
CONCLUSÃO
Do que foi dito no decorrer desta longa exposição — que, no entanto,
continua breve demais sobre vários pontos — a primeira conclusão que se salienta
é que a exegese bíblica preenche, na Igreja e no mundo, uma tarefa
indispensável. Querer se dispensar dela para compreender a Bíblia seria
ilusão e manifestaria urna falta de respeito para com a Escritura inspirada.
Pretendendo reduzir os exegetas ao papel de tradutores (ou ignorando que
traduzir a Bíblia já é fazer obra de exegese) e recusando de segui-los em seus
estudos, os fundamentalistas não se dão conta de que, por um louvável cuidado
de inteira fidelidade à Palavra de Deus, em realidade eles entram em caminhos
que os afastam do sentido exato dos textos bíblicos assim como da plena
aceitação das consequências da Encarnação. A Palavra eterna encarnou-se em uma
época precisa da história, em um ambiente social e cultural bem determinado.
Quem deseja entendê-la deve humildemente procurá-la lá onde ela se tornou
perceptível, aceitando a ajuda necessária do saber humano. Para falar aos
homens e às mulheres, desde a época do Antigo Testamento, Deus explorou todas
as possibilidades da linguagem humana, mas ao mesmo tempo ele teve também que
submeter sua palavra a todos os condicionamentos dessa linguagem. O verdadeiro
respeito pela Escritura inspirada exige que sejam realizados todos os esforços
necessários para que se possa compreender bem seu sentido. Seguramente não é
possível que cada cristão faça pessoalmente as pesquisas de todos os gêneros
que permitam compreender melhor os textos bíblicos. Esta tarefa é confiada aos
exegetas, responsáveis nesse setor pelo bem de todos.
Uma segunda conclusão é que a natureza mesma dos textos bíblicos exige
que para interpretá-los, continue-se o emprego do método
histórico-crítico, ao menos em suas operações principais. A Bíblia,
efetivamente, não se apresenta como uma revelação direta de verdades
atemporais, mas como a atestação escrita de uma série de intervenções pelas
quais Deus se revela na história humana. A diferença de doutrinas sagradas de
outras religiões, a mensagem bíblica é solidamente enraizada na história.
Conclui-se que os escritos bíblicos não podem ser corretamente compreendidos
sem um exame de seu condicionamento histórico. As pesquisas « diacrônicas »
serão sempre indispensáveis à exegese. Qualquer que seja o interesse das
abordagens « sincrônicas », elas não estão à altura de substitui-las. Para funcionar
de maneira fecunda, estas devem primeiramente aceitar as conclusões das outras,
pelo menos em suas grandes linhas.
Mas, uma vez preenchida esta condição, as abordagens sincrônicas
(retórica, narrativa, semiótica e outras) são suscetíveis de renovar em parte a
exegese e de dar uma contribuição muito útil. O método histórico-crítico,
efetivamente, não pode pretender o monopólio. Ele deve ser consciente de seus
limites, assim como dos perigos que o espreitam. Os desenvolvimentos
recentes das hermenêuticas filosóficas e, de outro lado, as observações que
pudemos fazer sobre a interpretação na Tradição Bíblica e na Tradição da Igreja
colocaram em evidência vários aspectos do problema da interpretação que o
método histórico-crítico tinha tendência a ignorar. Preocupado, efetivamente,
em bem fixar o sentido dos textos, situando-os no contexto histórico original
deles, este método mostra-se algumas vezes insuficientemente atento ao aspecto
dinâmico do significado e às possibilidades de desenvolvimento do sentido.
Quando ele não vai até o estudo da redação, mas se absorve unicamente nos
problemas de fontes e de estratificação dos textos, ele não preenche
completamente a tarefa exegética.
Por fidelidade à grande Tradição, da qual a própria Bíblia é testemunha,
a exegese católica deve evitar tanto quanto possível esse gênero de deformação
profissional e manter sua identidade de disciplina teológica, cuja
finalidade principal é o aprofundamento da fé. Isso não significa ter um
compromisso menor com uma pesquisa científica mais rigorosa, nem a deformação
dos métodos por preocupações apologéticas. Cada setor da pesquisa (crítica
textual, estudos linguísticos, análises literárias, etc.) tem suas próprias
regras, que é preciso seguir com toda autonomia. Mas nenhuma dessas
especialidades é uma finalidade em si mesma. Na organização de conjunto da
tarefa exegética, a orientação em direção à finalidade principal deve
permanecer efetiva e evitar os desperdícios de energia. A exegese católica não
tem o direito de se parecer com um curso d'água que se perde nas areias de uma
análise hipercrítica. Ela deve preencher na Igreja e no mundo uma função vital,
isto é, de contribuir a uma transmissão mais autêntica do conteúdo da Escritura
inspirada.
É bem a esta finalidade que tendem desde já seus esforços, em ligação
com a renovação das outras disciplinas teológicas e com o trabalho pastoral de
atualização e de inculturação da Palavra de Deus. Examinando a problemática
atual e exprimindo algumas reflexões a esse respeito, a presente exposição
espera ter facilitado a todos uma tomada de consciência mais clara do papel dos
exegetas católicos.
Roma, 15 de Abril de 1993.
Notas
(1) Por « método » exegético compreendemos um
conjunto de procedimentos científicos colocados em ação para explicar os
textos. Falamos de « abordagem », quando se trata de uma pesquisa orientada
segundo um ponto de vista particular.
(2) O texto desta última alínea foi escolhido por
11 votos favoráveis entre 19 votantes; 4 votaram contra e 4 se abstiveram. Os
oponentes pediram que o resultado da votação fosse publicado com o texto. A
Comissão comprometeu-se em fazê-lo.
(3) A hermenêutica da Palavra desenvolvida por
Gerhard Ebeling e Ernst Fuchs parte de uma outra abordagem e depende de um
outro campo de pensamento. Trata-se mais de uma teologia hermenêutica do que
uma filosofia hermenêutica. Ebeling está de acordo, no entanto, com autores
tais como Bultmann e Ricoeur para afirmar que a Palavra de Deus só acha
plenamente seu sentido quando encontra aqueles aos quais ela se dirige.
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